02. Pesadelo
"No sonho, eu entrei algumas vezes em casas escuras que não conhecia. Casas estranhas, escuras, assustadoras. Quartos negros que me envolviam até eu não conseguir mais respirar..."
— Astrid Lindgren, Mio, meu filho
O PAI DE EIRWEN SE CHAMAVA Cínwelt Tariessar e era o herdeiro do trono de Eireadail até se apaixonar por sua mãe, Eira Sarienan. Ela não queria ser limitada a uma rainha consorte, tendo sua liberdade restringida, e por isso Cínwelt passou seus direitos para seu irmão mais novo, Dragomir, e deixou a capital Tir-Ardmar com Eira, passando a viver com ela em Caer Amrath. Logo após isso, Dragomir casou-se com outra mulher e teve apenas uma filha com ela, Anuratel; ainda assim ele teve mais dois filhos, bastardos, que foram entregados aos pais de Eirwen para serem criados em Amrath, pois sua mulher não queria que ele tivesse contato com os filhos. Os dois menininhos eram como seus irmãos, assim como eram para Arwan.
Infelizmente, há quatro anos seus pais deixaram este mundo para nunca mais retornarem. E ela não gostava de pensar ou falar sobre isso.
Em Tir-Ardmar viviam seu tio, sua mulher, e sua filha.
Seu tio, Dragomir Tariessar, na maioria das vezes era fraco e tolo. As pessoas o consideravam alegre, acolhedor, sociável; contagiava a todos ao seu redor e parecia sempre se esforçar para isso, sempre sorrindo mesmo que não houvesse lá muitos motivos. Detestava se indispor com aqueles que não o conheciam, e por isso o tinham em boa opinião. Eirwen sempre conseguiu enxergar seu narcisismo disfarçado de falsa modéstia, era um falso moralista. Ela o via como um homem medroso quando não deveria ser. Emotivo quando não precisava.
O nome de sua mulher era Erna, que descendia daqueles que muitos anos antes haviam sido inimigos de sua família. Esse casamento, ao seu ver, deveria ser digno de reprovação, mas o tio dizia que a amava e que antigos inimigos deveriam ser transformados em amigos. Comentavam que ela brincava com venenos e praticava feitiçaria.
A filha deles era Anuratel, sua prima. Tinha cabelos fulvos, olhos cor de jade, e a tez clara como a sua. Ela poderia parecer tão boa e calorosa quanto o pai, mas seu coração era traiçoeiro, enganando quem pudesse. Anuratel era maldosa e gostava de ser assim.
Em Caer Amrath viviam sua avó, seus primos, seu irmão e ela.
Ceridwen Sarienan era o nome de sua avó, de cabelos longos, ondulados que em grande parte ainda conservavam o lindo tom dourado, por isso nunca conseguiu pensar nela como velha; era firme como uma montanha e viçosa como o verão, em seus olhos brilhava a mais pura inteligência que poderia ser encontrada entre os humanos. Ela estava sempre resolvendo alguma coisa.
Já seu irmão mais velho era Arwan, de cabelos e olhos negros, com a tez pálida como pérolas; ele era lento para esquecer injustiças e desfeitas, e muitas vezes agia com ferocidade, entretanto, sua maior virtude era a compaixão que tinha por todos aqueles que sofriam.
Edwen e Arien eram seus primos, os mais novos. Edwen tinha nove anos e Arien tinha sete, ambos de espíritos semelhantes e alegres como as crianças sempre são, embora o primeiro fosse mais responsável e pensativo.
Foi por esses dois mais novos que Eirwen foi recebida quando passou pelos portões do castelo, quase dois dias depois de ter saído da floresta de Brenainn. Desmontou de Albus e entregou as rédeas para Helion, um dos cavalariços que estavam a postos no pátio, e Edwen e Arien agarraram à sua cintura.
— Papai está aqui — Arien disse, com seu sorriso infantil — Disse que queria nos ver.
— Perguntava por você agora mesmo — Edwen emendou — Está com vovó, todos nós vamos jantar juntos.
Para eles estarem tão animados provavelmente Dragomir viera sozinho, sem as outras duas, o que era bom; geralmente elas não saiam de perto e sempre tentavam expor opiniões em assuntos que não as interessavam.
Lavou as mãos e o rosto antes de seguir para a sala particular de jantar, onde sua avó recebia seus convidados que traziam notícias ou simplesmente sentiam vontade de visitá-la. Rei Dragomir de Eireadail estava ali, com vestes de viagem escuras e os cabelos escuros jogados para trás; Edwen e Arien estavam cada um de um lado seu, tentando conseguir sua atenção, e Ceridwen sentava à sua frente, bebendo em sua característica taça de prata e fingindo estar interessada em seja lá o que Dragomir dizia.
— Meu rei e tio, agradável é sua visita — curvou-se em uma reverência quando a viram ali, deixando transparecer em sua voz a educação que tinha em respeitar sua figura de autoridade.
Ele levantou de onde estava sentado e veio até ela, sorridente, e segurou seus ombros, observando-a com atenção.
— Por todas as divindades existentes, como você cresceu! — exclamou, puxando-lhe para um abraço — Parece que ontem mesmo você era uma garotinha!
Eirwen deu um breve sorriso quando ele a largou; apesar de suas falhas como rei e como homem, ainda tinha certa afeição por ele.
— E agora está às vésperas de completar dezenove anos — Ceridwen comentou, de seu lugar.
— Sim! — seu sorriso estremeceu, como se estivesse lembrando somente neste momento de seu aniversário — Amanhã, não é mesmo?
— Exatamente — Eirwen assentiu.
— Arwan está nas terras de Erendriel, não é? — questionou, sua voz se tornando um pouco mais sossegada — Juntou-se aos guardas dele e agora patrulha fronteiras...
A desaprovação se tornou clara, e a necessidade de defender seu irmão mais velho foi maior que sua passividade.
— Arwan é o único humano dentre os guardas de Erendriel, e seus serviços logo terminarão. Ele busca ampliar seu conhecimento e suas habilidades — o tom da jovem saiu tão calmo que soou frio — Assim como um verdadeiro guerreiro deve fazer.
— Muito bem! — a voz de sua avó atraiu as atenções — A mesa já está posta, vamos comer! Só estávamos aguardando sua chegada, Eirwen.
O jantar transcorreu tranquilamente; sentou de frente para Dragomir enquanto os meninos permaneciam ao seu lado. Ele não fazia nenhum comentário, porém várias vezes Eirwen pôde notar que ele analisava o anel em seu dedo indicador. Sem dúvida percebendo que fora feito pelos elfos Limielinen, e provavelmente reprovando-o.
Entretanto, foi apenas ao final da refeição que o rei expôs sua vontade de conversar com ela em particular, para a decepção de Edwen e Arien, que esperavam passar a noite com o pai. Caminharam pelas muralhas do castelo, com o vento do fim de verão os atingindo.
— Não pude deixar de notar o anel em seu dedo — começou — Tem andado com os elfos ultimamente? Assim como seu irmão?
— Sim — respondeu, sentindo-se levemente tensa. Não queria entrar em uma discussão — Foi dado a mim por Naeron, príncipe dos Limielinen, como sinal de seu respeito e afeto.
Ele parou de caminhar, colocando-se em sua frente; analisou seus olhos, rosto e postura.
— Não deixe seu coração ser tomado pelo povo altivo, criança — falou, em voz calma — São belos e fascinantes, sim, mas sofrimento aguarda aqueles que ousam contemplar a luz de seus semblantes e amá-la.
Em suas palavras sentia o veneno de Erna e Anuratel; pensou em tentar argumentar, mas as duas já tinham fincado suas garras tão profundamente nele que nada que ela dissesse adiantaria.
— Não se preocupe, tio — optou por dizer.
— Erna chamou minha atenção para o fato de que em breve você precisará se casar. Ela própria se ofereceu para encontrar pretendentes dignos do sangue de reis que você carrega — Dragomir sorriu e ela se manteve inexpressiva.
Não era novidade que Erna e Dragomir se intrometessem em assuntos que não eram seus, apenas assentiu com a cabeça. Não era como se de fato fosse casar-se com um dos pretendentes que aquela mulher escolhesse — só se Dragomir literalmente a forçasse a isso.
— Bom, acho que era apenas isso, Eirwen — tocou seu braço — Preciso voltar agora.
— Mas o senhor mal chegou — isso a surpreendeu.
— Sim — pressionou os lábios — Porém, preciso retornar. Erna e Anuratel precisam de mim.
Depois de tanto tempo, ela compreendia. Sabia que ele amava Edwen e Arien, só não o suficiente. Não tanto quanto amava Anuratel. Na maioria das vezes, ele só procurava todos em Amrath quando precisava dizer algo ou pedir algo — e sendo o rei, não poderiam negar-lhe nada.
— Vá então, meu rei — dispediu-se afastando-se um passo — Sua esposa e filha lhe aguardam.
Ele sorriu; adorava quando as pessoas aceitavam suas falas ou atitudes sem má disposição.
— Foi ótimo ver a vocês todos, Eirwen — se aproximou e apertou seu ombro; Eirwen suportou seu toque — Lembre-se do que eu disse, afaste-se da luz dos elfos, minha mariposinha.
Entendeu o que ele quis dizer, e precisou juntar todas as forças para não se encolher.
Observou enquanto ele ia embora, sem nem ao menos entrar novamente para se despedir de seus dois filhinhos. Debruçou-se na muralha, sentindo o vento na face, e encarou seu novo anel; a pedra da lua brilhava em várias cores sob a luz das estrelas.
Não sabia Dragomir que ela já estava contemplando a luz de Naeron, e a desejava ardentemente.
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Como já previra, foi impossível afastar a tristeza de Edwen e Arien quando ela avisou que Dragomir havia partido — sem nem ao menos se despedir dos demais. Edwen conseguia disfarçar melhor as emoções, mas Arien ficou com os olhinhos cheios de lágrimas; Eirwen tentou distraí-los abraçando-os e dando o restante da torta de morango que tinha sobrado após o jantar, mas não adiantou. Essa noite foi uma das poucas em que ambos foram para a cama sem reclamar.
Não querendo ficar sozinha e nem ir para seus aposentos, ficou nos de Ceridwen enquanto ela respondia algumas cartas e examinava alguns documentos que demandavam sua atenção. Sentada em uma das poltronas diante da lareira, bebia lentamente o chá de frutas silvestres adoçado que havia em sua xícara, enquanto olhava distraidamente para as chamas dançantes da lareira; pensava nas palavras de seu tio.
"Não deixe seu coração ser tomado pelo povo altivo, criança. São belos e fascinantes, sim, mas sofrimento aguarda aqueles que ousam contemplar a luz de seus semblantes e amá-la."
Girou o anel de cobre em seu dedo, sentindo o coração pesar. Ela... ela estava apaixonada por Naeron, mas... Mas e se o tio estivesse certo? Humanos eram volúveis e elfos, quando decidiam amar, amavam profundamente. Era raro, realmente muito raro, que humanos e elfos se unissem; Naeron estaria acima dela mesmo que seu pai fosse rei e ela sua herdeira.
— Este de fato é um belo anel — a voz da avó a fez sair de seus pensamentos quase que com um sobressalto; só então notou que ela sentara na outra poltrona próxima, e a xícara em sua mão estava vazia.
Observando-a, constatou que não havia sinal algum de reprovação em seu olhar, apenas certo divertimento enquanto a encarava com os olhos brilhantes.
Eirwen suspirou.
— Naeron me deu — revelou o que provavelmente Ceridwen já sabia — Antes que eu voltasse para cá.
— Hm — fez um gesto elegante com a mão — O presente de um elfo é algo para se alegrar, pois realmente simboliza amizade e afeição.
— Talvez — encarou a jóia — Por que está me dizendo isso, vovó?
— Porque seu destino já está entrelaçado ao de Naeron, de alguma forma. Embora, talvez, não seja da forma que você deseja — respondeu, apontando para o anel, deixando-a sem fala — Já é tarde, acho melhor descansarmos.
Alguns minutos mais tarde já estava em seu quarto com as vestes de dormir; sentia-se cansada e desabou sobre a cama, puxando as cobertas para cima de si. Tudo estava tranquilo e quieto, a chuva batia insistentemente contra o vidro da janela, em um som relaxante, e o vento rugia do lado de fora.
Adormeceu sem demora, sem nem mesmo dar-se conta disto, e seus sonhos eram uma mistura de imagens borradas que mal conseguia distinguir. Até que tudo se transformou em escuridão.
Não era a escuridão tempestuosa que costumava habitar seus sonhos, e sim uma escuridão gélida e silenciosa, que parecia envolvê-la em um abraço mortal. Garras pareciam se fincar em sua carne, mas Eirwen nada conseguia ver; estava imobilizada, não conseguia nem ao menos respirar. Era como se estivesse sendo aprisionada e o medo encheu seu coração.
Começou a ouvir uma voz, distante; não compreendia o que falava, mas a conhecia.
Acordou em sobressalto e desorientada, encarando o breu que estava o quarto. Não conseguia mais ouvir o som da chuva, porém ouvia o vento uivar do lado de fora; algo fez com que ela estremecesse, sentia que algo estava errado.
Levantou da cama, agarrando sua faca e jogando um manto de veludo sobre os ombros, saindo para os corredores em seguida. Estavam em completa escuridão, assim como seu quarto, e nenhuma tocha encontrava-se acesa, o que era realmente estranho.
Não haviam guardas em seus postos.
— Ei! — gritou, e sua voz ecoou diante de si — Ei!
Ninguém respondeu e ninguém pareceu acordar assustado por conta de seus gritos no meio do corredor. Continuou avançando, deixando que os pés a guiassem até as escadas, onde finalmente encontrou tochas acesas; pegou uma delas e continuou descendo os degraus, indo em direção à entrada.
As grandes portas estavam escancaradas e o forte vento soprava folhas molhadas para dentro, muitas delas a atingiam de forma impetuosa e giravam pelo saguão, erguendo-se no ar.
Sentiu arrepios por toda a pele ao se colocar diante das portas, pois tão bons eram seus olhos de arqueira que podia ver com clareza os portões da fortaleza.
A figura encapuzada era alta, mais alta que humanos, mais alta que os elfos que já havia conhecido, e estava parada ali, diante dos portões. Eirwen sabia, de alguma forma, que sua intenção era entrar, porém algo a impedia.
Uma mão foi erguida — escura e terrível, com dedos tão finos que pareciam garras afiadas — em sua direção e ela arregalou os olhos, paralisada. Sentia o sangue gelado nas veias; sentia a escuridão ao seu redor aumentar, mas dessa vez sabia que não estava presa em um pesadelo.
O guincho veio em seguida, agudo e alto, ouvia em sua mente e parecia atingir cada ponto de seu corpo.
Caiu de joelhos, tapando os ouvidos, mas isso não adiantava; a cabeça doía, o corpo doía...
A dor era tanta que tudo ao seu redor escureceu.
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