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NÃO SE SABE mais quando vai chover nesse lugar. Uma brisa longínqua levanta poeira dos campos devastados, os solos não produzem mais, e a miséria aumenta a cada amanhecer, assim como as orações.
A maldição cessou por hora, mas decerto voltará. Haverá quem mude esse destino?
Lembro-me bem de quando eram felizes, apenas crianças vivendo suas vidas, escolhendo seu caminho como qualquer mortal.
Viviam em paz com o Clã de Luna — Feiticeiros das Terras do Extremo Norte, protetores do mistério e da magia.
Do alto observei, por milênios, gerações e gerações, de homens bons e maus; vi a riqueza dos perversos, e a luta dos honestos num mundo que, aos poucos, sucumbiu à própria maldade. Mas também iluminei casais apaixonados, acolhi amores proibidos em minhas sombras, e refleti sonhos de um novo amanhã nos olhos de milhares.
Hoje meu reflexo é uma lápide para aqueles que repousam no fundo do Rio das Almas. Vítimas e seus algozes ocupam o mesmo lugar, aguardando o momento em que serão convocados segundo seus corações. O luto é a cor oficial de Lost Garden nesses dias, em contraste com o sangue que ainda suja a rua, e as cinzas que se espalham pelo ar. Alianças foram rompidas, famílias dizimadas, e os humanos estão agora à própria sorte!
A história que vou lhes contar teve seu início há cem anos, quando uma Feiticeira de Luna se apaixonou por um comum. Enganada e abandonada ela lançou sobre Lost Garden uma maldição:
"A cada cem anos uma feiticeira surgirá entre os comuns, e com ela um véu negro cobrirá Lost Garden. Os corações negros emergirão de trás das máscaras da ilusão, e um ao outro destruirão."
E assim foi. No último dia do mês da lua de Júpiter, no décimo segundo badalar dos sinos, uma brisa de morte soprou 'Eu te amo, Leonard' por toda a cidade, e como num chamado eles se levantaram, vindos de todos os lugares, vivos ou mortos, corações cheios de maldade e escuridão, iniciando uma noite de horror. Um véu negro repousou sobre a cidade, encobrindo a razão, e liberando os piores instintos daqueles pobres diabos.
O cheiro de sangue e morte passou a dominar as ruas em instantes, e ao amanhecer tudo que se via eram corpos mutilados, decapitados, ensanguentados; e o lamento dos poucos que ficaram.
O centenário da maldição ganhou uma data especial no calendário da cidade, uma espécie de dia dos finados. Os Feiticeiros de Luna se mantinham afastados. Viram que nada de bom viria de uma convivência com os comuns; seres gananciosos, cheios de ressentimentos. Escondem maldade em seus corações, enquanto sorriem. São crianças perdidas. E o Centenário de Magnólia — como passou a ser chamado — era mais uma razão para que se concentrassem numa tentativa de quebrar a maldição. Eles não sabiam ainda quem era a jovem que a carregava, mas precisavam se preparar, pois o dia estava chegando.
Do outro lado da floresta, uma garota aparentemente comum levava uma vida dura de trabalhos e humilhações. Diara era funcionária de uma das tabernas mais mal frequentadas de Lost Garden. Vivia rodeada por bêbados e meretrizes, sofrendo ameaças ou ouvindo propostas indecorosas por conta de sua beleza. Ela odiava aquele lugar com todas às suas forças, o ódio que sentia as vezes a cegava, e por mais que quisesse se controlar, algo dentro dela pulsava pedindo por sangue.
— Ei, belezinha, que tal servir mais um bom gole desse vinho de merda que vocês vendem aqui? — disse um bêbado qualquer, sentado em um canto dá taberna.
— Pois não, senhor. — respondeu de forma automática para evitar uma briga.
— Você é mesmo uma belezinha! — disse ele quando ela se aproximou para servir o vinho que era realmente ruim. Ao se curvar uma pequena pedra negra presa num cordão de couro pendeu de seu peito. — E que outra belezinha é essa aí que você carrega no pescoço? — quis saber, analisando o pingente.
— Não é nada. Só uma pedra qualquer. — respondeu, tentando não deixar transparecer o valor que a pedra tinha para ela. — Posso ajudá-lo em mais alguma coisa, senhor?
— Não, belezinha, pode ir agora! — ele respondeu de forma desconfiada, dando um tapa na bunda de Diara enquanto ela se afastava.
Diara sentiu seu estômago revirar de nojo, e desejou matá-lo com suas próprias mãos, mas não podia retrucar, não depois do interesse que ele demonstrou na pedra. Além do mais, perder aquele emprego horrendo era um luxo ao qual a moça não tinha direito. Ela fora deixada na roda dos injetados quando ainda era um bebê, mas fugiu do convento assim que teve idade suficiente para trabalhar, e aquele foi o único lugar onde a aceitaram.
Mais algumas mesas servidas, e os poucos bêbados que sobraram subiram para os quartos com suas meretrizes; era o fim de expediente, a hora favorita de Diara. Sua casa era uma cabana de madeira mais para o norte da cidade, bem perto da floresta. Ela costumava seguir seu caminho, levando consigo as sobras de comida da taberna, chegava em sua cabana se deitava na rede perto da janela para me olhar, e também às estrelas. Ela conversava comigo como fazem os amigos íntimos, e eu a iluminava em resposta. Mas naquele dia foi diferente. Ao fechar a taberna ela notou que algo estava por vir. Percebeu que alguém a esperava do lado de fora, mas mesmo assim seguiu sua trilha segurando firme sua cesta.
À passos rápidos ela cruzou a pequena praça da igreja enquanto os sinos anunciavam a meia noite. Quando entrou na trilha que dava para sua cabana foi cercada pelo bêbado indiscreto da taberna.
— Pedra sem valor, não é mesmo, vadia?! — e deu uma bofetada em Diara, que foi ao chão com o golpe. — Vamos ver se é sem valor mesmo! — E se posicionou por cima da moça, imobilizando-a.
— Não faça isso, por favor! É a única coisa que minha mãe me deixou! — pediu. — Por favor!
— Várias como você não tem mãe, nascidos de uma chocadeira qualquer! — cuspiu no chão, elevou a mão ao peito de Diara para puxar o cordão.
Quando ele a tocou, o sino deu a décima segunda badalada e algo despertou em Diara. Seus olhos ficaram negros como a pedra que carregava pendurada em seu pescoço, ela sentiu-se tomada por uma força maior.
— Saia. De cima. De mim. — ela ordenou, sentindo uma fúria violenta tomar o seu corpo.
— Me tire! — debochou o bêbado.
— Quão negro é o seu coração?— perguntou, com um olhar sádico, enquanto colocava a mão em forma de garra no peito do homem desconhecido, caído sobre ela. — Vamos descobrir o quão podre ele é! — e sorriu, enquanto afundava os dedos no peito do sujeito, que gritava.
Ela enterrou a mão no peito dele, e segurou firme o músculo pulsante, fazendo com que os gritos se tornassem gemidos afônicos. — Há muita maldade aqui, senhor, devia se envergonhar! — e então, com um puxão violento ela arrancou o coração do bêbado desconhecido. Enquanto olhava aquele músculo ensanguentado e sem vida em sua mão ela sentiu um prazer que até então não conhecia: o prazer de matar. Algo floresceu em Diara naquele momento, um furor vindo de outras eras, como uma herança!
Ao desvencilhar-se do corpo imenso e morto do bêbado da taverna, a moça seguiu seu caminho para casa. Ao chegar, lavou-se para retirar o sangue que cobria seu peito, vestiu-se para jantar, e olhar o céu como faria qualquer outra noite, e deitou-se para dormir. De repente, num sonho, uma mulher lhe apareceu, sentada aos pés da escada da igreja, aos prantos. Era noite, e não havia na rua uma alma viva sequer, além daquela pobre mulher desolada. Ao se aproximar notou que ela era uma jovem bela, longos cabelos, negros como seu vestido, e no peito levava um colar, uma pedra negra como a que ela mesma tinha.
— A pedra! — ela disse para si mesma. Mas ouvindo, a moça levantou o olhar para ela, e então um véu negro desceu sobre a cidade, e os sinos começaram a soar descompassados. A mulher se levantou, e com ela um espectro negro — aparentando ter vida própria — começou a pairar sobre ela, e esticar-se como uma malha por todo canto a sussurrar 'eu te amo, Leonard', e então os sinos pararam.
— Não tenha medo criança! — disse a mulher, com um sorriso diabólico nos lábios. — Isso é só um sonho.
— Mas... A pedra... — balbuciou Diara.
— Sim. A esmeralda negra é o sinal da escolhida. Você tem um dever a cumprir! — começou a dizer, e então homens emitindo luzes verdes de suas próprias mãos surgiram de todos os lados a cercando — Os maus precisam morrer. A maldição... — foi interrompida por um dos homens, que a pegou pelos braços e puxou, enquanto os outros davam cobertura. — A maldição precisa se cumprir... — gritou a mulher, enquanto era arrastada.
Diara parecia flutuar, sendo puxada por um imã para perto daquela mulher. Quanto mais a puxavam mata adentro, mais Diara era sugada por aquele sonho. Ela reconheceu as árvores dos arredores de sua cabana, até que o caminho se perdesse na mata. De repente, uma grande fogueira verde surgiu do chão, e aos gritos a mulher foi consumida por completo, restando apenas a pedra negra que carrega em seu peito.
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