Quatorze - Madison.
Tivemos mais dois treinos naquela tarde.
Hugo não perdoou erro algum. A cada golpe mal executado, um grito ou um ferimento profundo o suficiente para lembrar-nos das nossas responsabilidades. Devo admitir que a magia de cura veio bem a calhar... Perdemos de maneira cruel para os deuses em ambos os treinamentos, mas mesmo que nosso desempenho tenha sido miserável, Hugo estava convencido de que seria o suficiente. Resmungou durante alguns minutos sobre técnicas e a habilidade imortal que cada deus tinha, coisa que no quesito prático jamais chegaríamos perto, mas acabou tendo o efeito contrário ao que tentava passar e desestabilizou nossa confiança um bom bocado. Aquilo pareceu bastar para o restante dos deuses.
Mas não sei se bastava para mim.
Caminhei até a prainha assim que fomos liberados e todos os ferimentos estavam curados, ou algo parecido. Já havia anoitecido e Ruby me aconselhou baixinho que afiasse minha espada, sugestão que decidi acatar, mas faze-la ouvindo o som da arrebentação das ondas. A poluição luminosa da cidade era grande, postes e mais postes fazendo bem seu papel na boa iluminação urbana, mas mesmo assim o céu estava salpicado de estrelas. Cheio de pontos prateados e brilhantes.
O barulho da água quebrando embalou meus pensamentos, desde o momento em que estendi uma toalha sobre a areia e apoiei a pedra para afiar sobre um banquinho baixo. Devagar, segurei Incandescente e comecei a afia-la, lembrando de cada palavra na voz de Ruby, ajoelhada sobre a toalha. Meus olhos passeavam pelo porto da Cidade de Touque, perdidos enquanto as embarcações atracavam ou se distanciavam até sumir no horizonte. Transportavam mercadorias para lugares que provavelmente jamais visitarei. Ou talvez fosse exatamente o contrário. Viajaria e conheceria pessoas, caminhando por locais que nenhum conhecido meu já foi.
Descobriria isso pela manhã...
Talvez pudesse criar uma melodia inspirada na viagem, que encaixasse com a imensidão de letras que já compus e nunca gravei... Meu violão agradeceria que dedicasse um pouco mais de atenção a ele.
— Se está tentando tocar acordes na espada, não acho que vá sair alguma coisa... — A voz sarcástica e juvenil de Helena me tirou dos pensamentos e encarei seu rosto, abrindo um sorriso. Ela se ajoelhou ao meu lado, sujando seu vestido lilás de areia. — Mas você pode continuar tentando, a gente precisa ter esperança!
— A ideia inicial era afiar. Mas acho que o que eu queria mesmo era estar tocando agora...
— E por quê não está? Não adianta, se não prestar atenção vai acabar cegando a lâmina e o trabalho vai ser jogado fora. — A ruiva me encarou fixamente por um segundo.
— Por quê a partir de amanhã, poderemos sair dessa casa e não voltar mais. A cada segundo que passa, eu me pergunto que se acabar nunca voltando, quantas vidas serão perdidas. O que minha mãe vai fazer quando receber a noticia, ou se sequer vai descobrir. — O sorriso sádico que se entendia no rosto pálido de Helena foi desaparecendo, pouco a pouco enquanto falava. — Eu não consigo fazer nada. Se afiar a espada, ela vai acabar cega. Se tentar tirar qualquer melodia, o violão vai sair completamente desafinado. Se eu entrar dentro desse mar, é capaz de me afogar com o quanto tudo isso pesa...
Helena observou as águas em silencio. Ela abriu a boca e fechou, como se quisesse responder algo, uma, duas vezes, até que pareceu desistir e apenas se encostou em meu ombro, abraçando as pernas. A garota demorou o que me pareceu uma eternidade, até que dissesse alguma coisa, pigarreando alto.
— Como você consegue? — A ruiva perguntou, sem me encarar. Voltei meu olhar para seu rosto, me perdendo entre as sardas, mergulhando no quão profundo e escuro era o verde de seus olhos. — Não desmoronar, mesmo não conseguindo focar a mente em nada além disso?
— Eu cai várias vezes. — Helena fez uma careta, o que me tirou um sorrisinho sem graça. — Você me entendeu, não foi só... Esfolar o nariz no chão. Eles foram cruéis com a gente hoje, mas eu estaria mentindo se dissesse que não foi bom.
— Não sei se dores nas costas são algo que eu chamaria de bom... —Nós duas soltamos o ar, rindo novamente, até que a nossa respiração se sobrepusesse às risadas.
— Você está bem? — Passei um dos braços pelos seus ombros e fiz cafuné nos cabelos compridos e encaracolados.
— Ansiosa, amedrontada, suando frio... Odeio essa expectativa do que pode acontecer daqui para frente. — Ela suspirou alto, se perdendo na baía salpicada de luzes a noite. — Mas acho que estou principalmente com medo... De não estarmos prontos, de fracassarmos na primeira missão. Quando disse que os deuses já erraram uma vez e depois revelou que não fomos os primeiros a tentar... Me deixou com um pé atrás. Então veio todo o esporro de Hugo depois e as certezas foram desmoronando pouco a pouco.
Olhei para a garota ao meu lado, que me observava. Seu brilho era inocente, curioso... Esperava que aquele fundo de sagacidade jamais se apagasse, ou fosse perdido se as coisas começassem a dar errado.
— Não queria ter dito tudo isso daquela maneira, mas imagino que foi o jeito mais fácil de contar, apesar do momento um pouco estranho. — Helena relaxou os músculos, colocando todo o peso de seu corpo contra o meu.
— Isso é tão perturbador... — Ela me abraçou, tão rápido que nem tive tempo de retribui-la antes que se afastasse. — Nenhum de nós agradeceu, mas acho que deveria te dizer um obrigada por ter contado o que sabia. Como o Lucas disse, eles não tem transparência e provavelmente não nos dizem tudo o que deveríamos saber. Seria triste se nem mesmo entre nós pudéssemos confiar uns nos outros. — Ela respirou fundo, se acalmando e em seu rosto sardento se formou um sorriso. — Não podemos nos desequilibrar logo agora.
— Não precisa agradecer por eu ter feito o básico. — Arqueei as sobrancelhas, meu rosto se iluminando. Guardei Incandescente na bainha e segurei a pedra de polimento entre os braços. — Vamos entrar, eu vou fazer um doce para a gente esquecer dos problemas.
— Acho que tudo o que eu preciso agora é me afundar em um Patuhio cheio de geleia... — Helena se levantou, me ajudando a recolher o que estava sobre a areia e seguimos casa a dentro, o som das ondas se afastando pouco a pouco.
Ao contrário do que esperava, a noite foi tranquila. O coração estava acelerado quando coloquei a cabeça no travesseiro, observando o quarto tão parecido com o meu na casa dos meus pais e meu estômago se revirou de medo e saudade. Acendi uma vela aromática, a essência que contornou o relacionamento de mamãe a papai durante tantos anos e deixei que meu corpo mergulhasse em lembranças. As lágrimas lavaram os pesadelos que me assombraram durante dias e dormi um sono sem sonhos. Ou ao menos, um sono onde não lembrei de nenhum deles.
Havia programado meu despertador para levantar antes do café-da-manhã, mas bem no dia em que atrasos não seriam tolerados, não levantei no horário.
O banho foi rápido e frio, o suficiente para acordar meus músculos e tirar a oleosidade matutina da pele. Desci as escadas apressada, na tentativa de não perder o café. À mesa, ainda se encontravam todos os Escolhidos e o ar à meia luz da sala de jantar parecia uma caçarola de medo e esperança, se misturando pouco a pouco. Suspirei e me sentei, colocando o café-da-manhã em um prato e aproveitando os últimos momentos de vida normal.
Quando as Marcas brilharam novamente, não tivemos a mesma reação de semanas atrás. De certa forma, dessa vez sabíamos o que significava, quando Hugo se recostou sobre a soleira do portal entre a sala de jantar e a cozinha, o olhar preso no chão mas um meio sorriso nos lábios.
— Estamos um tanto atrasados. Cuidarei da casa enquanto estiverem fora, não se preocupem. — O deus resmungou e fez sinal para que o acompanhássemos. Não nos demos ao trabalho de limpar a mesa antes de ir.
Ametista estava sentada no degrau entre a varanda e a praia, quando Hugo anunciou nossa chegada e se levantou com um brilho pesaroso no olhar. Ontem, durante o treino, ela havia sido fria, mas agora a frieza havia sido sobreposta por uma preocupação quase maternal...
— Eu adoraria continuar aqui e poder conversar com vocês um pouco, mas realmente precisamos ir. Houve um imprevisto e apenas eu pude sair do Palácio dos Quatro Pilares. A cidade construída lá dentro está ardendo em fogo, precisaram ficar para que controlassem o pandemônio. As pessoas estão com medo, em polvorosa... — Ametista anunciou e sua expressão se endureceu, como se uma memória surgisse. Cruzei os braços, soltando um longo suspiro.
— Inspirador eu diria... — Kille resmungou consigo mesma e vi quando Helena segurou sua mão.
— Estou orgulhosa de vocês, apesar do que aconteceu ontem. — A deusa começou. — Se tornaram soldados durante esse mês, isso é inegável. — Hugo prostrou-se ao lado de Ametista, concordando brevemente.
— Os sete tem toda a capacidade que precisam, tem habilidades que são excepcionais. Não se deixem abalar por uma derrota... — O deus disse. — Haverão outras e precisarão aprender a se levantar quando forem derrubados.
Ametista desenhou o ar com a ponta dos dedos, virando-se subitamente para a areia da praia e usou as mãos para girar a chave imaginária. A areia se remexeu, como se estivesse engolindo a si mesma e em poucos segundos um redemoinho que brilhava tenuemente se abriu.
— Vocês já conhecem esse portal, ele os levará aonde precisam. É espalhafatoso, mas serão mandados longe o suficiente para que não produzam alarde e estarão com todas as forças de uma noite de sono. — Ametista disse, alto o suficiente para sua voz se sobrepor ao zumbido baixo do vento. — O planeta para onde serão mandados se chama Afandrite, na quarta dimensão. É um planeta habitável para a sua espécie e tem sua divisão política feita por meio de reinos, estarão no território de Referny. A joia que procuram é uma Esmeralda, sabemos que está no castelo deste reino. Tomem cuidado, Referny é indiretamente controlado pelos Bárbaros. O portal se abrirá em meio a floresta e devem seguir para o norte.
As mãos dela começaram a brilhar levemente e Ametista estalou os dedos. A roupa que vestia foi subitamente trocada por uma espécie de armadura, feita de couro de batalha em um tom de terra camuflável. Era extremamente quente para o calor normal da Cidade de Touque, mas contornava meu corpo de maneira reconfortante. Havia uma camiseta escura por baixo de um coldre leve e do casaco abotoado, o tecido deslizando sob meus dedos. Apesar da aparência dura, o casaco e o coldre pareciam esticar conforme meus movimentos e nem ao menos sentia que estavam sobre minha pele. A calça de couro tinha o mesmo efeito, se movendo sem apresentar nenhuma resistência, mas havia algo acolchoado sobre as canelas e os joelhos. Segundo Ruby, lugares onde um golpe nas pernas causava mais dor e que deveria proteger. A guarda de Incandescente era a única coisa que sentia, pesando na cintura com a espada já embainhada. Uma armadura perfeita para missões fora do campo sangrento de uma batalha.
— O couro é enfeitiçado, feito para ser flexível, elástico. É resistente a fogo e quase todos os tipos de ácidos. Estarão protegidos como em uma armadura, mas com o conforto das vestimentas de um espião, preparados para se camuflar onde for necessário. — Houve um murmúrio de concordância e a deusa conjurou, assim como as roupas, mochilhas pequenas e aparentemente cheias. — Vão precisar de suprimentos para sobrevivência. Estão cheias de agasalhos, barracas, sacos de dormir e materiais para primeiros socorros. — Ametista apontou para as mochilas, indicando que deveríamos usa-las e ao contrário do que esperava, estavam leves.
— Ao menos vocês pensaram em tudo... — Jesse comentou.
— Tem mais uma coisa que vão precisar. — De dentro do bolso da calça, Ametista retirou um colar. Seu cordão era escuro e no pingente estava uma pedra azulada e transparente. — Essa é uma joia d'água, usada normalmente para comunicação. Duas jóias d'água de cor idêntica se comunicam, como um espelho. Assim que pegarem a Esmeralda, tudo o que precisão fazer é esfrega-la e atenderemos vocês, para que o portal seja aberto e possam voltar para cá. — Ela segurou o colar em frente ao rosto. — Um de vocês deve leva-la. Alguém se prontifica?
Imediatamente, dei um passo a frente.
Ninguém mais se prontificou, o que me deixou desconfortável e Ametista me encarou, parecendo satisfeita. A deusa passou a corrente por cima da minha cabeça e a arrumei por dentro da roupa, junto ao colar com pingente de pássaro. Subitamente, estava consciente demais da pulseira dada por mamãe, dos colares e da minha própria respiração entrecortada.
— Tomem cuidado, por favor. — Hugo pediu, recostado na pilastra de madeira. Ametista concordou.
Assentimos com a cabeça, descendo para perto do portal.
Nos reunimos em volta da profusão de areia, os olhos semicerrados para suportar a pequena tempestade. Não estava explicito, mas sabia que estávamos reunindo coragem. Fizemos um circulo à volta do redemoinho e segurei a mão de Helena, buscando uma força que deveria estar demonstrando. Ela segurou a de Lucas e ele a de Jesse. Em alguns segundos, estávamos todos de mãos dadas, em silêncio, os olhares apreensivos dos deuses queimando nossas costas.
Até que Rosh resmungou, a voz um tanto desesperada.
— Pelo universo?
Talvez. Com toda a certeza esse era um dos porquês de estarmos ali. A esperança da salvação de todo o cosmos nas mãos de sete adolescentes amedrontados e receosos. Uma maneira decepcionante de se começar...
— Por esse planeta. — Genezis respondeu, tímida.
Concordei com a cabeça. Meu planeta, minha família e meus amigos... Outro porquê de estar ali naquele momento, em pé e criando coragem para pular. Eles não sabiam o que estava acontecendo e deveria garantir que não soubessem, que tivessem a possibilidade de uma vida plena e feliz. Sem a preocupação ou o peso que estava nas minhas costas agora. Os rostos de Eve, Ray, Wesley e mamãe surgiram na minha mente.
E por eles, abri a boca e completei aquilo que talvez se tornaria um grito de guerra. Uma promessa, escondida, mas tão real quanto se a tivéssemos anunciado aos quatro ventos.
— E por todos nós.
Sem esperar nem um momento a mais, pulei no portal, agarrando a mão de Helena mais forte e tendo total consciência de que outros seis adolescentes pularam atrás de mim.
Tendo total consciência de que estavam tão amedrontados quanto eu.
É ISSO MESMO MEUS MILHOS PRA PIPOOOOCAAA! A aventura FINALMENTE começou e olha que agora é verdade! Eu venho prometendo isso a muitos capítulos e agora não estou mentindo, as coisas vão pegar fogo e haverá muito sangue derramado kakakak A partir de agora, cada passo em falso pode causar uma morte! Como acham que nossos Escolhidos vão lidar com esse medo e esse receio? Muita coisa sobre confiança foi dita, e esperamos que seja cumprida! Comentem e votem, ficarei MUITO feliz em saber o que estão achando dessa história!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro