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Richmond, 1949.


LAURA TRABALHAVA na propriedade dos Harvey desde que era uma criança, e sempre teve um apreço imenso por Sebastiana — principalmente porque ela fora a responsável por custear seus estudos. Se era alguém letrada e inteligente, Laura devia tudo isso a viúva dona do casarão onde agora — tomando o lugar da mãe — era governanta.

Na metade de 1949, patroa e preceptora haviam percorrido os oito quilômetros que separavam a propriedade dos Harvey do núcleo urbano de Richmond para conferirem com os próprios olhos a inauguração de um novo museu, em homenagem a um boêmio escritor que havia falecido um século antes. Na ocasião, Laura se sentiu extremamente feliz em acompanhar de perto um evento tão importante para a sociedade aristocrata de Virginia e não deixou, nem sequer por um segundo, de agradecer a patroa pela oportunidade.

Apesar de tudo, não era exatamente estima que Laura sentia pela sra. Harvey naquele momento. Não, o que ela sentia era uma mistura de raiva e frustração. Sua patroa — que enfrentou crises de fraqueza e mal-estar logo após observar um dos retratos do acervo do museu — tinha lhe ordenado que acordasse muito antes que as galinhas e se dirigisse ao riacho, que ficava há alguns quilômetros do casarão, para pegar um pouco de água.

— Mas, minha senhora, não posso mandar um dos criados ou fazer isso em outro momento? — Perguntou a governanta quando, no dia anterior, Harvey terminou de lhe dar as instruções.

— Não — a mulher gritou —, você mesma vai fazer isso, do modo como lhe instruí.

— Mas...

— Sem mas, Laura. Estou mandando.

A governanta já havia tropeçado uma dúzia de vezes, fazendo o lampião sacolejar e derramar querosene em suas vestimentas e em suas mãos. Não foram poucas as vezes em que xingara a patroa de desgraçada.

É claro que Sebastiana não estava mais com o juízo perfeito. Laura tinha percebido isso quando, mesmo após uma dezena de lavagens, sua patroa alegou sentir um forte cheiro de urina de gato em seu quarto — o que desagradou a governanta tanto quanto ter acordado 05h da manhã para ir até o riacho pegar água. A sra. Harvey não tinha dito, mas Laura sabia que sua patroa pretendia fazer algum tipo de simpatia para afastar espíritos de sua propriedade.

Enquanto seguia o trajeto, a governanta mirou o céu e não viu sequer um vislumbre do alvorecer. O que era bom. Se a sra. Harvey desconfiasse que ela não pegara a água do riacho, com um pote de barro, antes do sol nascer, certamente estaria no olho da rua.

A mulher sorriu quando escutou o barulho das águas, mas quando se aproximou mais do riacho, ouviu algo diferente. Som de passos. Algo parece ter se movido, mas o quê? É sua mente. Ela está pregando peças em você, continue. Laura decidiu continuar o caminho, mas só precisou dar alguns passos para escutar o barulho novamente. Tinha algo... correndo?

Laura sentiu frio, muito, muito frio. Ela esperou, ouviu, mas só o que havia era o silêncio, que era ainda mais perturbador que sua ausência. Ela estava assustada. E agora? O que iria fazer? O medo a desnorteou. Ela já não se lembrava do caminho até o casarão, do lugar onde estava, ou, até mesmo, da data de seu aniversário. Tudo que conseguia sentir era medo, nada mais.

Deixe de ser frouxa, mulher. É apenas coisa da sua cabeça, nada mais. Vá buscar logo a maldita água da sra. Harvey.

A governanta respirou fundo e acelerou os passos. O que, claro, foi um baita erro. Quando a mulher viu, já estava no chão. Havia se esquecido de que o solo próximo ao riacho vivia encharcado. Na queda, se viu obrigada a soltar o pote para buscar sustentação com uma das mãos.

Graças a Deus o lampião não apagou, agora é achar o bendito pote e torcer para que ele não tenha se partido na queda.

Com a fraca luz do lampião, Laura tateou o chão em busca do pote, mas sua mão encostou em algo molhado e pegajoso. Quando aproximou a mão direita do lampião viu que era sangue. Sentiu as falanges dos dedos formigarem levemente e os batimentos ainda mais acelerados que antes.

Quando se avizinhou mais do local de onde retirara a mão, a luz do lampião revelou a fonte daquele sangue fresco e pegajoso. Laura derrubou o lampião e se afastou, sufocando um grito com as duas mãos. Não podia acreditar que tinha acabado de olhar para o corpo esquartejado de sua patroa.

— Minha Virgem Santíssima... — foi só o que a governanta conseguiu falar antes de desmaiar.

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Sempre que o mal é concebido, nas profundezas do inferno um demônio sorri. Mas a bem da verdade, em 1848, quando o artista C. T. Tatmam fixou uma imagem em uma placa metálica, obtendo um resultado ricamente detalhado para a época, com infinitas tonalidades de cinza, não foi apenas um demônio que sorriu. O inferno todo gargalhou, tão alto que é provável que os gritos guturais tenham sido ouvidos até mesmo onde os pássaros voam, onde os relâmpagos brilham e de onde a chuva cai.

Protegeram-me com um cristal, hermeticamente me fecharam e o retratado me expôs em sua sala de estar de paredes claras como areia, que acentuavam tanto os tons escuros dos estofados como a negritude de sua alma.

Poucos meses depois, Edgar Allan Poe foi encontrado em uma sórdida taberna de Baltimore, pelo velho amigo dr. James E. Snodgrass. Quatro dias depois, veio o óbito obscuro, que carregava em suas costas o peso do mistério ou talvez apenas a essência do próprio diabo. Discussões das mais variadas foram suscitadas. Espancamento, epilepsia, dipsomania, enfarto, intoxicação, hipoglicemia, diabetes, desidrogenase alcoólica, porfiria, delirium tremens, raiva, assassinato, envenenamento por monóxido de carbono e outras infundadas hipóteses.

Não obstante, eu matei Edgar Allan Poe.

O que o matou foi a própria manifestação física de sua aflição.

Seu próprio e possuído retrato.

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O reverendo Green tinha ciência de que, às vezes, é possível escutar um barulho a noite sem que sua origem deixe de permanecer um mistério. Sabia também que em outras ocasiões é possível sentir que algo lhe toca sem que nada exista a suas costas.

Imaginação ou mistério?

O reverendo não buscava respostas, mas esperava encontrar uma solução durante a madrugada em que, corajosamente, na companhia da jovem irmã Elizabeth, usou um pincel e um pouco de tinta branca para escrever Casa de Satã na parte inferior da placa de madeira que identificava que a velha e pouco interessante casa de pedra localizada no número 1914 da E Main Street era, na verdade, o Poe Museum.

Da janela da parte superior da casa, observei ambos cumprirem o que chamavam de "ofício religioso". Irmã Elizabeth, em seu hábito de freira, parecia apressada ao derramar água benta por toda a entrada do museu e, no entanto, o que mais me agradou foi notar como o reverendo Green esforçava-se para mascarar com um sorriso as rugas de preocupação que marcavam sua face e salientavam ainda mais sua meia-idade.

Enquanto pintava a placa, Green proferiu palavras em latim, trechos da Bíblia Sagrada e, sem jamais deixar de sorrir, rezou para que seu Deus derramasse fogo dos céus e exterminasse de Richmond o mal que a dominava. Parecia ridículo o modo como clamava e, principalmente, o jeito como sorria. Um sorriso que, sem dúvidas, não estamparia sua face por muito tempo.

Não obstante, o que era para ser um empecilho acabou se tornando um incentivo a curiosidade humana, e na segunda-feira que marcou a reabertura do Poe Museum para o Halloween, a velha casa de tijolos, com estreitas escadas que sustentaram por anos o peso de Edgar Allan Poe, estava repleta de pessoas que sentem, mais do que pensam; de pessoas sonhadoras e que confiam nos sonhos como as únicas realidades.

Mas ainda havia um problema.

Um problema que me fazia pensar — enquanto observava humanos imbuídos de solidão buscarem companhia no acervo do Poe Museum.

O reverendo Green tinha conseguido chamar a atenção do Vaticano e não demoraria muito para que um cardial de Roma trouxesse para Richmond sua púrpura batina. Entretanto, tinha um ponto fraco — esse reverendo —, embora muitos o considerassem digno de apreço. E era justamente essa fraqueza que possibilitava que eu me manifestasse em sua vida; que me possibilitava induzi-lo ao pecado e forçá-lo a cair em tentação.

Green não possuía experiências amorosas — claro —, mas ainda assim descumpria vergonhosamente o preconizado pelo Concílio de Latrão e, vez ou outra, acordava em um quarto desconhecido, com uma garota nua e, supostamente, dopada pelo ópio e pelas bebidas, ao lado de um relógio marcando altas horas.

Apesar de seus pecados, eram poucas as minhas influências em sua vida — Green era esperto o suficiente para manter-se bem longe do museu. O reverendo Frey, seu antecessor, o havia instruído muito bem antes de partir dessa para pior. Antes de entrar no Poe Museum e encarar meus olhos. Antes que eu o fizesse sentir um mal-estar. Antes que as garras da possessão se fechassem sob sua garganta.

Quem via Green a discursar sermões, quase podia afirmar que seu passatempo preferido era cumprir o ofício religioso — mas, a bem da verdade, não era! Mesmo que ele não tivesse encarado meus olhos, o reverendo havia se aproximado do museu, e eu sabia que durante os intervalos entre um sermão e outro, ele ficava a observar Elizabeth — enquanto a jovem beata trocava as velas dos inúmeros candelabros da igreja. Green imaginava como seria ver aquela pele imaculada sem todos os panos que a cobria; como seria tocar os belos atributos e as curvas bem delineadas que ele sabia existirem por debaixo daquele hábito.

Sua perversidade o condenava.

E sustentava meu Grande Plano.


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