07 - Acidez
"O amor é capaz de realizar grandes mudanças nas pessoas, a falta dele também!"
Ângela Bueno Sanchez sempre foi uma garota esperta e dócil, sorridente e quieta, muito estudiosa, sempre foi o orgulho dos pais.
Aos 17 anos, ingressara na faculdade de medicina com as melhores notas. Filha de Clovis, cardiologista, e Alicia, artista plástica, sempre esteve em contato com arte e com a medicina. Desenvolvera a paixão por botânica ainda na infância. Amava rosas, começara sua plantação de roseiras no quintal da mansão Bueno Sanchez — família de origem espanhola —, aos sete anos de idade.
Ângela também adorava desenhar. Quando não estava estudando, estava desenhando. Sonhava em se casar e ter muitos filhos. Conhecera Fernando quando entrara na faculdade. Ele estava no último ano e foi um sentimento mútuo. Romântico, sensível e gentil, Fernando era o sonho de toda mulher e com Ângela não fora diferente.
Namoraram por três anos e casaram-se. Depois do desastre que foi a festa de casamento, Ângela se transformara. Era doce e meiga e passara a ser amargurada e ranzinza. Reclamava de tudo, tratava as pessoas com aspereza, tinha apenas o apoio do marido, que a amava incondicionalmente.
— Na próxima vez que você deixar queimar comida de novo, Neusa, você está na rua. — Fora bem rígida com a cozinheira, que estava com ela havia dez anos. A cozinheira trabalhava com seus pais e foi morar com Ângela depois de casada com Fernando.
— Desculpe, dona Ângela, essa casa hoje está caótica. Faltou energia e tive que...
— Não quero saber de desculpas, Neusa. Você já sentiu o cheiro que está essa casa depois que deixou a comida estorricar? Horrível — esbravejou e saiu.
Neusa meneou a cabeça e foi preparar o almoço novamente. O prédio estava passando por obras e a queda de energia foi inevitável. Achando que podia dar conta de descer e ir buscar verduras frescas, Neusa saiu e deixou a comida no fogo, mas não contava com a falta de energia e precisou subir de escada.
— Essa mulher é horrível, dona Neusa — disse Laila, a arrumadeira nova. — Como a senhora aguenta? Por isso não dura ninguém aqui. Eu estava lá em cima, nem pude olhar a comida.
— Ela teve muitos problemas e por isso mudou depois que se casou. Era um doce de pessoa. E fica tranquila, você não teve culpa.
— Acho que esse doce estragou. Ela é um demônio. Implicou comigo porque eu estava com o fone de ouvido, pode?
— Tenha paciência.
— Não preciso disso, dona Neusa — disse e tirou o avental, demonstrando estar cansada demais para permanecer ali. — Seu Fernando é um santo, sabia?
— Oh, Laila, sua inútil. Cadê meu suco? — Ângela gritou da sala.
— Vou mandá-la enfiar esse suco... — Laila falou por entre os dentes.
— Tenha paciência, minha filha, emprego que pague bem está muito difícil.
— Paga bem, mas trata muito mal. Prefiro ganhar menos e ser tratada como gente. — Pegou o suco, colocou em uma bandeja e foi à sala de jantar.
Neusa se assustou quando ouviu o barulho da bandeja caindo. Ângela se aborreceu com o copo molhado e arremessou a bandeja para longe.
— Limpa essa porcaria e nunca mais se atreva a trazer suco para mim em um copo nojento desse jeito.
Todo esse espetáculo ela dava antes de sair para trabalhar. Estava fazendo um estágio remunerado em um dos hospitais da família.
Formara-se, fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos, onde morara por quatro anos. Tornara-se uma cirurgiã geral renomada em pouco tempo. Queria estudar psicologia e psiquiatria também, mas queria exercer a Medicina e passou a estudar o comportamento humano através de cursos extracurriculares da faculdade. Estudava programação neurolinguística, linguagem corporal, microexpressões faciais e tudo o que envolvia aquela área.
Sentia-se feliz, apesar da mágoa que carregava de Fabí. Os vídeos da festa estavam com todas as imagens nela ou nos convidados fazendo comentários ou na própria Ângela aos prantos. Isso foi entregue porque fazia parte do contrato, sem edição.
Sem contar no escândalo nacional que foi o grande casamento da filha de Clovis Sanchez.
— A culpa é sua, você a deixou vir. — Ângela jogara na cara de Fernando, logo depois da cerimônia.
— Eu nunca imaginaria que ela seria capaz de uma coisa dessas. Mas ela me paga!
— Como paga, Fernando? Só se ela conseguisse voltar no tempo para não fazer isso. Ela acabou com a nossa festa, com nosso casamento.
— Ela acabou com a festa, mas nosso casamento foi realizado. Espero que isso não atrapalhe nossa vida. Estamos aqui. Vamos ser felizes — disse e a abraçara com força. — Nós nos amamos e ela é apenas uma infeliz que não é amada por ninguém.
Seis anos depois do casamento, os dois viajaram para a lua de mel, que fora adiada por causa dos estudos de ambos.
— Nosso casamento começa agora — Fernando disse quando os dois entraram na suíte do hotel em Honolulu, presente de Clovis aos dois.
— Agora já podemos ter nosso filho!
— É o meu maior sonho! — Fernando sorriu e a levou para a cama. — Prometi ao Clovis, então vamos cumprir a promessa.
∞
Clovis já tinha um neto, filho de Denise, mas estava ansioso por um filho de Ângela. Emerson foi a alegria da casa, mas quem não gostara de sua chegada foi Ana Paula, filha caçula do cardiologista, que estava com três anos de idade. Se já não tinha muita atenção, ficara quase sem nenhuma. Exceto por Denise, que mesmo com o filho, cuidava da irmã.
Os filhos de Clovis cresceram com esse trauma: falta de atenção. Clovis sempre foi ausente. Mas Denise nunca deixara de apoiar os irmãos, principalmente Ana Paula. A jovem crescera sem a mãe. Era rebelde e não acatava as ordens do pai.
— Não entendo essa paixão pela Ângela. — disse Ana Paula, enciumada à mesa enquanto a irmã, Denise, tomava café da manhã.
— Antigamente eu sentia ciúme também, mas depois de um tempo... — Denise disse sem dar importância aos fatos.
— É chato, Deni... e não é só questão de ciúme, não. O meu pai tem uma filha só — choramingou Ana Paula, servindo-se de suco. — Eu estudo direto, passo em todos os cursos que quero e ele não esboça sentimento nenhum. Quando a Ângela fazia um desenho bobo, ele fazia uma festa.
— Eu sou bem mais velha que você. Você acha que não sofri com isso? Principalmente depois que a mamãe morreu, eu fiquei sozinha. Fui mãe de todos. Ele se isolou mais ainda. Entendo você, ok? Entendo que queira a atenção do papai, mas pense em você. Você tem tudo para seguir sua vida sem precisar da aprovação dele.
Clovis ouviu toda a conversa das duas, mas entrou na sala fingindo não ter ouvido nada. Beijou as duas e sentou-se para tomar café.
— Bom dia... Como estão?
Ana Paula olhou para Denise e fez sinal de pergunta, dando a entender se ele havia ouvido a conversa delas, pois nunca se interessava pelas filhas.
— Eu estou bem, papai. E o senhor? Trabalhou muito ontem, vi que chegou bem tarde. — Denise quis saber aproveitando o ensejo.
— Tive uma reunião com uns acionistas do laboratório Medeiros e Brandão. Estou querendo fazer uma parceria com eles, estão falindo.
— O que será que leva uma empresa desse porte a falir assim? — Denise indagou olhando para o vazio. Era administradora nata.
— Má administração tem dessas coisas? — disse Ana Paula ganhando o olhar surpreso do pai. — Ah, papai, passei para a PUC-Rio. Fiquei em segundo lugar, vou começar mês que vem.
— Para que curso? — disse, querendo ignorar o assunto. Em dois anos era o sexto vestibular que Ana Paula passava e não escolhia o que fazer.
— Medicina! — Ana Paula respondeu, tomando o suco.
Clovis a olhou, sorrindo, e a beijando na cabeça:
— Parabéns, filha. — Levantou-se feliz da vida. — Tenho uma reunião agora no Bueno Sanchez, mas almoço em casa e falaremos mais sobre isso. Pode me pedir o que você quiser. — Deixou a sala com um sorriso de orgulho no rosto.
Ana Paula olhou para Denise, a mulher estava pasma.
— Por que você mentiu? Você acabou de me dizer que passou para engenharia, criatura?
— Só queria a sensação de fazer com que os olhos do papai brilhassem por algo que eu fiz. Nenhum outro filho é bom o bastante para ele, porque não são todos médicos como ele.
— Mentindo você não vai conseguir nada.
— Nem falando a verdade, Deni. Papai só tem uma filha: doutora Ângela. Vou fazer engenharia, que é o que eu quero e ponto.
— Às vezes acho que papai tem razão. Você já está com vinte e quatro anos de idade. Na sua idade eu já era dona de três lojas de roupas. Você já disse que gostaria de estudar Letras, Relações Internacionais...
— Já entendi, maninha. Ou devo dizer "mamãe"? Eu não presto, sou a ovelha desgarrada da família, já sei dessa porcaria toda. — Levantou-se e deixou a irmã sozinha e preocupada com seu comportamento.
Ana Paula foi criada sem a atenção do pai, perdera a mãe muito cedo e a única presença materna que teve foi a de Denise. A empresária cuidara dela com a ajuda das babás.
Crescera querendo chamar a atenção do pai a todo custo. Era estudiosa, mas sempre causava algum dano na escola para o pai ser chamado, mas ele nunca ia, muitas vezes nem ficava sabendo dos ocorridos, era sempre Denise que estava lá.
Depois dos vinte anos, passara a levar namorado para casa. Denise a repreendia e ouvia réplicas furiosas.
— Você mora aqui com seu marido, o Emerson traz mulher para cá e eu não posso?
— Ana Paula, olha o que você está fazendo. Só essa semana foram quatro rapazes que você apresentou como namorado. Você disse bem: eu moro aqui com o meu marido, sou casada com ele. Papai insistiu para que a gente ficasse morando aqui, o Emerson traz a mesma namorada há dois anos.
— O que você sugere?
— Que você repense sua vida.
— Eu devia nem ter nascido. Assim não traria problema para ninguém.
— Suas lágrimas não me comovem mais, Ana Paula. Cresça, por favor! — Denise era dura com a irmã e depois ficava se sentindo culpada. Amava-a como a uma filha, mas sua rebeldia ultimamente a estava tirando do sério.
Ana Paula conhecera Luciana na praia do Leblon. Era filha de milionário, mas se dava bem com os menos favorecidos.
— Come aí. — Luciana oferecera frango com farofa no pratinho de plástico e refrigerante em um copo descartável. — Ou tem frescura... Nojinho?
— Não tenho nada disso, não. Quem é aquele ali? — perguntara, apontando com a coxa do frango e mordendo-a em seguida.
— Aquele é o Lucas, meu irmão. Tem uma namorada insuportável. Não gosta de praia.
— Ponto para mim, então — disse e sorriu, continuou a observar Lucas. Ele jogava bola com outros rapazes.
Em uma semana Ana Paula estava namorando Lucas, que terminara o namoro com a namorada insuportável para ficar com ela.
E assim Ana Paula foi vivendo. Passara um tempo com Lucas, depois conhecera Vitor Rebouças, um estudante de engenharia que estudava com ela. Gostava de Lucas, mas também gostava de Vitor, então manteve os namoros com os dois.
Ana Paula se tornara amiga de Fabí quando a conhecera na casa de Luciana. Fabí era o espelho que ela sempre quis, mesmo sem conhecê-la.
Enquanto todos estavam se divertindo e conversando entre si, Ana Paula viu Fabí observando de longe a movimentação e se aproximou dela com uma latinha de cerveja.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não. E com você? Cadê seu namorado?
— Tá por aí dando atenção aos convidados. Tá chato demais hoje, deixa ele por lá.
Fabí soltou uma risada rouca e bateu sua lata na dela, num brinde.
— Você é de onde?
— Sou daqui, mas morava na Bahia havia dez anos. Sou uma baiana adotiva.
— Adorei conhecer você, Fabí. Adorei saber que você vai morar aqui.
— Seja bem-vinda à minha casa. Quando não aguentar Lucas, você fica comigo. Meu noivo quer que eu fique morando com ele, mas se já vou me casar, não preciso adiantar minha sentença, né, meu amor? — Arrancou gargalhadas de Ana Paula.
— Adorei você.
— E estou errada? — Notou que o sorriso de Ana Paula era sincero, mas havia uma sombra nos olhos. — E você? É feliz com Lucas?
— Sim. Do meu jeito. — Sorriu.
— Entendi. Seus olhos são lindos, só vi uns assim na minha cunhada, mas os seus são tristes. Luciana me disse que você mora no Leblon.
— É, moro numa humilde mansão de milhões de reais, meu pai é muito rico, posso ter tudo o que o dinheiro puder comprar, mas não tenho meu pai. Sou mal-agradecida, como minha irmã perfeita cansa de dizer. Eu sou um clichê ruim.
Fabí a abraçou de lado e acariciou o ombro dela.
— Sei como é isso. Acha que dinheiro substitui amor. Minha mãe Benta está com sessenta e quatro anos, trabalha direto, mas nunca deixou de nos dar o amor e atenção necessários. Ela é espírita, médium das boas. Então isso ajuda muito.
— Sempre tive curiosidade de saber mais sobre esse assunto. Meu pai é católico, acho que me deserdaria se soubesse.
— Você tem medo de ser deserdada? — indagou em tom de brincadeira. — Já fui deserdada, não é tão ruim.
— O fato é que tenho um pouco de medo, sabe? — Olhou para o chão e tomou um gole da bebida. — Meu pai fala que evocam espíritos ruins para fazer maldade. Tenho medo do invisível.
— Isso é coisa de gente ignorante. Quando você conhecer, vai saber o que estou dizendo. — Manteve o olhar na garota ao seu lado e virou a latinha na boca imitando o gesto dela.
— Meu ex-cunhado frequenta um centro espírita. Meu pai é apaixonado por ele, mas abomina essa parte dele. Mandou-o ir a um psiquiatra quando soube que ele via gente morta. — Usou um tom dramático propositalmente para enfatizar a situação.
— Já não gostei de seu pai. — Tomou o último gole de cerveja e colocou a latinha ao lado. — O nome disso é mediunidade e não loucura. Com a mediunidade pode-se ajudar muita gente, sabia?
— Um dia você me leva a um Centro Espírita?
— Levo, sim. Agora vá buscar cerveja, que essa acabou. Tô de bico seco já! — Fabí mudou de assunto, mas sabia que precisava mudar a vida de Ana Paula e faria isso.
~∞~
Música:
Stone Cold - Demi Lovato
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