08 - Denise
"Ninguém se torna gay, já nasce assim, cedo ou tarde acontece de sentir!"
Ana Paula não era muito próxima de Ângela, mas sentira falta dela e fora ao hospital, antes de ela viajar para conhecer a noiva de Anselmo.
— Você está bem?
— Sim, e você? — Antes que Ana Paula respondesse, Ângela continuou sentada atrás de sua mesa: — Estou indo à Bahia conhecer a noiva do Anselmo. Parece que dessa vez ele acertou. Está muito apaixonado, só fala nela.
— É, alguém precisa ser feliz nessa família, não é mesmo?
— Papai me falou que você passou na PUC, fiquei feliz por você.
— É, passei. Vou indo, vejo que você está ocupada.
— Estou um pouco. Depois nos falamos.
— Tudo bem, só vim te dar um abraço e te desejar boa viagem.
Ângela se levantou e abraçou a irmã, fria como sempre.
— Sentiu saudade? — Ângela indagara forçando um sorriso.
— Não. Só estava muito quente lá fora. Tchau! — despedira-se e saíra.
— Irônica como sempre! — Ângela dissera para si, entendendo a mensagem da irmã depois de seu frio abraço.
∞
Ângela havia se tornado fria e calculista, pois sua profissão exigia isso, mas agia assim com os familiares e os poucos amigos que tinha, Fernando e Renata Ives, uma ginecologista obstetra que trabalhava no Bueno Sanchez.
Renata era casada com um empresário, Valentino Ives, dono de uma rede de supermercados. Era negra, feliz com a vida que levava e espírita assídua. Quando vira Fernando transtornado ao ver um grupo de espíritos em volta de Ângela durante uma cirurgia, ela o levara ao Centro Espírita Rita de Cássia, casa espírita que ela frequentava.
— Vem com a gente, Ângela. Acho que vai te fazer bem.
— Não, vai contra todos os meus princípios. Não acredito, não há argumentos. Ainda acho que o Fernando estava cansado.
— Tudo bem, então. Vamos sozinhos. — Beijara-a no rosto e saiu com o médico.
Naquele mesmo dia, Ângela descobrira que estava grávida. Quase explodira de felicidade. Fora correndo à casa do pai e encontrara apenas as irmãs conversando.
Ângela estava tão feliz que seus olhos estavam brilhando como nunca brilharam. Ela abraçou as duas irmãs com força.
— Estou grávida!
— Que coisa boa, parabéns! — Denise dissera e abraçou a irmã novamente.
— Parabéns, Ângela. Você merece.
— Cadê o papai? Preciso contar a ele.
— Ainda não chegou — Ana Paula respondeu, feliz pela irmã.
— Sério? Ele saiu mais cedo do hospital, disse que vinha direto para casa.
— Fica para jantar, pode ser que ele chegue a tempo. Ele não tem vindo para casa cedo, mas se disse, talvez venha. Conta, já tem nome? — Denise quisera saber demonstrando entusiasmo.
∞
Foi o dia mais feliz da vida de Clovis saber que a filha estava grávida. Conseguiu até esquecer o aborrecimento que teve com sua namorada Marilia, trinta anos mais jovem que ele.
— Tenho uma ótima notícia para você, amor! — dissera Marilia, empolgada.
— É? O que é? — Clovis perguntara, enquanto comia a sobremesa do jantar.
— Eu estou grávida! — exclamara, sorrindo.
Clovis largou a colher, usou um lenço para limpar a boca e se levantou, furioso.
— Que idiotice é essa, Marilia?
— Não é idiotice, meu amor, estou com...
— Não quero saber de desculpas. Você garantiu que estava se protegendo. — Pegara o telefone e ligara para um amigo seu. Afastara-se e conversara por poucos minutos com o amigo. — Muito obrigado, Jacob, amanhã às dez ela estará aí. — Desligara já olhando em volta em buscar de papel e caneta. — Você vai amanhã neste endereço dar um jeito nisso.
— Dar um jeito em quê, Clovis? Você está sugerindo que eu tire a criança, é isso?
— Não é uma sugestão, é uma ordem. Não posso ter filho, sou um homem conhecido, não posso ter mais filho.
— Você quer esconder o nosso filho assim como me escondeu por cinco anos?
— Não vou esconder filho nenhum, você não vai ter essa criança, Marilia. Está marcado o horário para você amanhã. O médico é meu amigo, é de inteira confiança.
— Eu não vou fazer aborto. Não sou uma assassina.
— Não me venha com essa conversa. É apenas um feto. Assassinato seria se fosse...
— Não vou fazer isso, Clovis. E não preciso de você para ter meu filho.
— O que você está querendo dizer com isso?
— Isso mesmo que você entendeu. Eu não vou fazer aborto, não vou tirar meu filho, e se você não quiser vê-lo, você não precisa. — Marilia estava em lágrimas. — Vamos manter essa história, só nossa, morta e enterrada, como sempre esteve.
— Pensa bem, Marilia, homem bom igual a mim você não vai encontrar. Vai sustentar esse filho como? Com o seu salário de garçonete?
— Que seja, Clovis, mas essa culpa eu não vou levar, e não quero. — Abrira a porta do apartamento, furiosa. — Vai embora daqui.
— Olha o que você está fazendo — Clovis falara em tom de ameaça.
— Eu decidi ter esse filho e você não vai me tirar esse direito. Já basta ter me escondido por todos esses anos. Vai embora.
— Esse apartamento...
— Eu saio do seu apartamento amanhã mesmo. Só preciso dessa noite.
— Eu ia falar que você podia ficar com o apartamento, mas vejo que vai voltar para a favela. O bom filho a casa torna. — Clovis debochara meneando a cabeça com um sorriso no rosto.
— Voltarei, sim. Lá ninguém sente vergonha de mim. Vou ser bem-aceita de volta. — Passou as mãos nos cabelos, nervosa.
— Amanhã eu volto para saber o que decidiu sobre essa loucura. — Clovis apenas saíra depois de pegar a chave do carro.
O médico conhecera Marilia em um bar, onde a jovem trabalhava, e ele frequentava com uns amigos. Aos olhos da família, ele nunca mais teve mulher nenhuma, desde a morte de sua esposa.
— Amei muito a Alicia, não vejo necessidade de colocar outra pessoa no lugar dela. Foi a mulher que me fez mais feliz nesse mundo — garantira para a filha mais velha ao ser questionado.
Denise estranhava aquela situação: viúvo, sem mulher. Era esquisito, mas não entrou em detalhes com o pai, pois conhecia o temperamento dele.
Às vezes tinha relações vazias de apenas uma noite, mesmo estando com Marilia, mas ninguém sabia. Pregava falsas lições de moral.
Quando Denise o viu, por acaso, saindo de uma boate, Clovis inventou que fora lá para acompanhar um parceiro de negócios e passou uma semana sem sair de casa depois do trabalho. Ela não foi adiante com o assunto para não o constranger, afinal era solteiro, mas o viu beijando a garota.
Clovis era isso, o falso moralista controlador, que gostava de tudo do seu jeito. Se não fosse, simplesmente ignorava, e quando fazia isso, conseguia ser glacialmente indiferente.
∞
Denise contara a Ernesto, seu marido, que vira o pai saindo de uma boate:
— Era um lugarzinho chulo.
— Meu amor, você não era iludida com a crença de que seu pai não ia ficar com mulher nenhuma honrando a memória de sua mãe, era?
— Não, mas o lugar é horrível, Ernesto.
— Denise, meu amor, coloque uma coisa na sua cabeça: homem é nojento! — Ernesto disse isso e viu a cara de horror que ela fez, abraçando-a e sorrindo. — Seja ele seu pai, seu filho... São nojentos. São animais.
— Você frequenta esse tipo de lugar, Ernesto?
— Lógico que não, não sou homem. — Riu ao levar um tapinha quase carinhoso da esposa. — Sou apenas um ser mitológico que teve a sorte de encontrar a melhor mulher desse mundo. — Beijou-a com ternura. — Deixa seu pai viver a vida dele. Ele precisa.
— O que achei asqueroso foi o fato de ele nunca aparecer aqui com uma namorada e ficar assim nesses lugares, arriscando-se.
Denise trazia seu instinto materno de muitas vidas atrás. Estava com quarenta e sete anos de idade, era simples, tinha uma rede de restaurantes na cidade, mas administrava pessoalmente o Violão Bar, na Barra da Tijuca. Era um local bem frequentado por celebridades e pessoas comuns entre héteros e LGBTs.
— Você devia proibir essa gente de entrar lá, Denise, isso não é certo — dissera Clovis, ao ver dois homens se beijando, certa noite quando foi falar com a filha.
— Papai, o que eu amo no Violão é isso. Não tem essa distinção, as pessoas que vão aceitam isso. Não tenho preconceito nenhum e quem tiver não frequente.
— Não estou falando de preconceito, filha. Um pai que leva sua família para lá e seu filho vê uma cena asquerosa daquela, não volta nunca mais.
— Não me importo com esse tipo de gente. E os LGBTs que vêm aqui, sabem se comportar. E se eu me lembro bem, o senhor viu isso ontem às dez da noite. Àquela hora não havia criança nenhuma lá e se houvesse foi uma demonstração de carinho, não houve nada obsceno. Inclusive estavam comemorando um ano de namoro. Já vi beijos de casais héteros também e nada mudou.
— Você é muito teimosa, não vou perder meu tempo. Quando der errado não diz que não avisei.
— Papai, eu estou nesse ramo há quase trinta anos, o senhor sabe disso, se der errado agora a culpa vai ser da minha administração e não por causa da clientela.
— Se seu filho se tornasse gay você não agiria tão liberal — dissera em desafio.
— Eu ficaria surpresa, mas o apoiaria, é meu filho. Toda forma de amor vale a pena. E depois ninguém se torna gay, papai, já nasce assim, cedo ou tarde acontece de sentir.
— Não. Isso não é possível. Deus não fez as coisas para serem assim.
Denise meneou a cabeça olhando para o pai, que saiu deixando-a sozinha, fazendo algumas anotações na agenda.
Sofreu muito com a morte da mãe, mas conseguiu seguir com suas coisas, cuidar das irmãs mais novas, Ana Paula e Ângela. Casou-se aos vinte anos e, aos vinte e quatro teve Emerson. Dividiu a atenção que precisava dar ao filho com a irmã Ana Paula que tinha apenas dois anos quando sua mãe se foi, vítima de um câncer no sistema linfático.
Alicia contraiu a enfermidade e faleceu, dois meses depois de descobrir a terrível doença. Artista plástica, esposa de médico cardiologista, Alicia era o tipo de pessoa que quando sentia algum mal-estar tomava um remédio qualquer, pois odiava hospital e tudo o que o envolvia. Dessa forma foi fácil ser derrotada pelo câncer. Estava com cinquenta e dois anos de idade quando desencarnou.
Ernesto entrou na vida de Denise para seguir sua missão junto com a dela, pois eram praticamente iguais. A única diferença era que Ernesto conseguia ser mais racional. Era administrador dos restaurantes da família, lidava direto com os gerentes dos respectivos estabelecimentos. De família paulistana de classe média alta, conheceu Denise em uma de suas idas ao Rio de Janeiro para passar férias. Era formado em publicidade e apaixonado pela cidade maravilhosa.
Foi amor à segunda vista, pois ele a viu com as irmãs na praia e sem querer jogou uma bola nas três, sendo xingado de irresponsável por Denise, que foi para casa furiosa. Seis meses depois mudou de ideia completamente a respeito de Ernesto, reencontrara-o no mesmo lugar e ele foi gentil e prestativo com ela. Em menos de um ano, ele se mudou para o Rio de Janeiro e oito meses depois se casou com Denise.
Mãe atenciosa, Denise sempre conversou muito com o filho sobre tudo: drogas, sexo, carreira, mulheres. Sentia orgulho dele, era estudioso, educado, trabalhador, estudante de fisioterapia. Mas sofreu muito quando aos doze anos de idade, influenciado por más companhias, ele experimentou cocaína. Foi expulso da escola, mas conseguiu sair do obscuro mundo antes do vício. Depois Denise redobrou a atenção ao filho e à irmã que tinha quase a mesma idade que ele.
Denise enfrentou uma crise no casamento quando Emerson teve contato com drogas. Os dois se culparam, pois trabalhavam demais. Ernesto exigiu que a esposa ficasse em casa para cuidar do filho, que estava sem atenção, criando um dissabor entre eles, pois Denise adorava trabalhar e conciliava tudo. Emerson melhorou e voltou a estudar com afinco.
Recuperando-se do problema com o filho, veio a separação de Anselmo, que sempre fora possessivo e entrou em depressão quando viu seu casamento com Anabela acabar.
Denise cuidou do irmão, dando apoio, levando a psicólogos para superar a separação brusca. Depois ficou sabendo que ele estava ameaçando a ex-mulher, mantendo-a em casa, mas casamento de fato, havia acabado muito tempo antes. Anabela viu em sua ida para o exterior uma forma de se livrar do marido.
— Eu o amava, Denise, juro, mas ele conseguiu acabar com meu sentimento. O ciúme dele é doentio, precisa se tratar. Ele colocou escuta em mim para saber se eu tinha um amante enquanto eu só estava trabalhando. Ninguém merece essa vida — Anabela contou, em lágrimas, e foi abraçada por Denise.
A empresária fora procurá-la para saber o que realmente aconteceu, pois Anselmo estava falando que ela o havia traído.
— Nunca o traí, Denise, estou sozinha desde que me separei dele, para respirar um pouco. Ele pensa que sim, mas não me separei para ficar com outro. Me separei para viver — dissera limpando o rosto.
— Oh, Anabela, eu sinto tanto. Jamais imaginei que pudessem estar assim. Você não se abria com a gente, eu poderia ter conversado com ele.
— Ele me ameaçava com os olhos sempre que eu chegava perto de você em algum evento na casa de vocês. Aquilo foi me cansando — dissera com pesar e recebera outro abraço da ex-cunhada.
Assim era Denise: 40 % emoção e 60% amor. Entrava de cabeça no que amava e defendia com tenacidade seus entes queridos. Naquele momento, reconheceu o sério problema do irmão.
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