01 - Reencontro
"Reencontrar você foi como encontrar aquela peça difícil do quebra-cabeça da minha vida!"
Salvador-BA, 2009
Ângela desembarcou no aeroporto internacional de Salvador e foi recebida por um motorista que a levaria à casa de seu irmão, Anselmo. O delegado insistira para que ela fosse ao jantar oficial de noivado dele.
— Por favor, Ângela, você é dona desse hospital. Pode tirar uns dias de folga. Preciso de alguém da minha família para me apoiar — Anselmo insistira ao telefone.
— Tudo bem, vou falar com o papai para cuidar de tudo na minha ausência. Você o conhece, é todo metódico, só confia em mim. Agora está com a ideia de laboratório, então vai ficar mais difícil.
— Conheço o meu velho! Mas ele só tem esse apego com o Bueno Sanchez do Rio de Janeiro, tem uns vinte pelo país...
— É a matriz, Anselmo, onde tudo começou. Eu o entendo. Enfim, segunda eu chego aí para conhecer a sortuda que vai se casar com você.
— Você vai adorá-la, Ângela. Ela é maravilhosa. Estamos juntos há oito meses, mas já sei que a quero na minha vida para sempre.
— E se ela não gostar de mim? — indagara, enquanto higienizava as mãos em seu consultório no hospital.
— Quem não gosta de você, Ângela?
Ela sorriu ao lembrar do telefonema do irmão. O motorista colocou sua bagagem no porta-malas do carro e abriu a porta do veículo para que ela entrasse.
Ângela tinha fama de ser muito séria e de não conversar demais com estranhos. Chegava a ser seca com algumas pessoas, às vezes. Objetiva e forte em tudo. Apesar de seus traços delicados, ela não era muito dada a palavras de carinho com quem quer que fosse. Só falava mais abertamente com os irmãos. Sua melhor amiga era Denise, sua irmã mais velha. Tinha uma boa relação com o irmão Anselmo, tanto que se dispôs a representar a família no jantar de noivado dele.
Morava sozinha numa cobertura no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Depois de se separar do marido, Fernando, médico como ela, Ângela passara a morar apenas com os empregados, que sabiam de sua personalidade forte e exigente, por isso nem se importavam mais com seu comportamento seco e objetivo.
Osvaldo, o motorista, não a conhecia. E como todo bom baiano, começou a puxar assunto com ela, que até então, só observava a noite soteropolitana.
— A senhora já é médica? Parece tão jovem — comentou o motorista, olhando-a pelo retrovisor.
— Sou, sim. A genética é boa. Já tenho trinta anos. — Respirou fundo e voltou a olhar para a rua por onde passavam.
— A senhora se formou com quantos anos? — indagou, admirado, carregando seu sotaque baiano.
— Ainda está muito longe? — ela perguntou, impaciente.
— Em meia hora estaremos lá. Doutor Anselmo está muito feliz com o casamento.
— Você pode só dirigir, por gentileza?
Osvaldo apenas se calou e continuou seu percurso. Dirigiu até chegar a uma estrada quase deserta e, em seguida, começou a subir uma serra, a qual era caminho para a casa de campo de Anselmo, onde seria a festa de noivado.
Ângela observava o caminho através da janela e avistou luzes piscando. Uma visão que lhe era bastante familiar, por isso, imediatamente deduziu que se tratava de luzes de giroflex de ambulância. Teve certeza quando o carro se aproximou do local e foi impedido de ultrapassar.
Ela olhou em volta, na intenção de entender o que estava acontecendo, e notou uma van caída na ribanceira. No local, havia apenas uma viatura do corpo de bombeiros e uma equipe de resgate formada por três profissionais, que trabalhavam na retirada de vítimas das ferragens.
— O que houve?
— Deve ser acidente. Isso é comum nessa época por aqui. A pessoa bebe e dirige, junta com a pista escorregadia.
Sem dar ouvidos ao que o motorista falava, Ângela saiu do carro, pediu:
— Pega aquela mala roxa e traz para mim, por favor. — E foi correndo até o local do acidente.
— A senhora não pode ficar aqui. — disse um bombeiro que estava com uma corda amarrada na cintura, dando suporte para os dois que estavam lá embaixo.
— Eu sou médica, posso ajudar.
O bombeiro a olhou de cima a baixo:
— Sou o sargento Sousa. Moça, está tudo cheio de lama, pode começar a chover de novo, a senhora está...
Ângela só ouviu até este ponto, pois no momento seguinte, recebeu a mala das mãos de Osvaldo e a abriu, retirando de dentro um par de luvas para logo em seguida vesti-las.
— Há quantas pessoas lá dentro? Por que só vocês estão aqui? Vejo que é um acidente de grande porte.
— Época de chuva, moça, muitos acidentes. Se quer ajudar vai ter que entrar na lama.
Ângela olhou para o lado viu um par de botas de borracha e uma corda com o mesmo equipamento que o sargento estava usando. Nem pensou duas vezes: pegou tudo e se equipou. Usando uma calça de seda branca e blusa social rosa. Com a ajuda de Osvaldo, ela desceu os cinco metros que separavam a van da estrada, levando sua mala de primeiros socorros.
— Oi, meu nome é Ângela. Eu sou médica. Vim ajudar vocês.
— Sargento Gurgel. — O homem se apresentou, enquanto prendia uma vítima numa maca e apontou o companheiro. — Sargento Andrade. Cinco vítimas, duas com ferimentos leves, o que podemos constatar até agora.
Sargento Andrade conversava com uma mulher muito nervosa, à medida que tentava desprender o cinto de segurança de um homem que estava inconsciente.
Ângela deu uma olhada em tudo e viu um homem desacordado. Ela foi até ele:
— O senhor pode me ouvir? — perguntou e colocou o dedo indicador no pescoço dele à procura de sua artéria carótida. Estava vivo. Mas suas pernas foram esmagadas pela cadeira da frente. — A ambulância foi chamada há quanto tempo? — perguntou em voz alta para que o Sargento a ouvisse.
— Há dez minutos. Deve chegar a qualquer momento.
O outro bombeiro conseguiu retirar o homem inconsciente e o colocou em uma maca para que fosse puxado. Quando voltava para o carro, Ângela o abordou, chamando-o:
— Sargento, preciso de ajuda aqui — pediu e só então notou que o sargento Andrade era uma mulher.
— Pela triagem só temos os menos graves.
— Preciso de apoio para entrar no veículo. Este homem está inconsciente e com os sinais vitais muito fracos.
— É muito arriscado, doutora. Não posso permitir que faça isso, o reforço está chegando e podemos... — não conseguiu concluir a frase e já precisou usar toda a sua força física para cortar uma porta que fora amassada, pois Ângela passou pela janela e entrou no carro, soltando o cinto de segurança do homem para tirá-lo de lá.
Quando conseguiu retirar o indivíduo das ferragens, o carro começou a deslizar. Rapidamente, Andrade amarrou a corda de seu corpo no carro e gritou para o companheiro que estava na estrada:
— Segura firme, estamos quase conseguindo!
Seu ponto de apoio era a viatura do resgate, que foi puxada para o lado com a força do veículo na ribanceira.
Começou a chover de novo. Ângela entrou novamente no carro e retirou mais uma vítima, dessa vez com traumatismo craniano. A mulher que gritava e reclamava de dores desmaiou e foi tirada pela médica.
Andrade gritou ao ouvir duas ambulâncias chegando:
— Vítima com traumatismo craniano grave! — dizendo isso, agachou-se e, usando o equipamento de Ângela, imobilizou o pescoço da vítima com o colar cervical. Depois a colocou numa maca.
Um grupo de resgate e a equipe de apoio de A.P.H (Atendimento Pré-Hospitalar) desceram e levaram as vítimas, que estavam nas macas.
Ângela retirou a última vítima. A jovem estava consciente, mas teve uma parada cardíaca. Era uma mulher de mais ou menos trinta anos. Tinha os membros inferiores muito machucados; a médica pôde constatar sua respiração falha. Colocou-a sobre uma maca com a ajuda de Andrade e fez compressão torácica para uma possível reanimação.
— Acho que vamos perdê-la — Ângela gritou enquanto examinava o corpo da vítima e examinava uma lesão na coluna. Andrade agachou-se e ajudou na reanimação. — Ela voltou a respirar! — Ângela disse sorrindo e ajudou a envolver o corpo da vítima com o lençol térmico, quando a equipe de resgate desceu novamente. — Ela tem uma lesão profunda na coluna.
A última vítima foi removida para o hospital. A viatura seguiu com os bombeiros e com Ângela, que dispensou o motorista e foi junto com a equipe.
Ao chegarem, Andrade chamou a médica para ir tomar banho e trocar de roupa na base do corpo de bombeiros, em frente.
— Não vão nos deixar entrar no hospital nesse estado, de forma alguma. Então vamos tomar banho que é mais saudável para todo mundo — disse, sorrindo.
Enquanto Ângela falava pouco, Andrade falava o suficiente pelas duas.
— Eu estou de folga, mas fui chamada às pressas — justificou, pois pretendia ir para casa depois de um banho. — Olhe, eu tenho quatro anos de bombeiro, juntando resgate e A.P.H., e até hoje nunca tinha visto alguém tão louco feito você — disse sorrindo, mostrou seus lindos dentes brancos em meio à lama e sangue que havia em seu rosto.
— É instinto! — Ângela respondeu e sorriu, também coberta de lama e sangue. — Sargento Andrade. Por um momento achei que fosse um homem...
— Pode me chamar de Fabí, o pessoal me chama assim. Mas enfim, do jeito que me chamar eu vou... — falou de modo irreverente e conseguiu arrancar outro sorriso da médica sisuda, enquanto lavava o rosto num tanque do lado de fora do local. — Faço isso todo dia e ainda fico nervosa — disse e respirou fundo tirando a farda pesada de lama.
Ângela ficou observando a cena com uma meia lua estampada nos lábios. Conhecia aqueles olhos de algum lugar.
— Você é turista? Não é daqui, né?
— Não. Sou carioca. Vim para o noivado do meu irmão. — Franziu o cenho e fitou Fabí nos olhos.
As duas ficaram em silêncio por algum tempo.
— Eu conheço você de algum lugar. O que é bem estranho, pois nunca estive aqui — Ângela falou sem tirar o olhar do dela.
— Eu tenho essa mesma sensação. De repente é coisa de vida passada.
— Eu não acredito nessas coisas. Bom...
— Seus olhos são lindos. Vivo brigando com minha mãe, ela devia ter me deixado puxar os olhos dela.
Fabí era filha de Pedro, um negro carioca e Laise, uma dinamarquesa branca, loura de olhos azuis. Herdara o sorriso da mãe e os traços marcantes do pai. Alta, de suaves músculos definidos, resultado de treinos diários e danças nos fins de semana da capital baiana; a bombeira era a junção do melhor que havia em seus pais, tanto físico quanto emocionalmente.
— Já pensou que gata eu seria, negra de olhos azuis? Aí, pronto! — Brincou se apontando.
— Acho que não precisa — Ângela disse sorrindo. — Você é muito bonita desse jeito.
— Estou brincando. Amo minha mãe, mas amo ser quem e como sou. E os olhos mais lindos do mundo que eu conheço são castanhos e pertencem a minha mãe adotiva. E eu sou maravilhosa assim. — Riu e se aproximou da médica. — Tire essa roupa, vai acabar pegando uma pneumonia! — avisou tentando ajudá-la a tirar as peças molhadas e cheias de lama.
— Fabí! — alguém chamou de dentro de um carro.
As duas se viraram para olhar na direção da voz.
— É meu namorado. Ele não devia estar aqui. Deve ter acontecido alguma coisa — disse e acenou mostrando seu estado. Depois entrou, puxou Ângela pelo braço. — Minha roupa vai ficar grande em você, mas acho que resolve. — Fabí era um pouco mais alta que ela.
Ângela ficou olhando para a sargento, sem palavras.
— Sabe, eu não sou pessoa para namorar, não. Não gosto do jeito que as pessoas tratam as pessoas. Se eu quero ficar com outra pessoa, eu fico e não vai ser o ciúme e controle de ninguém, que vão me impedir. Então precisa de confiança, principalmente em si. Ele veio aqui me vigiar, saber se estou realmente trabalhando.
— Mas acho que respeito precisa ter...
— Eu sei. Sou a favor da sinceridade em tudo nessa vida. Agora me diga, qual a necessidade desse homem vir aqui? Isso sufoca. Falei com ele antes de sair de casa.
Anselmo entrou no vestiário naquele momento e viu Fabí com uma roupa na mão e sua irmã coberta de lama e sangue.
~∞~
Música:
Uguale a Lei - Laura Pausini
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