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6


O grande relógio mostrava que passava das três da manhã e os três protetores e a garota emburrada andavam à passos largos pelo átrio da Central do Brasil. O silêncio se estendia pelas colunas e pisos sujos, que Helena nunca reparou. Em algumas horas as pessoas pipocariam de um lado para o outo em direção ao destino que as aguardava e, se aquele fosse um dia normal, Helena também faria o mesmo.

A realidade era mais estranha do que esperava e ao invés de ir para o colégio e dar um jeito de calar a boca de Madalena com algum dinheiro, estava na companhia de três protetores, como eles se intitulavam, andando pela estação de trem durante a madrugada, despistando os guardas locais.

― Brascard fica depois de qual estação? ― Ela quebrou o silêncio.

A sua voz ecoou pelo recinto vazio e Charlotte lançou um olhar de desaprovação, sem mesmo responder a sua pergunta. Ivan mancou até uma das catracas ao lado da parede de mármore, que dava para uma plataforma desativada. 

Passaram por inúmeros avisos de manutenção e cuidado, que foram ignorados de modo solene. Ivan pegou quatro cartões dourados do bolso do paletó e entregou um para casa. Helena admirou a letra fina e caprichosa no ticket dourado.

― Uma passagem para o grandioso expresso-voador de Brascard. Serviços de bordo não incluso.

― Parabéns, você sabe ler, agora vamos. ― Disse William mal-humorado.

Ivan e Charlotte atravessaram para o outro lado, indo em direção à plataforma desativada. William deu passagem à Helena, mas a garota deu dois passos para trás. Era como estar diante de um precipício, se pulasse, se confiasse à sua vida a eles, poderia não ter mais volta.

― Vai dar para trás agora? ― Will desafiou.

Helena passou a sua frente e depositou o cartão dourado na máquina, torcendo para que soubesse voar.

― Eu não sou de dar para trás. ― Disse, então girou a roleta e caminhou em frente.

A sensação era como atravessar um véu invisível ou centenas de milhares de teias de aranhas imperceptíveis. Na plataforma desativada, que de desativada não tinha nada, uma locomotiva colossal chiou. O monstro de metal escuro contava com pelo menos quinze vagões e no topo do primeiro uma chaminé soltava uma fumaça colorida e brilhante.

― Estamos atrasados. ― Disse Will. ― O Madureira vai ficar uma fera. Ele nunca se atrasa.

― Madureira? ― Helena perguntou seguindo Will pela plataforma.

― O condutor. ― Disse Will subindo um degrau pequeno e entrando num dos vagões.

Um apito soou estridente do primeiro vagão e Helena se apressou em subir também. Seguiu Will até o que o vagão-restaurante do complexo. Ivan e Charlotte ocuparam uma das mesas redondas forradas com toalha de linho. O salão revestido em madeira cara contava com ao menos dez mesas redondas e era iluminado por lampiões flutuantes sob o teto vermelho.

― Você não vai querer tocar aí. ― Will avisou.

― Porque? É lindo.

― E queima. ― Explicou. ― Fogos-Fátuos.

Um garçom engomado que estava de costas, arrumando os copos numa prateleira.

― Um suco de abobora, por favor. ― Pediu Will.

O garçom engomado estava de costas para eles, arrumando os copos de vidro numa prateleira lustrosa.

― Quer alguma coisa? ― Ele se virou para Helena.

Helena perdeu a fala. O garçom que desceu da escadinha não tinha mais que um metro e meio de altura. A pele era levemente esverdeada, os cabelos encaracolados e as orelhas grandes e pontudas. As mãos e os braços eram desproporcionais para corpo e possuía intensos olhos amarelos.

― Presumo que a senhorita nunca viu um hobbit. ― Ele disse num tom cordial. ― Deixe que eu me apresente, sou Greymark, oriundo dos Lagos, ao seu dispor senhorita.

Greymark fez uma reverencia por de trás do balcão e Helena imitou o seu gesto.  Ao seu lado, Will soltou um suspiro.

― Eu sou Helena. ― Disse, depois de um momento longo demais. ― Desculpe se o ofendi.

― Ah, não se preocupe. ― Ele respondeu enquanto colocava uma jarra de suco laranja na única mesa ocupada. ― Não somos muito comuns hoje em dia. A senhorita deseja alguma coisa?

Helena fez que não com a cabeça e se sentou junto aos outros. Não era como se tivesse refrigerante naquele bar ou algo do tipo.

― Obrigada, Greymark. Mande lembrança aos seus pais por mim. ― Disse Ivan, educado.

― Não é como se eles quisessem falar comigo, Sr. Lee. ― Respondeu o hobbit voltando à sua prateleira. ― Não é comum um hobbit sair de sua toca como eu disse.

Acham que eu sou a vergonha da família por querer algo... diferente. ― Ele disse num tom amuado.

― Nada que o tempo não resolva. ― Ivan o tranquilizou.

― Espero que sim. ― Ele começou a esfregar o balcão de mogno.

A locomotiva começou a se mexer e chacoalhou de leve de maneira que nem os copos ou os lampiões se mexiam. Helena prostrou a cabeça para fora da janela para ter certeza de que estavam mesmo se mexendo, quando percebeu a construção de muro à frente.

Não havia mais trilho por aquele caminho adiante e nenhum sinal de desvio também. Não era à toa que era uma plataforma era desativada.

― Desculpa interromper, mas vamos bater. ― Ela disse num tom urgente.

Will e Charlotte troncaram olhares cúmplices e Ivan não pode deixar de sorrir também. Helena se perguntou se havia alguma coisa de errada com aqueles protetores suicidas. Ela se agarrou a poltrona, enquanto Will tomou um gole do seu suco alaranjado e se deliciou com cada segundo de desespero que o seu olhar nutria.

― Vocês são loucos!

A locomotiva alçou voo a metros do impacto e lentamente subiu em direção numa dança em ziguezague. Helena arfou e pôs a cabeça para fora da janela. O vento frio da manhã bagunçou os seus cabelos, mas ela não se importou. Viu a silhueta da estação da Central do Brasil ficar para trás, assim como as casas que haviam na encosta da estação.

A locomotiva deu uma guinada e serpenteou por entre os prédios espelhados. Naquele instante os raios de sol da manhã brilharam e refletiram sobre os para-brisas das longas fileiras de carros e ônibus que movimentavam o transito do centro da cidade em horário de pico. Nenhum deles notou a locomotiva que ganhava altitude e se aproximava ainda mais das nuvens.

Aquela definitivamente não era uma manhã normal para a jovem Helena Crawley, mas em algum lugar dentro dela, algo desconhecido até então despertou. A sensação de que estava no caminho certo cresceu em seu peito. Da mesma forma que a velha locomotiva sabia que Brascard ficava para muito além do oceano, Helena sabia que era para lá que o destino chamava o seu nome.

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