Capítulo 3
A visão só não permaneceu por mais tempo com Jeová porque ele notou o rabo erguido de Ranço - o verdadeiro Ranço, não o destroçado, criado pela sua mente durante alguns segundos - ao lado do outro pavimento. Ele parecia estar farejando algo por trás da superfície do calçamento. De prontidão, o garoto se dirigiu, olhando de um lado a outro - para evitar qualquer incidente -, para onde o cachorro estava. Não demorou muito e o cão foi amarrado novamente.
A coleira de tecido não tinha mais jeito. Jeová improvisou enrolando a corrente ao redor do pescoço do animal. Se fosse voltar o arrastando talvez doesse, mas não iria fazer isso. Colocou o animal em seus braços e decidiu o levar até em casa assim.
Com o cachorro sobre os seus braços, parecendo um recém nascido, Jeová fechou os olhos e ergueu a cabeça para sentir a brisa novamente em seu rosto. A noite parecia ter caído por completo. Ele acabou rindo. Sim, dessa vez por ter imaginado o pior acontecendo com seu cachorrinho, apesar dele não ser nenhum idiota que atravessaria a rua abruptamente enquanto passasse algum veículo. Cachorros não são tão burros assim, afinal. Coisas como essa só são reproduzidas em filmes, o que é um total exagero. Não é assim que as coisas funcionam. E só agora isso caiu por terra: o alvoroço não era pra tanto. No máximo, ele perderia o Ranço de vista por alguns poucos minutos.
Abre os olhos novamente e resolve atravessar para o outro pavimento, não era mais hora para passeio, os alardes do dia já podiam ser encerrados por ali. Foi um susto de fato, mas agora era hora de voltar para casa.
Antes de tirar o pé do pavimento e pô-lo finalmente na estrada, ele averigua o tráfego de um lado a outro, assim como fez anteriormente para chegar ali. Ao longe, surgindo na curva, uma Hilux prata em uma velocidade um pouco alterada dá as caras, ele acompanha o movimento do veículo até tomar uma certa distância. Espera um pouco, sem desviar a atenção. Limpo!
Com o cachorro em seus braços, leva seu pé direito ao asfalto e... Era liso, talvez uma garrafa amassada, cuja presença não foi notada quando ele atravessou para aquele lado. O movimento em seguida parecia seguir uma leve inclinação e logo fez seu pé direito e em seguida o esquerdo serem atracados pelo vão colado ao meio-fio: o bueiro. Não tinha muito o que fazer. Seu corpo rapidamente foi sendo sugado e a única reação instantânea era a de abrir os braços e apoiá-los sobre o asfalto. Ele tentou, é claro, sua cabeça ainda estava para fora. Porém, era difícil demais, a pressão que o vão úmido abaixo e ao redor dos seus pés tinha era imensa. Logo, os seus braços, a cabeça e uma parte do tronco que ainda estava para fora foram sucumbindo àquela força e, instintivamente, ele se apoiou a corrente que estava ainda em sua mão. O ato seguinte foi abrupto e antes que o garoto tivesse tempo de rasgar um grito sua cabeça bateu com força na parte inferior do meio-fio.
O que restou para o garoto naquele momento foi um negrume total: do ambiente e da sua inconsciência.
Quando os primeiros movimentos das pálpebras surgiram a temperatura parecia estar bastante elevada mesmo com uma umidade acentuada no local ainda desconhecido. Um movimento leve de água - ou seja lá o que fosse - era sentido sob o corpo, a camisa e o shorts pareciam grudados na pele. Mesmo quando seus olhos abriram em definitivo, o nada era ainda o que tomava conta da sua visão. Jeová sentia seu pescoço dolorido, mas fora isso, por incrível que pareça, não sentia nenhuma outra dor.
Com um movimento hesitante ele começa a se erguer em busca de alguma orientação, sente a água escorrendo pela sua pele e ouve os pinguelos entrando em contato com a superfície. Só então a ficha cai: ele está a vários metros sob a pista em um total breu. A perspectiva dessa situação o assusta. E não é para menos. Já foi bastante sorte ele não ter sofrido nem mais que um arranhão. Mas é inegável, pensa ele, que está perdido. Ele começou a pensar em toda a nojeira que poderia ser aquele local: os acúmulos de lixo, as substâncias pastosas nas paredes e sobre o chão, os ratos e qualquer outro tipo de praga que poderia rastejar por ali...
Ranço!
Onde estava o seu cachorro? O que aconteceu com ele? Esses pensamentos o assombram ainda mais. Começa a lembrar dos últimos movimentos que fez antes de estar ali. Algo o fez escorregar e cravar seus pés, em seguida todo o restante do seu corpo, naquela vala. O objeto talvez tenha caído com ele, pensa, e esteja em algum lugar ao seu redor.
Dane-se isso! O que importa agora é onde está Ranço.
Ele começa a clamar pelo nome do cachorro. Grita várias vezes, nervosamente. Ele sabe que Ranço tem de estar ali. Ele sabe o que aconteceu enquanto ele caia. Ele pensa no pior e tenta afastar isso da cabeça. Não quer ter a perspectiva da cabeça do cachorro truncada e embolada no chão com a língua pra fora e a corrente de metal cravada no pescoço do animal. Ele sabe que aquilo era possível, mas não quer admitir que matou seu cãozinho.
Não, não, não. Aquilo não podia ter acontecido.
Ele realmente tenta afastar esse pensamento, mas seus olhos começam a umedecer. Ele percebe que não consegue afastar sua lamúria.
Mas que lamúria? Ranço ainda pode estar vivo, afinal, ele estava. Mesmo o animal sendo consideravelmente mais frágil e ainda possuir em seu pescoço uma coleira que foi puxada com um peso de 55 quilos, ele ainda poderia estar bem.
O garoto percebe então que o que faz seu rosto ficar molhado e úmido não são suas lágrimas - pelo menos não apenas isso -, pois percebe que algo vindo de cima está pingando sobre seus cabelos e escorrendo pelo restante do corpo. Ele dá um passo para trás e estende sua mão direita levemente. Percebe o líquido caindo freneticamente na palma de sua mão.
O que era aquilo? Seria o limo do teto de onde estava que decidiu se dissipar pelo ambiente, se empertigar exatamente ali onde estava?
Sua visão começa a se adaptar um pouco com o ambiente, mas não totalmente ainda. Ele olha para cima e vê a fonte do que estava o açoitando. Mas não visualiza sua cor, apenas sente um pouco da textura na mão: é denso e um pouco grudento quando se pressiona o polegar no indicador, mas não parece ser algo nojento: é irônico, mas inconscientemente ele não sente repulsa daquilo. Enfim, tenta ignorar e gira seu corpo aumentando seu campo de visão. Quando dá meia volta ele vê. Parece ser algo dourado que talvez pudesse ser chamado de luz, mas que ao mesmo tempo estava distante de ser isso, afinal, não parecia iluminar o ambiente à sua frente, caso contrário, Jeová poderia ter se dado conta daquilo antes. Ele acha isso bizarro, mas decide que pode significar algo.
Era uma luminosidade contida em um formato de bola de tênis e parecia incrustada de várias cavidades e formas ao seu redor, como se fosse uma pedra recém extraída da terra e ainda não lapidada que possui uma cor forte e brilhosa.
Como se percebesse a atenção do garoto voltada para ela, a redoma começa a tremeluzir, então:
- Venha - era o eco de uma voz macia.
Ele foi.
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