2: Sofrimento.
Essa é a parte que a dor sumiu e apenas ficou o sofrimento.
O sofrimento de estar numa mentira, sofrendo por alguém que nunca existiu.
Meu amor era um fantasma, vagando pelas memórias que eu mesma criei.
Assim como a alegria que nunca existiu.
O metal gelado da chave continuava irradiando pela minha pele. Os segredos e perguntas rodavam ao redor de mim, como uma canção horrível, mas que não sai da cabeça.
E no final eu tenho várias perguntas para quem não pode mais respondê-las.
Me jogo na cama, frustrada, mas é comigo mesma. Sempre vi a maior parte das mulheres ao meu redor serem submissas. Minhas tias tinham medo do meu pai e nunca o contradiziam. Elas eram assim também com os maridos delas.
E eu só tive essas imagens femininas na minha infância. E cresci sem ser capaz de agir de outra forma. Mas Ryan nunca queria nada de mim, absolutamente nada. Ele só queria a minha presença, sem perguntas e sem incômodos. E por isso nos dávamos bem, eu apenas queria ter alguém e ele só queria ser de alguém.
Aquela necessidade horrenda dele de sempre ficar me olhando dormindo. Eu odiava acordar e vê-lo no pé da cama, levantado, me olhando. Ele sempre dizia o quanto eu parecia mais forte que a maioria enquanto dormia.
Eu nunca entendi isso. Nem irei entender, porque nesse momento, enquanto estou deitada, me sinto muito frágil.
Frágil e burra, como uma pessoa que nunca tinha feito perguntas antes e que agora precisa das respostas.
Preciso da verdade Ryan. Preciso de alguma coisa que você deixou para trás.
Num ato súbito, pulo da cama e começo a mexer nas coisas dele. As camisas, blusas, calças, tudo e qualquer coisa. Elas ainda tem cheiro de Ryan.
Balanço a cabeça, tentando me focar. Suas roupas continuam arrumadas, porém isso não me impede de bagunça-las, assim como fiz momentos atrás. Jogo todas no chão e na cama, e espero achar alguma coisa. Remexo os bolsos e botões, mas só ao olhar para o guarda-roupa novamente vejo algo.
Um ticket dourado brilha reluzente na brecha do guarda-roupa. Sinto meu coração reviver. Ele acelera com força e tento me acalmar. Me aproximo do ticket e analiso os números que estão nele.
É uma sequência de códigos que vai do 1 até o nove.
987 654 321.
E embaixo está escrito com letras minúsculas "taco de mesa marca tpa."
Taco de mesa?
Viro o ticket e encontro um endereço. É perto de uma padaria que eu e Ryan costumávamos ir.
Sinto minhas narinas dilatadas e meus pulmões precisando de mais ar. Por isso respiro fundo e encaro o céu que vai ganhando cor.
Deve ser quase cinco horas da manhã.
E junto com a cor que vai ressurgindo, sinto algo perdido voltando para mim. Como se o essencial para a vida estivesse voltado.
Seguro o ticket com força contra o corpo e levanto. São cinco e meia quando resolvo tomar banho. E o sol já está no céu quando visto uma roupa e saio de casa.
Mesmo que meu marido tenha morrido, a verdade não morreu com ele.
Nem as mentiras.
O sol de Texas queima minhas costas conforme eu me aproximo do endereço no ticket. Já deve ser perto das seis e meia e as ruas estão com pouco movimento. Nada diferente do habitual. Minha barriga ainda murmura de fome, mas ignoro isso e continuo andando.
Até chegar em frente a um galpão. Não tem postes perto dele e nem uma porta decente. Existe apenas um portão de metal grosso. Me aproximo dele e sinto meu coração acelerar. Não deve ter ninguém aqui.
Porém, minha teoria é quebrada quando alguém abre um pouco o portão e me encara. Não consigo ver direito o rosto dele, mas sua voz rapidamente chega até mim.
- O que quer? - Questiona e fico em silêncio, com as mãos trêmulas. Os olhos escuros continuam sobre mim.
- Isso. - Eu deveria ter falado sobre Ryan, mas apenas entrego o ticket, e vejo a reação do homem.
Ele abre o portão, e fico paralisada.
- Entre. - Avisa, com uma voz grossa. Engulo em seco e entro.
O lugar é totalmente diferente do que eu imaginava. É arrumado e silencioso, mas existe um círculo com cadeiras. Como se fosse um grupo de apoio.
Será que é um grupo de apoio?
- Sente-se. Vamos começar. - Sigo sua ordem e me sento em uma das cadeiras.
Rapidamente, mais sete pessoas aparecem. Cinco homens e duas mulheres. Então é um grupo de apoio. Mas para quê?
- Silêncio. A entrevista começará. - Uma das mulheres avisa e se senta à minha frente. Ela tem uma postura arrogante e superior, que me deixa assustada. - Bom, como você se chama? - Os olhos dela são castanhos, mas parecem negros com a pouca iluminação.
- Mayra. - Sussurro, tentando forçar minha voz a sair.
Onde me meti?
- Você tem impulsos? - Ela questiona, e eu junto as sobrancelhas sem perceber. - Fetiches? - Tenta mais uma vez, e eu fico mais confusa.
Então ela morde os lábios e encara o homem que me atendeu.
- Por que você está aqui? - Pergunta, mas seu tom de voz mudou. - Por que deixou ela entrar? - Dessa vez ela se dirige ao homem.
- Ela tem o ticket. - Ele responde com grosseria.
Engulo em seco, sem entender nada.
- Caso grave, então? - Sua voz agora é mais dura e os olhos dela brilham. - Psicopatia? - Sussurra e fico paralisada. A palavra parece ter me dado um soco.
Psicopatia. Uma palavra que corta os ouvidos.
- Não. - Nego imediatamente. - Estou aqui para saber do meu marido. Ryan. Ele morreu, mas tinha isso no guarda-roupa. Quero saber o que é isso. - Aponto para o lugar, porém, assim que o nome Ryan sai de meus lábios todos se olham.
- Onde ele está? - A mulher faz mais uma pergunta, mas dessa vez sinto um arrepio subir por minhas costas.
Engulo em seco, sem saber como responder. E fico ainda mais nervosa ao notar que a outra mulher me encara intensamente, sem piscar. Aperto o ticket e respiro fundo.
- Ele morreu. Acidente de carro. - Aviso, com um nó se formando em minha garganta. Uma das primeiras vezes que falo isso em voz alta. - Não sei quantos dias fazem, mas eu preciso saber sobre isso. Quero saber de coisas que ele deixou para trás. Preciso disso.
Tento de várias maneiras não deixar as lágrimas caírem, mas é isso que acontece. Elas são rápidas e abundantes, escorregando pelo meu rosto.
O silêncio permanece com minha fala e só então tenho a coragem de encarar os rostos que me olham. Tem um sorriso bizarro na cara de cada um. Um calafrio me invade e algo grita para eu sair dali rapidamente. Me levanto num impulso e seguro a respiração.
Antes que eu possa fazer algo, a mulher de antes volta a falar.
- Sentimos muito por isso. - Ela agora me oferece um sorriso gentil, mas que não chega até os olhos. - Temos algumas coisas dele aqui. Arya pode te explicar melhor as coisas, ela era a companheira dele.
Companheira? Essa palavra faz aquele sentimento borbulhante surgir novamente. Ciúmes e raiva. Juntos, como uma bomba ou um colapso.
Mordo os lábios, focando meus olhos na outra mulher. Ela em nenhum momento parou de me olhar.
Uma das luzes então se apaga, e o lugar fica ainda mais escuro. É assustador e sufocante, mas me sinto forte o suficiente para não demonstrar medo.
- Estou disposta a ouvir. - Aviso, cruzando as pernas.
Arya agora sorri, da mesma forma que todos. Sorrisos falsos, que não chegam em nenhum lugar.
- Não é para falar. É para te mostrar. - Ela avisa, se levantando. - Vamos, eu te mostro.
Ela então espera eu me levantar e só então me guia por um corredor. O lugar é arrumado, mas cheira a podre conforme andamos. Chegamos numa parede com três portas.
Cada porta era de uma cor.
Vermelha, amarela, preta.
Arya para e encara cada uma.
- Você sabe sobre a teoria das cores? - Indaga, seguindo meu olhar. Minha atenção está fixa na porta preta. O preto dela é tão escuro que parece não existir nada além daquela porta.
Nego com a cabeça.
- A teoria das cores vermelha, amarela e preto. Elas constituem o corpo, a cor dos órgãos, tecidos e por fim, a morte de cada um. Essas portas são isso. A de Ryan era preta. A morte. O pulmão fica escuro após ser consumido pela doença. - Ela dá um passo à frente e me observa. - Uma doença.
A voz dela ecoou pelo corredor. Assim como meu medo.
Algo dentro de mim se remexia sem parar, gritando para eu sair dali. Nunca acreditei nesse instinto, porque nunca me vi como um animal, algo que consegue sentir as coisas vindo. Eu apenas nunca senti.
Mas agora é diferente. Parece até doer.
Aperto os lábios e sigo pelo corredor até a porta. Sinto cheiro de ferro. A porta é preta, mas parece estar coberta de ferro.
Lembro desse cheiro na época que eu era criança. Quando eu caia e machucava o joelho e então o cheiro de sangue era tão forte que parecia ferro.
Não consigo mais me mover. É muito para pensar. Mas eu preciso saber, preciso entender essa analogia com a doença e Ryan.
- Ele já falou de mim alguma vez? - Pergunto sem perceber. Minha voz é tão baixa que não parece existir. Fico em dúvida se eu realmente falei ou apenas imaginei.
Porém, Arya me responde.
- Sim. - De repente, sinto mãos fortes em minhas costas. Ela me empurra para dentro da porta e me joga no chão. - Disse que você era uma órfã sem amigos e que ninguém sentiria falta se morresse.
Fico atônita, sentindo o choque e a dor se espalhando pelo meu corpo.
As palavras vagam por minha mente e abro os olhos. O quarto está cheio de facas.
Eu poderia desmaiar agora. Apenas fingir que isso não está acontecendo.
Mas o instinto realmente existe, e antes de perceber estou em pé e avançando para cima de Arya. Nossos corpos se chocam, mas ela é mais forte. Ela me empurra para longe e eu bato contra a parede. Algumas facas caem e o som é alto.
Arya sorri e pega uma das facas, e tudo que consigo fazer é respirar sem controle e sentir todo meu corpo tremendo.
- Não sei como ele conseguia te aturar. Você parece tão burra. - Ela avança para cima de mim, mas eu me encolho e consigo correr para fora do quarto.
Estou sem nada nas mãos, apenas correndo sem parar.
- Segurem ela! - Arya grita e imediatamente sinto passos atrás de mim. Corro mais rápido, tendo apenas um objetivo em mente.
Conseguir sair do galpão. Deixar Ryan e tudo para trás.
Porém, a minha mente vira um clarão quando algo forte me joga no chão e bato a cabeça na parede.
Abro os olhos com pressa, analisando as orbes de Arya sobre mim.
- Sua burra. - Ela joga a faca para longe e se ajoelha na minha frente. - Você achou mesmo que eu ia te matar com uma das facas do seu marido? - Ela sorri, e esse sorriso parece verdadeiro. - Meu método é outro.
Então, sem aviso, suas mãos se fecham ao redor do meu pescoço. Sinto o ar sumir e suas mãos me sufocando.
Tento solta-las, mas não funciona, Arya só aperta mais.
Nos olhos. A voz de papai ecoa por meus ouvidos, como numa memória. Enfie seus dedos nos olhos de alguém se tentarem te machucar.
E é isso que faço. Junto minhas forças e enfio meus dedos nos olhos de Arya. Ela cambaleia e eu corro sem pensar em mais nada. A porta está próxima, então me jogo para fora dela.
Caio no chão com força.
O sol me cega por alguns instantes, mas logo estou consciente. Várias pessoas se reúnem ao meu redor e escuto cochichos. Estou na rua. Estou livre.
Porém, logo atrás vem uma Arya possessa, agora com a faca nas mãos.
Ela para ao ver as pessoas. A faca cai no chão e os gritos começam. Me levanto com rapidez, e só então noto que tem sangue descendo por minha testa. Volto ao chão com força, sentindo o mundo girar rápido demais.
O ar me falta, mas segundos depois estou gritando. Gritando sem conseguir parar, enquanto minha cabeça gira e meu mundo cai aos pedaços.
Lembro o que tpa significa. É a sigla para psicopatas ou transtorno de personalidade antissocial.
Ryan sempre falava o quanto ele era um tapa, mas sem o primeiro A. Ele sempre ria, mas eu nunca entendia a piada.
Acho que não era uma piada, era um aviso.
E eu só vim entender tarde demais.
A delegacia é fria e silenciosa. É possível escutar apenas sussurros. Mas é grande o suficiente para guardar segredos, coisas tóxicas o suficiente para matar.
E é apenas isso que penso enquanto permaneço de cabeça baixa, esperando um policial chegar.
- Mayra. - Uma voz grossa retumba em meus ouvidos e levanto a cabeça.
Ainda estou tonta, mas uma enfermeira já cuidou do pequeno corte que tive na testa. A adrenalina já se foi, e agora tudo que tenho é a realidade, dura e cortante.
Arya tentou me matar. Ela disse que meu marido era um doente, um psicopata. Que ele era a doença e a morte. Uma porta preta.
Engulo em seco e sinto minhas mãos geladas. A polícia chegou em alguns minutos após o ocorrido. Prenderam Arya por tentativa de homicídio em flagrante.
E eles me trouxeram para cá.
- Você tem que vir comigo. - O policial avisa, observando meu rosto. - Lamento pelo o que aconteceu.
Ele sorri para mim e lembro do médico que me confortou quando Ryan morreu. Apenas assinto com a cabeça e entro numa sala pequena, feita para interrogatório e depoimentos.
A polícia do Texas sempre foi rápida com casos de homicídio ou tentativa de homicídio, e apenas isso.
Acho que tive sorte dessa vez. Minha mente brinca, mas não sinto vontade de rir.
- Sente-se. - O policial pede e senta à minha frente. - Quero que você me explique primeiro o que fazia lá. - Ele segura uma caneta e um bloco de nota com atenção, esperando minha resposta.
Eu começo a contar. Tudo. Desde que achei o ticket. E a cada palavra que saia da minha boca, o polícia ficava mais vermelho.
Termino, e ele está ofegante.
- Os tpa do Texas. - Ele sussurra e fecha os olhos com força. - Não posso falar muito sobre o que você nos ajudou a descobrir, mas irei te contar uma coisa. Seu esposo era um maluco, provavelmente com algum fetiche bizarro ou fanático por facas.
As palavras dele deixam minha garganta seca. Acho que nem uma facada da Arya iria doer tanto como agora. A verdade dói, dói de uma maneira idiota.
Tão idiota quanto eu.
Aperto os lábios e não consigo evitar. As lágrimas brotam de novo, mas dessa vez são piores.
O policial fica em silêncio enquanto me despeço da vida que tive com Ryan, enquanto tento aceitar que eu não conhecia meu marido. E ainda não conheço.
O policial espera tudo passar para me deixar sair. Eles não me falam mais nada, apenas pedem meu número e me deixam ir embora.
Mas não sei para onde vou. A noite já está chegando, lenta e quente. É um começo de noite agradável, mas isso não muda como me sinto.
Ando pelas ruas de Texas com calma, sentindo a brisa da noite correr ao meu redor.
Me pergunto em qual fase do luto estou agora. Acho que é a aceitação, o momento de deixar partir. Porém, não posso deixar algo que nunca foi meu ir. Ele sempre esteve livre.
Ryan tinha algum tipo de transtorno ou fetiche. Ele provavelmente ia toda noite para aquele galpão e fazia coisas que nunca irei saber.
Quando chego em casa, tudo está escuro e silencioso. Aperto os lábios e analiso as poucas fotos que eu e Ryan tínhamos juntos.
Passo direto por elas, e pego uma sacola na cozinha. Jogo as fotos dentro da sacola e depois no lixo. Já são oito e meia da noite quando jogo todas as roupas de Ryan no chão e arrumo elas dentro de uma mala. Vou doar. Não quero mais nada dele na minha vida. Ele morreu, mas eu não tenho que morrer junto.
Já passam das dez quando termino. Fiz uma faxina em casa, deixando as últimas lágrimas caírem conforme a casa começava a ficar cheirosa. Todos os vestígios da existência de Ryan aqui sumiram. Amanhã de manhã irei doar tudo e depois vender os restos que sobraram do carro dele. O acidente quebrou o carro quase completamente, mas as peças importantes se safaram.
A peça importante deveria ter sido Ryan. Minha mente, talvez ainda apaixonada, fala, mas eu a ignoro. Tenho que iniciar logo uma terapia, porque não sei quanto tempo irei aguentar ser assombrada por esse fantasma de memórias.
Arrumo as duas malas com roupas de Ryan perto da porta e observo meu apartamento. Tudo parece no lugar, mas não me sinto melhor. Apenas dormente, como se eu estivesse num lugar onde nada existe.
Fecho os olhos com força. Sinto a brisa noturna invadir minha casa pelas janelas. Algo nela me faz lembrar a infância, quando eu pulava as janelas e fugia para o lago perto de casa. Eu ficava lá até o sono aparecer, o que costumava demorar algumas horas.
Não lembro porque eu fazia isso, mas sempre preferi o silêncio. Por isso gostei de Ryan, ele sempre foi como um lago. Calmo e silencioso.
Mas, assim como ninguém sabe o que existe nas profundezas de um lago, Ryan era do mesmo jeito. Um lago escuro e profundo, com vários segredos.
Lentamente, me deito no sofá e adormeço. O sono chega em passos lentos, como uma dança.
De repente, estou numa sala escura. Louis está na minha frente, com seu cabelo rosa cheio de sujeira. Ele não fala nada, apenas aponta para um elevador. Sem aviso, o rosto dele desmancha e um grito estridente me faz acordar num pulo.
Fico em silêncio, sentindo meu coração quase pular para fora do corpo. Espero escutar o grito novamente, mas percebo que ele só aconteceu no meu pesadelo.
Louis.
Algo dentro de mim dói ao pensar nele, ao lembrar de sua expressão cheia de dor no pesadelo. Engulo em seco e tento recuperar o fôlego. Já é dia. Preciso tirar as coisas do Ryan daqui.
As coisas dele daqui...
Ainda falta algumas coisas, percebo, lembrando que ele tinha comprado um depósito no subsolo do nosso prédio. No segundo andar do subsolo. Nunca entendi para que ele queria aquele depósito, mas ele sempre afirmava que era para deixar as "tralhas" lá.
Quando um abajur quebrava, ele colocava lá. Era tipo um canto da bagunça.
Vou tirar as "tralhas" de lá e ver o que posso fazer. E depois vender o depósito. Isso acaba agora. Todos esses segredos.
Saio do apartamento e me aproximo do elevador. Um calafrio percorre a minha espinha quando entro nele. Lembro do pesadelo. E penso em Louis também. Meu amigo que nunca mais entrou em contato comigo.
Os minutos se passam enquanto o elevador me leva até o subsolo. Observo a numeração em vermelho descer cada vez mais, e por algum motivo meu coração parece não querer se acalmar.
Chego ao subsolo e as portas se abrem. Aqui é solitário e úmido, com sons abafados e um cheiro forte de ferro. Sem câmeras. Parece até um lugar abandonado pelo tempo.
Nunca desci até aqui, porque tenho medo de lugares abafados. Mas mesmo assim saio do elevador e me aproximo do depósito sete. O depósito que Ryan comprou.
A fechadura é grande e antiga. E meu peito treme. Procuro a chave que estava no fundo falso, e ela ainda está no meu bolso. Meu peito treme.
Coloco e a porta se abre. O lugar é sem iluminação, então logo a lanterna do meu celular e me aproximo. Observo os vários objetos quebrados que ele jogou aqui. Um sofá rasgado, dois abajures, uma tampa de vaso, uma planta murcha. São tantas coisas que me sinto deprimida, porque sei que não vou conseguir tirar tudo isso só.
Mas tento. Fico aproximadamente meia hora colocando tudo para fora e deixando perto do elevador. Depois vou pedir ajuda do porteiro para subir. Quando me aproximo do fundo do depósito, meu corpo congela. Tem mais uma porta. Ela não está trancada, percebo ao forçar a maçaneta.
Mas por algum motivo não quero entrar. Sei que ele colocou essa porta aqui, porque isso mais parece um fundo falso. Todas essas tralhas poderiam muito bem ter ido para o lixo ou para o concerto. Elas estavam aqui por um motivo. Para camuflar essa porta. Engulo em seco e aponto a lanterna do celular em direção a porta.
Entro.
O cheiro é de podridão. E o cenário é um inferno. Existem vários sacos pretos de vários tamanhos, empilhados um em cima do outro. Do maior para o menor. Mas existe algo no meio, sem saco.
Quando aponto a laterna, sei exatamente o que é essa coisa no meio. Ele tem cabelos rosas cheios de lama e um rosto desfigurado. O corpo já entrou em decomposição, mas não preciso olhar por muito tempo para saber onde Louis estava esse tempo todo.
Ele estava aqui.
Morto. Embaixo dos meus pés.
Num depósito solitário, onde meu marido escondeu os vinte e sete corpos.
As próximas horas foram apenas um vislumbre para mim. Não sei como fiz para chamar a polícia, nem como sai do depósito. Só lembro de tremer tanto ao ponto de desmaiar. E depois acordar no hospital. Minha pressão estava tão alta que tiverem que me medicar.
E quando abro os olhos, tudo que vejo é Louis, sem rosto. E tenho certeza que é assim que lembrarei dele a partir de agora. O jovem garoto cheio de sonhos que foi assassinado brutalmente.
Assim como mais vinte e seis corpos. De crianças a idosos. Todos na lista de desaparecidos do Texas. Pelo menos foi isso que passou no jornal horas depois.
Engulo em seco, ainda na cama de hospital. Consigo escutar o caos que está lá fora. Todos eufóricos com a notícia de um caso de serial killer. Eles ao menos sabem que o causador disso já morreu?
Chorei tanto quando Ryan morreu. O mundo parecia tão injusto. Mas agora vejo que tudo voltou para ele. As vinte e sete almas puxaram aquele carro até a morte. Eu não sofri um arranhão, mas o rosto de Ryan ficou irreconhecível.
Assim como de Louis.
Não consigo acreditar. Parece ser apenas uma brincadeira de mal gosto, mas a memória recente do que vi permanece em minha mente.
- Você se sente melhor? - Uma enfermeira pergunta. Não sinto vontade de responder. - Sinto muito pelo o que aconteceu.
Ela diz. E sinto vontade de rir. Todos dizem isso, não é por educação, nem por empatia, é apenas automático. E eu fui tão tola por me sentir especial.
Acho que de alguma maneira eu era especial. Ryan não me matou, pelos menos nunca tentou, acho.
Eu sempre fui uma presa tão fácil. Ele poderia me matar, e ninguém sentiria minha falta.
Assim como Arya disse. Mas foi aquele desgraçado que morreu. E espero que ele esteja ardendo no fogo do inferno agora.
- Preciso de água. - Peço, enquanto escuto o jornal que está passando na tv.
"O caso que chocou o mundo. Vinte e sete corpos foram encontrados num depósito de um prédio de luxo. O assassino era um psicopata que fazia parte de uma quadrilha de psicopatas e sociopatas chamada de taco de mesa marca tpa. Todos se encontram em julgamento. E foi confirmado a morte de Ryan Black, o assassino em série do Texas."
A notícia me dá vontade de vomitar. E faço isso. A enfermeira me segura com força, enquanto vomito apenas o resto de bile que tinha no meu estômago.
Me sinto fraca, mas não apenas fisicamente. Minha mente está nublada, com verdades e segredos demais para digerir.
- Você vai ficar bem. - A enfermeira sussurra, mas eu não tenho muita certeza disso.
Ryan segura uma faca. Ela está coberta de sangue e o corpo de Louis está no chão. Ele corta as orelhas de Louis e joga no lixo. Eu grito, e Ryan se vira para mim. Ele corre, e meu grito o derruba.
E então, eu caio.
- Acorde. - Abro os olhos de uma vez, respirando fundo.
À minha frente está uma senhora. Já existem rugas em seu rosto e ela parece acabada.
- Quem é você? - Pergunto, sentindo meu coração acelerado.
Ainda estou no hospital, mas não tem nenhuma enfermeira aqui, apenas essa mulher está comigo.
- Sou a mãe de Louis. - Sussurra, e eu desmancho.
Não. Não. Não.
- Por favor, diga que meu filho está vivo. Diga que tudo isso é mentira. - Ela soluça e mais lágrimas caem de seus olhos.
Não consigo olhar para ela. É dor de demais. O seu sofrimento é tão palpável quanto uma rocha.
- Desculpe. - Aperto os lábios, pensando em Louis. Ele era apenas um jovem. Com uma mãe que o ama. - Eu lamento por isso de verdade. Louis era uma pessoa incrível.
Murmuro, mas não é o suficiente. Ela desaba a minha frente. Cai no chão e chora em silêncio. Acho que não existe dor maior que essa. A pessoa a quem você deu a vida, partir primeiro que você.
- Não! - Ela grita, com a voz rasgando a garganta. - Meu filho. Meu filho. - Continua gritando, e apenas fecho os olhos com força.
Ryan Black foi um monstro. Ele matou pessoas que mereciam viver mais que ele. Ele deixou corpos apodrecendo num depósito, enquanto ele está no cemitério, num caixão bem feito e uma lápide de quartzo.
- Eu pago tudo. - Aviso, tentando ser forte. Minha voz treme, mas falo alto o suficiente para ela me escutar. - Eu pago tudo para o enterro de Louis. Será algo lindo, porque ele foi alguém lindo e cheio de amor. - As lágrimas aparecem, mas seguro elas.
Acabou o momento de chorar. Preciso agir.
- Eu só quero o meu filho. - A senhora chora. Eu desço da cama e fico ao seu lado do chão. Abraço ela, enquanto a dor domina seu ser.
A morte é uma incógnita, porque os que estão vivos nunca passaram por ela, e quem já morreu não pode falar sobre. Mas a dor é um fato. Uma fagulha que existe dentro de todos nós. E não importa quantos anos passem, será um dos sentimentos mais fortes que abalam os seres vivos.
Sou uma sobrevivente da dor.
E irei ajudar aqueles que passam por ela.
O enterro de Louis aconteceu durante o verão. Os grilos cantavam e as madressilvas deixavam o ar com um cheiro leve. O sol estava se pondo quando Louis finalmente foi enterrado. Ele tinha um irmão mais velho. O pai já tinha morrido. A mãe e o irmão estavam inconsoláveis, mas mesmo assim fiz o máximo para confortar eles.
Eu rezava, como nunca antes, para Louis estar ali em algum lugar, vendo que agora ele pode descansar em paz. E ele me respondeu. Um passarinho com penas um pouco rosas voou sobre nós. Seu canto era lindo.
Encarei o pôr do sol, ele estava suave e perfeito. Eu sabia exatamente o que fazer depois que o enterro de Louis acabasse.
Então, terminou. E eu fui terminar tudo que o mundo começou. Ryan morreu, mas ele ainda merece mais. Por isso, quando sua mãe e seu pai quiserem ser desvinculados de tudo sobre o filho após tudo ser revelado, eu tomei posse das coisas dele. E até mesmo de seu corpo.
Mandei transformarem seu corpo em cinzas. E assim foi feito. Seguro com força o jarro onde os restos de Ryan estão. E então, sigo até o nosso antigo prédio. Desço para o segundo andar do subsolo e jogo as cinzas dentro do depósito. Espalho elas e depois cuspo no chão.
- Você era o único que merecia estar aí. - Sussurro, esperando que de alguma lugar me escute. Mas tenho certeza que as almas que queimam no fogo do inferno, não têm tempo para escutar os vivos.
E isso é o suficiente. Tranco o depósito e rezo pelas pessoas que aqui morreram. Peço para elas estarem bem. E depois de muito tempo, me sinto leve. Percebo que não amo mais Ryan, e muito menos sinto algo por sua morte. A dor foi embora, os segredos foram revelados e os culpados, foram julgados.
Esse é o fim das verdades que se escondem. De alguma forma, as verdades sempre são reveladas.
Fim.
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