A fada do dente - I
Alguns dias se passaram e Pedro conseguiu entender boa parte de seus documentos e arquivos. Conseguiu entender que seu implante dental especial não servia apenas para apurar seus sentidos e possibilitar sua comunicação com agentes do Bureau, isso também servia para rastreá-lo caso os apoiadores chegassem a uma certa distância. Então ele tomou uma decisão extrema.
É tarde de sábado e apesar do sol ainda estar brilhando não dá para ficar sem a fina blusa verde de lã. Pedro lê um jornal na sala de espera, se interessa pela notícia do ataque de um cão ao seu dono. Dizia a matéria: "Sr. Romulo Augusto dos Santos foi brutalmente atacado e morto na manhã de ontem por seu cão de estimação..."; Logo pensa: "é... esse projeto de operador não passou pelo teste..."; continua a leitura da reportagem: "A filha do senhor Romulo disse à polícia que o cão era dócil e nunca havia apresentado sinais de agressividade..."; Pedro resmunga: "o Bureao já poderia ter pensado num outro método... isso me deixa enjoado... eles vivem perdendo o controle da situação, comandar ataques de animais não é tão difícil quanto parece, o desafio é saber a dose do controle senão eles podem não parar de atacar...".
Dra. Andréia entra na recepção, dá boa tarde a Pedro e vai até a sua secretária Aline.
- Aline... Aline! – Andréia chama pela funcionária mas a secretária estava séria e com o olhar fixo no horizonte, como se estivesse se lembrando de algo importante... mais quatro segundos e a secretária responde.
- Desculpe doutora, pode falar.
Andréia pergunta cochichando...
- Você disse que a menina era a última cliente, e esse rapaz? O que ele faz aqui?
- Desculpe-me doutora, ele disse que a situação era urgente e precisaria muito de ser atendido, então acabei sendo convencida, eu ia perguntar primeiro para a senhora, mas hoje estou meio atrapalhada, me desculpe... a senhora quer que eu peça para ele voltar outra hora?
A dentista se vira e olha para Pedro.
- Tudo bem, vou atendê-lo, mas não faça isso de novo! Antes de encaixar alguém no final do turno me consulte! – A secretária concorda com a cabeça.
- Ligue para minha mãe e avise que vou me atrasar.
A secretária obedece, enquanto isso a dentista entra novamente no consultório e se prepara para atender o último paciente.
Pedro lê mais algumas linhas no jornal quando é chamado.
- "Sr. Antônio!" - então ele deixa o jornal na mesinha do consultório dentário, olha para a secretária da dentista sorri e caminha para a sala onde o chamaram pelo novo nome.
A dentista sorri com simpatia e pede que ele se sente na cadeira. Ela tem os cabelos curtos, escorridos num tom entre loiro e ruivo. As olheiras denunciam um pouco de cansaço ou preocupação.
- Boa tarde senhor Antônio! Meu nome é Andréia, o que podemos fazer pelo senhor? - Pedro responde:
- Primeiramente gostaria de agradecer por me encaixar... então... é uma emergência... preciso que me arranque este dente - e aponta para um de seus dentes do fundo. A dentista pede que ele se acomode na cadeira. Então ela inclina o paciente para que ele fique na posição quase horizontal, puxa a luminária próxima ao seu rosto, pede que ele abra a boca e mostre novamente o dente, Pedro obedece e então ela pergunta:
- O senhor tem certeza? Sente alguma dor? Nós podemos verificar melhor... – Pedro olha para o teto branco pensa por alguns segundos, se ajeita na cadeira de couro, relaxa seus ombros, braços e mãos e então responde: - Doutora, eu realmente preciso que me arranque este dente, pois eu já tentei de tudo e ele não para de me incomodar... - a dentista insiste:
- Mas eu nunca tentei trata-lo, e acho que posso dar um jeito sem precisar arrancá-lo. O senhor já fez o que nesse dente? Foi canal?
- Não, na verdade eu sofri um acidente e ele foi danificado. Tentaram consertar mas a situação sempre piorou e agora eu decidi que quero me livrar dele. Eu gostaria de arrancá-lo e posteriormente fazer um implante de uma prótese, é possível?
- Possível é mas ele não me parece tão mal e tenho certeza que poderia dar um jeito nisso sem o senhor precisar gastar e sofrer tanto com um implante.
Pedro pensa em utilizar suas capacidades mentais novamente para acabar logo com aquela discussão, mas teme ser rastreado (afinal ainda está com aquele dente). Então pensa em utilizar os métodos simplórios, pois não exigem grande esforço mental, apenas técnica, e isso ele treina desde quando começou a falar e andar... olha bem entre os olhos da dentista e utilizando um tom de voz bem relaxado e articulado diz:
- Andréia, acredite um implante desses não seria nada pra mim. Eu realmente preciso me livrar desse dente pois acho que já tem um fator psicológico envolvido nisso. Parece que é uma parte do meu corpo que criou vida própria e está aí só pra me infernizar... e eu me sentiria muito mais confortável sem isso na minha boca.
- Bom então já que o senhor insiste poderemos fazer dessa forma. Eu só terei que fazer uma radiografia para podermos ir providenciando o implante. – Pedro então mentaliza sua força de convencimento dizendo:
- No momento não será possível, a senhora arranca primeiro e depois faremos a radiografia.
- Ok Sr. Antônio... vamos fazer do jeito que o senhor se sinta mais confortável. Podemos marcar para a próxima quarta a extração?
Pedro está cansado e quase desistindo da conversa e pensa em ser mais agressivo, mas decide ser prudente e resolve continuar com a conversa:
- Andréia eu realmente preciso me ver livre desse dente agora, eu lhe pago 10 vezes o valor pelo qual a senhora normalmente cobra.
- Poxa senhor Antônio, o senhor realmente me convenceu... acho que deve haver algum aspecto psicológico envolvido nisso, agora até eu quero arrancar esse dente agora (risos). Eu vou realizar a extração agora, mas vamos lhe cobrar o valor normal, não se preocupe.
Enquanto a dentista prepara o material para realizar a extração Pedro fica preocupado que talvez não tenha controlado sua vontade de resolver logo a situação e tenha usado o implante para alterar o estado mental de Andréia, o Bureau poderia rastreá-lo mais facilmente. Agora não adiantaria mais ficar pensando nisso, o dente deveria ser arrancado. Ele tenta relaxar então olha para o quadro em frente a cadeira, é a pintura de um fim de tarde num campo... escuta a dentista falando com a secretária sobre o procedimento e começa a se lembrar de como tinha ido parar ali... uma cidade a 500 km do CCO14. Ontem ele era o operador Pedro e hoje de madrugada teve que sair daquela forma... era o único jeito de não se tornar mais um vagando pelas ruas ou pelos hospitais psiquiátricos... lembrou de Dênis... como se arrependera de ter feito o que fez, como pode ter sua mente dominada pelo Bureau daquela forma, aquela luta já não fazia sentido há tempos... pobre Dênis... lembrou do olhar quando o entregou para Cássia... as algemas, as seringas, nenhuma palavra, apenas o olhar de Denis... um misto de tristeza, decepção e por incrível que pareça compaixão... o esboço de um sorriso e as lágrimas... ficou um último aviso na sua última mentalização: "Tempos difíceis lhe trarão sabores amargos...". Pedro suspira profundamente, sente um aperto no peito e então respira pausadamente controlando suas emoções. Sua mente volta ao presente...
Hoje Pedro "está" Antônio, amanhã poderá ser Felipe, e depois disso quem sabe?
Andréia pede num tom doce e amigável para ele abrir a boca para que possa aplicar um creme em sua gengiva. A sensação é um pouco fria e o cheiro é uma mistura de menta com algum tipo óleo que não consegue identificar.
Pedro se lembra do dia em que esse dente lhe foi implantado, ele tinha 16 anos.
A picada na gengiva trouxe sua atenção novamente para a sala da dentista.
- Tudo bem Sr. Antônio?
- TUTO - responde Pedro com um aparelho no canto da boca.
-Vamos aguardar um minutinho para finalizar.
- TUTO PÉM - tentando se comunicar com a dentista.
Pedro se lembra da noticia do jornal... aos 12 ele foi submetido ao teste com o cão, o teste em que o operador deverá fazer com que o animal (geralmente um cão de porte grande ) ataque o próprio dono e depois, seguindo as ordens do supervisor, fazer cessar o ataque. Geralmente o início do ataque não era problema já que o futuro operador já tinha treinado coisas mais simples com muitos cães, problema era cessar a agressão no tempo delimitado já que os donos tentavam se proteger e ás vezes revidavam o ataque, terceiros poderiam intervir e poderia ocorrer outras situações não previstas. Com isso o operador poderia mostrar como seria seu poder de controle e como ele age sob pressão e com situações que tendem a sair do script. Pedro se lembra que aquilo lhe trazia um misto de ansiedade, medo e excitação – Serei capaz de cumprir a missão satisfatoriamente? – pensou na época.
A dentista chega com o instrumento para arrancar o implante em uma das mãos e na outra um pouco gase. Pedro se sente desconfortável nunca havia se tratado em outro dentista senão naqueles do Bureau, aliás qualquer situação de cuidado com a saúde seria tratado por alguém que tivesse algum relacionamento com o Bureau.
Andréia posiciona sua mão esquerda no maxilar de Pedro e diz:
- Bom senhor Antônio, é chegado o momento. Abra a boca e vamos fazer isso da melhor forma possível o senhor não deverá sentir nada.
Pedro abre sua boca e sente o corpo de Andréia colado ao seu lado. As mãos de Andréia estavam mornas. Ela posiciona o instrumento sobre o dente e começa a puxar e balança-lo. Pedro sente um forte zumbido em seus ouvidos, sua cabeça balança junto com os movimentos de Andréia, ele faz uma expressão de incômodo e ela percebe e pergunta:
-Tudo bem senhor Antônio?
-Hum Hum – reponde Pedro afirmativamente, mesmo sentindo um forte desconforto causado pelo zumbido em seus ouvidos.
Andréia continua fazendo os movimentos necessários para realizar a extração. Pedro começa a ouvir outras frequências de som, todas misturadas entre graves médios e agudos. Também já começa a sentir o gosto de sangue alagando sua boca. Os sons são realmente irritantes e vão se tornando absurdamente altos... a respiração de Pedro fica irregular e ofegante, Andréia decide dar uma pausa.
-Senhor Antônio, o senhor está sentindo dor? Eu posso aplicar-lhe mais anestesia.
-Não é necessário, na verdade eu acho que estou um pouco nervoso... vou tentar me acalmar... pode continuar...
- Me parece que a raiz é bem profunda... mas já vamos terminar, só tenho que tomar cuidado para não quebra-la.
Andréia continua tentando extrair o dente. Aperta tanto o instrumento que pode ouvir o dente trincar. Pedro sente algo como se fosse uma descarga elétrica em todo o seu crânio. Os sons param, sente alguns clarões em sua vista, seu coração dispara e seu corpo fica todo enrijecido. Um forte gosto amargo impregna sua língua. A dentista finalmente consegue arrancar o dente.
-Nossa, nunca vi uma raiz tão estranha! Vou colocar uma gase no local da extração.
Logo após começa uma forte hemorragia.
– Senhor Antônio, acho que o senhor teve mais algum dano nesse tal acidente... o local está sangrando muito, isso não é normal, mas vamos tentar controlar isso!
Após alguns minutos Andréia consegue estancar a hemorragia.
Pedro pode sentir seu coração batendo fortemente onde estava seu implante. Fica imóvel por alguns segundos sua visão some. Devagar os clarões vão parando e sua visão vai se tornando normal... Ele revê a pintura em sua frente. Finalmente, após alguns segundos os sons vão ficando mais baixos e agora Pedro começa a ouvir cochichos e suspiros, seus ouvidos ficam confusos. Ele tenta olhar com o canto dos olhos ao seu redor procurando as vozes, elas pareciam vir de pessoas coladas ao seu lado. Apesar de dominar várias línguas não consegue identificar o que as vozes dizem, e elas vão aumentando a intensidade agora ele pode ouvi-las como se estivessem sendo pronunciadas dentro de seus ouvidos. Andréia está no balcão preparando novos instrumentos. Pedro tenta controlar seu desconforto pois sabe que pode ser interferências em sua mente que agora sente a falta do implante que esteve com ele por vários anos... as vozes vão sumindo uma a uma mas uma voz familiar vem aparecendo dentro as demais e vem ganhando espaço no seu ouvido: "esse é o momento Pedro, você está livre"... "esse é o momento"... "eu sabia que você um dia você estaria pronto"... "você está livre"... "este é o momento"...
Andréia chega para aplicar os pontos na gengiva de Pedro. A dentista demora alguns minutos e termina, coloca um pequeno chumaço de gase no local e pede que ele morda delicadamente. Pedro pede o dente com gestos. Andréia o desembrulha do papel e o observa por uns instantes, ela arregala os olhos e abre a boca com espanto, o dente estava trincado e pela trinca estava escorrendo algo que se parecia com mercúrio de termômetro. Pedro se apressa em retirar o objeto das mãos dela, o embrulha num pedaço de papel toalha, põe no bolso. Andréia faz um gesto apontando para o implante e antes que perguntasse alguma coisa Pedro diz:
- Eu lhe disse que esse dente tinha alguma coisa de errado doutora.
Andréia fica sem reação. Pedro acerta os honorários e marca o retorno que sabe que não acontecerá. A dentista dá as recomendações normais após uma extração e pergunta se poderia ficar com o dente, Pedro se faz de desentendido e sai pensando em chegar logo no hotel em que se hospedara.
Caro leitor, aqui é Pedro falando. Ouça atentamente minhas instruções:
Role o texto até aparecer a estrela laranja e vote!
Abraço!
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