Vinte e dois - Emanuelly.
Sempre tive consciência que Nelifa tinha o ímpeto de torturar seus prisioneiros, mas nunca permiti que Oráculo me mostrasse a cena.
A visão de um Oráculo reproduzia cada sensação, olhar ou sentimento, caso acompanhássemos um ser. Mas jamais algo poderia chegar perto, da agonia de estar em pé, oculta pelas sombras, sentindo o cheiro de fluídos e sangue, ouvindo os gritos e as lágrimas. Não poderia imaginar, em meus sonhos mais profundos e amedrontadores, algo que se aproximasse da dor de estar ali e não poder interferir.
Tinha plena consciência que em algum momento, Nelifa teria um surto e enlouqueceria. Sabia que o gatilho seria a visita dos Escolhidos. Mas assim que as poucas palavras trocadas com os sete, destruíram seu psicológico já bem deteriorado, a rainha permitiu que sua crueldade fosse externada, derramada como ácido...
E a visão tão próxima desse acontecimento, fora perturbadora.
Estava escrito desde seu nascimento, que Nelifa cairia por sua loucura e crueldade. E agora, essa derrota estava muito próxima de acontecer. Extremamente próxima.
A cada estalar do chicote que ecoava pelo limo, os corpos de Madison, de Kille e o meu, se encolhiam, apavorados pela sensação de dor, mesmo que não fosse direcionada à nossa pele. Se seguisse o ímpeto de impedir Nelifa, destruiria a possibilidade de saírem com vida e por mais controverso que parecesse, deveria apenas esperar.
Mas a espera era o verdadeiro desafio.
Os gritos de Madison feriam profundamente minha alma, carregados de desespero, algo que ela não tinha a vergonha de estampar à quem quisesse ouvir. Em diversos momentos, cerrava os olhos até que minhas têmporas reclamassem e implorava por uma palavra doce de Oráculo, algo que me devolvesse a paz mesmo que momentaneamente.
Enfim, Nelifa saiu a procura de seus outros brinquedos, algo a mais para tortura-los e sanar sua sede de sangue. Meu corpo se ergueu vagamente no automático, me levando à abrir a cela devagar. Madison se desmanchava em lagrimas, se debatendo e arruinando ainda mais seus pulsos, presos em algemas de metal.
Não era só ela a chorar agora... Não consegui segurar o aperto no peito, ao ver o sangue escorrer de cortes profundos, provocados pelo couro fortalecido dos chicotes e por lâminas extremamente afiadas e acompanhei a garota, a pele arrepiada por conta da imagem. Madison me encarou, penetrante, seu olhar se assemelhando à duas estrelas de tão brilhantes. Sua voz estava rouca quando resmungou:
— Princesa... — Chamou, seu tom parecendo suplicante. — Por favor... Eu não quero morrer...
E amaldiçoei os Quatro Pilares do Firmamento Cósmico, pela verdade que povoou aquela frase. O medo e as ressalvas humanas com relação à morte, era algo que jamais entendi, mas naquele segundo, no exato momento em que percebi o tamanho do medo, da agonia... Da responsabilidade que aquela jovem levava em seus ombros, toda a precaução que mantive se dissolveu como pó.
Madison suplicara pela vida...
E uma bruxa jamais negava a vida à um inocente.
Nunca foi necessário que usasse minha magia, jamais precisei mover sequer um dedo com ela. Já era um Oráculo e nascera em uma longa linhagem real de bruxas. Parecia errado usa-la quando se tem um dom raro. Mas ali, qualquer promessa feita fora esquecida e o leve brilho azul claro que escorria de meus dedos, destroçou os quatro pares de algemas que prendiam os Escolhidos. O torpor da dor e os desmaios se dispersaram, fazendo com que despertassem assustados, mas feridos o suficiente para que não conseguissem se mover.
— Temos pouquíssimo tempo... — Sussurrei, agachando-me ao lado de Kille.
Esfreguei as mãos.
Não conseguia me lembrar da última vez que senti minhas veias pulsarem tão forte. A magia, a energia fluída e prateada que corria junto às minhas células sanguíneas, procurando uma forma de finalmente ser liberada, era de certa forma um vício. Massageei cuidadosamente a pele a volta dos ferimentos mais profundos de Kille, observando enquanto o tecido se fechava, reconstruindo-se rapidamente, sanando ao menos uma de suas dores. A escassez de tempo não permitiu que reconstruísse todo o músculo e a pele, mas consegui que o ferimento não provocasse mais que um desconforto suportável ao correr.
Segurei as costelas de Madison, um pouco afobada e a garota gemeu de dor, mas não me impediu. Com a outra mão, acariciei os cabelos pegajosos de Lucas, na tentativa de estancar a hemorragia do largo ferimento atrás de sua orelha e lhe devolver o pensamento racional. O garoto delirava, revirando os olhos constantemente. Esperava que não começasse a convulsionar, minha magia não seria de grande ajuda.
Madison por sua vez, monitorava a situação dos outros Escolhidos atentamente, segurando forte a mão do garoto de olhos claros, seu rosto se contorcendo em uma expressão preocupada. Ela, entre os quatro parecia a mais lúcida, mantendo-se sobre os joelhos, respirando de forma constante. A outra mão se apoiava no ombro de Kille, que voltava aos poucos a reagir aos estímulos, os olhos agora abertos parecendo perdidos. O olhar da garota de pele clara, se mantinha pregado em Rosh, ainda sem consciência.
— Você foi forte. — Murmurei, a voz extremamente alta em meio ao silêncio. Madison assustou-se, me encarando com um pouco de pânico. — Manteve o silêncio de forma corajosa.
— Não tanto quanto precisava... — Ela murmurou baixo, como se suas palavras fossem a única verdade absoluta que conhecia. — Não consegui protege-los e chorei muito, muito mesmo...
— Chorar não é sinônimo de fraqueza. — Respondi-a, calmamente. — Não poderia ter feito algo, mesmo que não estivesse presa... Não se culpe por tudo isso, você não teria outra opção.
— Eu... Tinha um plano em mente... Mas ele era praticamente suicídio... — Revelou, lágrimas grossas e quentes escorrendo por seu rosto jovem. Madison tentou as esconder, encarando o chão. — Para mim, continuar lutando também seria suicídio... Mesmo sabendo que haviam grandes chances de dar errado, continuei com ele e alguns de nós acabamos aqui. Por isso Kille esta sangrando tanto, por isso estamos nessa situação...
A encarei profundamente, um sorriso tímido e satisfeito surgindo em meus lábios. Muitas vezes, havia reservado um momento para refletir como pessoas comuns faziam suas escolhas, completamente as cegas de suas consequências. Era algo cotidiano a eles, mas que para mim, nunca fora plausível. Cada decisão que já tomei, fora pensada, cogitada e suas consequências mostradas a mim por intermédio de Oráculo, para que conduza os acontecimentos da melhor maneira possível. Me incomodava a possibilidade de uma vida sem isso, à mercê da sorte, confiando no destino. Observando a situação de Madison, entendia melhor a simplicidade que fazer escolhas representava em tantas raças. Boa parte das escolhas que ela arriscou esta noite, a levaram para este momento, para sua saída. Mesmo que suas consequências sejam destrutivas, dolorosas...
— Mas seu plano foi completamente destruído, ele não tem mais possibilidade alguma de ser aproveitado? — Indaguei, o tom de voz bem baixo. A garota me encarou, esboçando um sorriso sarcástico em meio às poucas lágrimas.
— Você é um oráculo, deve saber... — Segurei seu queixo, a iluminação tênue cuidando dos cortes abertos em seu rosto. Observei-a de forma questionadora, encarando profundamente o interior daqueles olhos escuros. Ela era esperta, mas não o suficiente para enganar Destino. Esperei que continuasse, retirando minha magia de seu corpo e a direcionando para Rosh, ainda muito machucado. — Não, não foi completamente destruído. Helena, Jesse e Genezis não estão aqui, prefiro imaginar que estão em segurança... — Madison respondeu-me com cuidado, fechando os olhos, esboçando seu cansaço.
Cogitei por um breve momento, pedir a oráculo que me mostrasse onde estavam aqueles jovens, mas sabia que não poderia seguir com esse ímpeto. A incerteza era essencial para que o plano de Madison se concretizasse, para que o destino se cumprisse. Precisava estar tão às escuras quanto ela.
— Princesa... — A garota sussurrou, voltando seu olhar para meu rosto. — Obrigada por isso... Você... Surgiu em um momento bem oportuno, apesar de tudo o que está passando. — Abri meus lábios para responder-lhe, mas o que resmunguei fora uma dúvida que surgiu em minha garganta, franzindo as sobrancelhas.
— O que eu estou passando...?
— Sobre... — Ela parou, pensando por um momento comprido e mordendo os lábios com força. — Sobre o seu casamento, sua venda no tratado entre os reinos...
Ironicamente, sorri com humor, mostrando todos os dentes. Sua preocupação comigo era adorável... Meu casamento com Phillip era o menor de seus problemas, mas ainda assim, se preocupava. O silêncio se instaurou enquanto nos encarávamos, minha magia cuidando pouco a pouco dos últimos ferimentos de um Rosh já desperto. O garoto escutava cada palavra, mas era esperto e permanecia em silêncio.
— Não se preocupe comigo. — Tomei sua mão, apertando-a levemente como forma de conforto. — Ficarei bem, não se incomode com meus problemas. — Continuei, com ainda mais ênfase. — Se importe com seus ferimentos, com seus amigos. Nada disto acabou, ainda estão em perigo! Necessito terminar de cura-los, Nelifa voltará a qualquer momento.
Por alguns segundos, o silêncio reinou sobre o ar, sendo interrompido apenas por pequenos roedores que corriam, entrando e saindo pelas rachaduras largas das paredes. Um gemido de dor ecoou baixinho de uma cela vizinha e tive que obrigar-me a ignora-lo, o corpo arrepiando de forma incômoda.
— A rainha possui os mesmos dons que você? — Timidamente, Madison questionou, segurando as mãos de Lucas para ajuda-lo a se sentar.
— Nunca considerei-me um membro verdadeiro do clã Referny, por não ter vindo ao mundo com os mesmos dons que minha família traz como tradição. — Disse, a voz saindo como um ronronado, enquanto realocava os músculos das omoplatas de Rosh. Ele gemeu, desconfortável. — Não é comum que nasçamos como Oráculos, sou a primeira em toda a linhagem real com este dom. A magia ainda me dá outras habilidades, como a cura rápida e liberação de energia, mas não as uso normalmente. Os dons de Nelifa são um tanto mais destrutivos, ela é uma bruxa elementar da tempestade, domina o elemento da eletricidade com maestria...
— Bruxa da tempestade? Nelifa é uma bruxa? — A garota perguntou, a voz esganiçada e os olhos arregalados de surpresa. Abri um sorriso sarcástico, que cortou meu rosto de orelha a orelha.
— Eu sou uma bruxa. — Madison visivelmente prendeu sua respiração, aterrorizada. — Não se assuste, terá que encarar frente a frente, raças muito mais diferentes da sua do que nós. Somos mulheres quaisquer, mas abençoadas com a habilidade de controlar a magia.
— Desculpe... A ideia da magia ainda é um pouco estranha para mim. O título de bruxa não parece se encaixar à você! — Madison sussurrou em resposta, passando as mãos despreocupadamente pelos cabelos sujos e ensebados de Lucas, que agora aproveitava o colo da garota.
Ajudei Rosh a sentar-se, que por sua vez apoiou o corpo de Kille no seu. Os quatro estavam curados dos ferimentos mais profundos, não haviam mais cortes sangrando ou hemorragias, mas suas roupas ainda se encontravam sujas de sangue, fedendo de forma enjoativa.
— O estereótipo de bruxa que tem em mente é um tanto equivocado. — Comentei, séria. — Pelo que entendo, Nelifa está um tanto mais próxima do seu ideal. Devo confessar que ela possui uma inteligência e astúcia sobre humana, foi treinada desde sua infância para guerrear, estabelecer mentiras políticas e expandir este reino. Mas, bem... Seus transtornos psicológicos a tornam uma pessoa instável e impulsiva. Psicótica. Manipuladora, seria a palavra correta. Referny é um reino pobre, mas Iefer é poderoso, extremamente rico. Nelifa não se incomoda em mentir, matar para que atinja seus objetivos e conquiste o reino vizinho. — Levantei-me em um salto e os quatro acabaram por me acompanhar, espanando o lodo que ficara preso nas roupas. — Recebemos a visita um tenente de baixo escalão bárbaro, esporadicamente. Como sabem, a Esmeralda já se encontra em nosso poder, mas o Império Bárbaro não tem conhecimento disso. A visita do Rei Mariano II, para eles, é o inicio de outra empreitada em busca da joia, mas para a rainha é a oportunidade de dividir e conquistar um novo território. Imagino que não seja isto que vem à mente, assim que pensam na imagem de uma bruxa.
— O que, particularmente considero um pesar... A habilidade de mentir dissimuladamente, o treinamento que uma bruxa recebe ainda na infância, a rigidez dos clãs desta raça, são características belíssimas e honráveis ao meu ver.
Ouvir novamente aquele tom de voz provocou um suspiro aterrorizado, que escapou entre meus lábios de forma dolorida. Paralisei-me completamente com aquele eco de outras vidas. Deveria estar monitorando-o por meio de Oráculo, como fazia com Nelifa, mas sua presença escapou à minha percepção...
— Reven... — Murmurei.
— Sua dedicação em seguir os costumes de sua raça é invejável... — Reven caminhou silenciosamente, pé ante pé, em direção à porta da cela, o sorriso e o brilho de satisfação ofuscando sua face horrenda. Ele entrou calmamente na cela, encarando-nos com um deleite sádico. — Está até mesmo traindo seu próprio clã, Oráculo.
A raiva que percorreu meu sangue, escorreu pelas veias até minhas mãos, carregando-as com um tipo de magia diferente. A minha magia, doce e viciante como uma droga. Mantinha a expressão calma, o encarando de forma a entender e antecipar seus movimentos. Antes mesmo que o homem de aparência cadavérica, pudesse continuar a discursar contra mim, os corredores fora inundados pelo som de minha voz, ecoando pela pedra.
— CORRAM!
Corre negada! KKKK, Oiee milhos pra pipoca!! Como vão? Gostaram? Foi um capítulo que revelou muito mais sobre nossa querida Emanuelly, sobre as verdadeiras intenções de Nelifa — a rainha que tanto odiamos, mas que querendo ou não é estupidamente poderosa — e um pouquinho também de como a Madi está lidando com toda a situação. E olha, o Reven é outro dos perigos que nossos Escolhidos terão que enfrentar! Se virem algum erro ortográfico, me avisem e não se esqueçam de deixar aquele votinho lindo e colocarem suas opiniões e teorias nos comentários, que me ajuda e inspira demais!
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