11 - Benta
"Um coração puro sempre retoma sua pureza depois de uma tempestade de mágoa!"
Fabiana andou por horas, depois de sair da casa da tia. Quando a noite chegou, ela se abrigou embaixo de um viaduto e adormeceu mesmo tentando ficar acordada, com a fome e com o medo tomando conta de seu ser. O dinheiro que tinha deu apenas para o primeiro dia. No dia seguinte, ela foi para outro viaduto, durante o dia, passou a ajudar um vendedor de cachorro quente na praça e teve o almoço garantido.
Orava sempre que ia dormir, pedia proteção, pois o que mais temia estava ao alcance dela a hora que quisesse, que eram os outros moradores de rua, por quem já fora ameaçada. Ela orava com afinco e fé, pois não podia pagar um lugar para ficar. Era menor, seria expulsa dos lugares, e o que ganhava ajudando a vender os lanches só dava para comer.
Foi perseguida por duas garotas de programa, uma jovem e outra que parecia ser mãe dela, pois se pareciam muito fisicamente, as mulheres acharam que ela estava tentando roubar seus clientes.
— Só estou procurando lugar para passar a noite, por favor, não me machuque — suplicou, sendo segurada pelo braço e pela nuca pela garota de programa mais nova, enquanto a outra portava uma garrafa quebrada.
— Suma daqui, ou rasgo a sua cara todinha. Esse ponto é nosso.
— Não quero ponto de vocês, eu juro. Só estou querendo um lugar pra passar a noite. Eu vivo por aqui, não quero saber dessas coisas, não.
— Tem quantos anos? — indagou a mulher mais velha, analisando-a.
— Quinze.
— Ih, some daqui. Vaza! Menor sempre dá problema e é preferência de alguns clientes. — A prostituta experiente ponderou acenando várias vezes para que Fabí saísse.
Fabí foi solta das mãos da mulher e correu. Trocou várias vezes de local na rua, achou uma construção abandonada e tentou passar uma noite lá. Viu tudo fechado com tapumes e entrou, mas já estava habitado por usuários de drogas que, depois de ter o convite para ficar ali recusado por ela, tentaram atacá-la.
Fabí correu de lá e, arfando, conseguiu se abrigar atrás de um restaurante. Havia uma marquise, então se chovesse não se molharia. No dia seguinte, cansada de perambular em uma terra que não lhe recebera muito bem, Fabí resolveu pegar carona e sair da capital, depois de ter sido expulsa dos fundos do restaurante.
A rua não era um bom lugar. A menina orava em lágrimas. Lembrava da família e percebia que perdera seu amor por causa de um capricho seu. Não desejava a rua para ninguém, somente os seres desprezíveis moravam nela, pensava assim, mas sabia que nunca mais em sua vida olharia moradores de rua com os mesmos olhos. Eram pessoas mesquinhas, que estavam passando por uma fase ruim, muitos procurando na droga a família e apoio que não tiveram.
Chegou a Lauro de Freitas, a 15 km da capital baiana, depois de pegar carona com um caminhoneiro. Ela desceu em um posto onde os caminhoneiros paravam para comer e conheceu seu anjo da guarda: uma mulher negra, aparentando ter uns cinquenta anos de idade, dona de uma lanchonete, que ostentava um belo jardim ao lado.
— Você vem de longe, não é minha filha? — Benta perguntou, fitando-a nos olhos assustados. — Não falo de hoje, falo de antes.
— Sim. Preciso de um emprego. O dinheiro que tenho só dá para fazer um lanche.
— Quantos anos você tem, menina?
— Quinze. Mas já trabalhei. Posso lavar pratos, limpar o chão. Por favor, não me mande embora. — Benta sorriu colocando uns pastéis para fritar num imenso caldeirão com óleo.
— Por essa porta tem um corredor e no final dele tem um quarto. Pode colocar suas coisas na cama. Tem um banheiro na porta ao lado. Daqui a uma hora o movimento daqui aumenta e vou precisar que você me ajude, mas vamos conversar direitinho. Meu nome é Benta.
— Eu sou Fabiana. Muito obrigada — disse com os olhos marejados e se dirigiu ao quarto, muito simples, mas aconchegante. Tomou banho, trocou de roupa e voltou à lanchonete.
— Limpe as mesas. Entregue os pedidos aos fregueses — Benta disse colocando um prato com dois salgados sobre o balcão. — Quase todos que vêm aqui são caminhoneiros, então tenha cuidado. Eles têm mania de ficar de conversa fiada para cima das meninas. — Abriu uma garrafa de refrigerante e empurrou para perto do prato.
— Eu entendi, dona Benta. Não sou de enganar fácil. Mais uma vez muito obrigada — agradeceu e pegou o pedido para levar para um cliente que estava esperando observando notícias na pequena TV suspensa na parede.
Depois de um dia árduo de trabalho, Fabiana queria apenas uma cama para dormir. Mas Benta queria conversar com ela naquela mesma noite. Fez um chá calmante e tomaram juntas.
— Minha filha, eu nunca neguei guarida para ninguém, mas preciso saber de onde você veio. Por que está aqui? Você é menor de idade.
Fabiana contou toda a sua história, enquanto tomava o chá. Emocionou-se quando falou da morte do pai e recebeu um caloroso abraço de Benta, que, ao ver suas lágrimas, conseguiu ver parte de seu passado.
Benta descobrira-se médium ainda na adolescência. Tinha a capacidade de ver vidas passadas. Quando criança, costumava ter pesadelos com visão do dia a dia, pois era incontrolável em seu desenvolvimento. Sua mãe, espírita, levara-a a uma casa de oração, em busca de ajuda. E lá ela começara a desenvolver e controlar suas visões. Trabalhava no Centro Espírita Caminho da Salvação, uma vez por semana, por onde milhares de pessoas passavam todos os dias em busca de ajuda ou simplesmente para ouvir as sábias palestras que ministravam.
Casara-se aos 17 anos de idade, tivera quatro filhos e perdera dois. Morava com a filha caçula, Sandra, de 20 anos, que fora casada, mas se separara.
— Precisamos falar com algum familiar seu, filha.
— A senhora não me quer aqui? Eu não posso ficar?
— Claro que pode, mas eu não posso simplesmente aceitá-la aqui sem sua mãe saber.
Mesmo contra a sua vontade, Fabí ligou para a tia e avisou que estava bem e havia arrumado um lugar para morar. Ela foi indiferente e concordou sem fazer perguntas ao falar com Benta.
— Agora, sim. Depois falamos com a sua mãe — falou acariciando os cabelos da menina, que demonstrava cansaço.
A alegria de Benta era o neto Dionísio, filho de Samuel, seu filho mais velho, que morava em Salvador. Mas ficara muito feliz ao acolher Fabiana, que depois de tanto sofrimento e repensar sua vida e tudo o que fez com a família no Rio de Janeiro, voltou a ser aquela menina doce e brincalhona que sempre fora.
Benta sempre lhe mostrava o melhor da vida com metáforas. Na mesma proporção que sentia vontade de estar ao lado da mãe e do irmão, Fabí gostava de estar ali com aquelas pessoas que não quiseram saber se ela era pobre ou rica, bandida ou honesta, simplesmente a acolheram.
Benta apresentava Fabiana como filha e passou a ser chamada de mãe. Fabí voltou para a escola sob tutela de Benta, mas antes a quituteira a fez ligar para a mãe e avisar que estava bem.
— Mas ela me expulsou de casa, mainha.
— Ela não a expulsou, minha filha. Ela acha que você está com sua tia em Salvador. — Benta foi firme.
— Ela me expulsou. — Estava em lágrimas. Ficou nervosa, pois se sentia muito bem ali para precisar falar com a mãe e ouvir seus sermões de novo.
Benta notou que Fabiana sentia muita mágoa pelo que a mãe fez.
— Minha filha, coloque-se no lugar dela e depois se coloque no seu lugar.
Fabiana levantou a cabeça e a olhou limpando o rosto.
— Se você fosse ela, o que faria com você, depois de tudo o que você fez? — Benta indagou depois do silêncio de Fabiana, e acariciou seus cabelos negros. — Sua mãe perdeu o marido que amava muito, estava fragilizada. Sei que vai pensar no que fez, pois mãe é mãe. Você vai saber do que estou falando quando for mãe. O filho pode estar com quarenta anos e vamos nos preocupar como se fosse uma criança de quatro. Perdoe sua mãe, você não sabe até quando ela estará nesse mundo.
— Não quero que ela morra, mainha, juro que não quero isso. Sinto muita saudade dela, mas não quero...
— Você está se deixando dominar pelo orgulho. Todos nós cometemos erros, não somos perfeitos. Numa escola a gente aprende errando e consertando os erros, na vida é assim também. Já pensou se toda vez que errássemos o resultado de um problema de matemática deixássemos de corrigi-lo pelo simples fato de não querer mostrar que erramos?
Fabiana ligou para a mãe, mas ela não se encontrava no país. Duas semanas depois ligou de novo. Teve sucesso e ficou triste ao saber que sua avó materna falecera, apesar de não a conhecer — pois, depois que Laise se mudou para o Brasil, fora completamente ignorada pelos pais, conservadores demais para aceitar o relacionamento da filha. Fabí estava triste pela mãe, pois sentira uma dor imensa ao perder o pai.
— Silvia está cuidando bem de você, filha? — Ao ouvir aquela pergunta da mãe, Fabiana olhou para Benta. — Depositei os dois meses de mesada. Atrasei porque precisei viajar. Fernando está fazendo pós-graduação.
— Sim, mãe — respondeu em lágrimas, tentando limpar e não deixar a mãe saber. — A senhora está bem?
— Estou tentando ficar bem, filha. Vou semana que vem à Alemanha. Os advogados farão a leitura do testamento lá. Quando eu voltar nos falamos mais. Dê um abraço em sua tia.
— Sim, mãe. Se cuide! — Desligou o telefone e caiu no choro no colo de Benta, que a abraçou. — Minha mãe está mandando dinheiro para a tia Silvia, mainha. E ela não falou que me mandou embora da casa dela. Aquela safada está aceitando o dinheiro da minha mãe!
— Por que você não disse isso à sua mãe, filha? — Benta perguntou, fitando-a nos olhos.
— Porque ela precisa. Mora numa casa pequena demais, tem dois filhos.
Benta sorriu e a beijou na cabeça.
— Seu coração está se livrando de todo tipo de mágoa, mesmo você não querendo isso.
A jovem só falou com a mãe sobre morar com Benta, três meses depois. Não queria deixá-la enganada. Laise pediu que voltasse para casa, mas ela se recusou, avisou que estava bem e permaneceu na casa de Benta.
Fabiana era a filha perfeita para a quituteira até se envolver com más companhias. Ingressou em duas faculdades em cursos diferentes e não foi adiante com nenhum dele. Fez um ano de Direito e dois anos de Medicina Legal, trancou para trabalhar e não retomou mais. Contou com o apoio de Benta em todas as decisões e resolveu estudar enfermagem, concluindo o curso com êxito. Prestou concurso e passou a trabalhar na equipe de resgate do 24º batalhão do Corpo de Bombeiros Militar do Estado da Bahia.
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