52
Dezoito anos mais velho do que na escultura, Edgar ainda era um homem belo. A sua pele era branca e os cabelos pretos penteados para trás traziam duas faixas grisalhas. Os seus olhos eram determinados e escuros, combinavam com a sua sobrancelha grossa e arqueada. Um sorriso torto despontou naquele rosto cumprido.
― Ora, ora, ora, mas é um prazer ter sido finalmente convidado para Brascard. ― Ele disse numa voz jocosa e alegre.
Atrás dele, a dupla era um tanto fora do comum, uma senhora de pouco mais de setenta anos e um rapaz de cabelos castanhos. Não se pareciam em nada com Angelina e Marius Jenkins.
― Leon, meu velho amigo, o que fizeram com você? ― Leon foi o primeiro a se levantar. Helena e Will o imitaram longo em seguida.
― Finalmente, posso morrer em paz. ― Ele cumprimentou Edgar.
― O tempo não lhe fez nada bem. ― Edgar falou.
― Isso é impossível. ― Will deixou escapar. ― Você está morto.
― O filho dos Cardragon. Você é a cópia exata do seu pai, espero que tenha puxado a inteligência da sua mãe. ― Edgar brincou.
Helena entendeu o que a Sra. Ryan quis dizer. Edgar tinha um jeito cínico de conquistar as pessoas. Parecia que tinha voltado de uma colônia de férias e não de dezoito anos em exílio. Quando o invocador pôs os olhos nela pela primeira vez, ele deu um meio-sorriso, orgulhoso e um calafrio a atingiu.
― E, finalmente, nos encontramos novamente. Creio que a senhorita tem algo que me pertença. ― Ele disse.
Helena segurou o cetro com firmeza, mas Edgar apenas ergueu as mãos e objeto flutuou em sua direção. Era com ele que estava a sua lealdade, afinal. Foi como ver em primeira mão a escultura realista da sala.
― Ah, quanto tempo eu espero para ter essa sensação novamente. ― Ele divagou, acariciando o seu cetro. ― Vamos fazer um teste.
O invocador olhou um a um na sala. Até Leon engoliu em seco, quando Edgar apontou o cetro em sua direção. Ele se concentrou em Vince, que estava agachado semiconsciente no canto da caverna.
― Mordhor? ― Edgar falou. ― Não, muito jovem. O seu filho, talvez.
A ficha de Helena caiu. Mordhor, o homem que queria expulsá-la, era pai de Vince. O mesmo sangue corria em suas veias, mas ainda assim, tão diferentes.
― Deixe-o. ― Helena se interpôs em direção ao cetro.
― Corajosa como a sua mãe. ― Edgar disse, com um brilho no olhar. ― Que seja, talvez esse aqui!
Edgar atingiu Phineas com um raio transparente e disse palavras numa língua que Helena não soube identificar. O protetor tentou correr, mas o raio o pegou de costas. Phineas se curvou e a sua pele derreteu feito plástico. Os gritos eram insuportáveis até mesmo para o homem responsável pela morte de seus pais. Daquela mistura grotesca de pele derretida, tufos de cabelos e sangue, Helena viu se esgueirar a serpente mais repulsiva já vista.
― Uma invocação simples para revelar a sua verdadeira natureza. ―Edgar falou.
A serpente se contraiu como se queimasse por dentro, enroscou-se como uma bola. Helena desviou o rosto da cena com o estomago embrulhado.
Num movimento solene de Edgar, os cacos do espelho de espinhos se uniram, como imãs, formando uma parede de vidro escuro. Um portal. Leon se juntou ao seu grupo e Edgar olhou para Helena e estendeu a mão, num convite.
Will pegou a espada caída e parou ao lado de Helena, instintivamente. Edgar riu do seu gesto, pois Helena sabia que se ele quisesse o quebraria feito um graveto.
― Por favor, criança. Junte-se a nós. ― Ele falou de modo imponente. ― O seu lugar é conosco e não com eles.
― Você está errado, eu sou uma protetora! ― Ela gritou.
― Está tentando me convencer ou a si mesma? ― Ele ergueu a sobrancelha. ― Somente um invocador poderia encontrar a chave e me libertar.
Will a encarou, aterrorizado. Helena negou. Não. Não era possível. Os seus pais eram protetores. Francis e Tereza Crawley.
― Os meus pais... ― Ela começou, mas a frase morreu em sua garganta pela metade. ― Os meus pais?
― Francis e Tereza Crawley, dois protetores que se passaram por naturais por sete anos por nenhum motivo aparente a não ser... ― Ele brincou com a informação ― esconder a última criança invocadora.
― Você é um mentiroso, manipulador. É isso o que você faz! Engana as pessoas.
― Por favor, Helena. ― Foi a vez do rapaz de cabelos castanhos falar. ― Não tente resistir a verdade.
― Não fala como se me conhecesse. ― Ela vociferou.
― Mas eu conheço. ― Ele disse num sorriso esperanço. ― Meu nome é Rodka, mas você me conhece como Oráculo. ― Ele tirou um livro exatamente igual ao que Leon roubara do Clube dos Perdidos.
― Como vocês conseguem ser tão mentirosos? ― Ela gritou, perplexa.
― Eu não sou mentiroso. ― Ele disse. ― Eu te prometi a verdade, aqui está!
― Você libertou o espectro de Angelina. ― Leon argumentou. ― Entrou na biblioteca oculta e trouxe o seu amigo da morte. Sim, ela me contou tudo.
Will enrijeceu do seu lado. Maldito orbe! Maldito! Helena quis chorar, mas segurou as lágrimas ao ponto de queimar a sua garganta. As pessoas esmurrando o boneco na entrada das lojas veio em sua mente. A raiva a dominou.
Passos apressados ecoaram pela caverna. Helena ouviu vozes sussurrando e arregalou os olhos quando viu Rufus e Mora.
― Nunca pensei que fossem ser de tanta ajuda. ― Edgar elogiou.
Mora abaixou a cabeça, acuada, quando Helena a olhou de modo acusatório. Rufus fez uma reverência demorada ao invocador e Helena se sentiu enojada.
― Desprovidos, filhos de invocadores, levantem-se. ― Edgar os cumprimentou com um aceno de cabeça. ― A minha gratidão será eterna a vocês.
― Mora, sua traidora. ― Helena gritou. ― Eu confiei em você!
― Eu lhe servi da melhor maneira que pude, senhorita. ― Mora respondeu, submissa. ― O meu papel era fazer a senhorita chegar até esse momento.
― Você forjou o bilhete! ― Helena acusou. ― Estava na minha frente o tempo todo.
Vince se levantou com dificuldade e arfou, ao dizer:
― Foram eles que me atraíram para a floresta.
― Quem desconfiaria de nós? Não temos poder. ― Rufus falou. ― Vocês não nos enxergam. Não passamos de faxineiros, criadores de cavalos, engraxates. Porque se dar o trabalho de reparar em alguém tão insignificante e sem poder? ― Havia dor em sua voz.
Will empunhou a sua espada e Vince, mesmo fraco, produziu a melhor bola de fogo que conseguia. Então, Helena sacou o laço, que brilhou feito fogo líquido. O invocador sorriu quando observou a arma antiga, mas não disse nada, apenas ergueu o cetro em desafio.
As chances contra Edgar não eram nada animadoras e Helena sabia disso. Mesmo se o distraíssem por um momento para tentarem fugir, alguém seria atingido por aquele raio, ou coisa pior, e se perderia para sempre.
Ela olhou para Will, sujo de sangue e exalando feracidade. Vince estava a certa distância, ferido, porém determinados. Dois opostos, que lutariam lado a lado por causa de uma confusão que ela provocou. Não poderia perde-los. Não quando poderia simplesmente....
Numa certeza repentina, Helena puxou a adaga do bolso oculto da bota. Seria tão fácil. Por um momento viu surpresa nos olhos escuros do invocador, mas Edgar dissimulou a expressão num sorriso provocativo. A última criança invocadora, dissera ele.
Helena largou o laço e experimentou o peso da adaga. Era tão leve. A lâmina afiada e precisa brilhava conforme ela girou o cabo e apontou o gume para o pescoço. Will a observou, mas não fez nada, não moveu um músculo sequer. O seu rosto era uma mistura de suor e sangue seco, e ele parecia... destruído.
À certa distância, ela viu a aflição no rosto de Vince, que chegou a dar um passo confuso em sua direção, mas ele parou.
― Eu não temo pela minha vida. ― Helena se dirigiu ao invocador. ― Mas se eu sou importante para o que quer que você esteja tramando, a minha morte seria um terrível contratempo.
― Teria coragem de se ferir dessa forma para salvar esses dois? ― Edgar semicerrou os olhos e ela percebeu o erro que havia cometido. O tiro saiu pela culatra. ― Ah, está tudo claro agora, mas qual deles?
Helena engoliu em seco, envergonhada. O invocador apontou o centro na direção de Vince e ela trincou o maxilar, ele a avaliou com interesse, depois passou para Will.
A lembrança do rapaz ensanguentado e mole em seus braços lhe ocorreu. Não queria sentir aquela dor novamente. Aquele sentimento de ser arrancada de si mesma e de sucumbir ao terrível vazio. Então, por instinto, ela deu um passo em sua direção.
― Temos um vencedor! ― Edgar atacou.
Helena levantou as mãos na direção de Will como se fosse capaz de alcançá-lo na extensão do seu toque urgente, mas ela não podia. A distância que se transpunha entre eles já não eram mais míseros passos e sim centenas de quilômetros que os separavam.
O raio atingiu. Will a olhou, lívido e intacto, porém surpreso. Só então ela se deu conta do que havia feito. A barreira formada dos restos do espelho de espinhos se ergueu tão rapidamente que bloqueou o raio de Edgar.
Bloqueio não, refletiu. O olhar de Will se desviou e ela focou no que tomava a sua atenção. O corpo de Vince curvado, abraçando as estranhas e gritando de maneira agonizante. Helena atravessou o salão em sua direção, mas Rodka, num movimento rápido a agarrou no meio do caminho. Ela se debateu e gritou. Chamou o nome de Vince dezenas de vezes. Porque não se levanta?
O grito irrompeu de sua garganta ao perceber que o protetor já não se mexia mais. Os gritos pararam e o seu corpo inteiro estava pálido e encolhido em posição fetal. A culpa pesou sob o seu peito e a corroeu como uma traça. Não era capaz de salvar alguém sem ferir outra pessoa. Tudo em sua volta era destruição e ruína. Sem forças, ela se deixou ser arrastada para o portal.
― Helena! ― Will a chamou num tom urgente. De repente, estava sozinho. ― Helena! Não!
Will gritou. Não um grito humano desesperado e furioso, mas um urro animalesco e perturbador, que advinha do lugar mais profundo de ser. Um grito da alma.
Helena viu em pânico o rapaz ser consumido pelo fogo, que ela teve certeza que brotou de dentro dele. Ela olhou para Edgar, que estava sério com o seu cetro em punho. O ódio por ele a consumiu. Tirara tudo dela. O protetor se curvou e foi engolido pela fumaça e pelas labaredas douradas que chegavam até teto da caverna. Helena não pode ver mais nada e nem ouvir.
Rodka apertou o seu pulso ainda mais e Helena deu uma cabeçada para trás, atingindo-o no nariz. Ela se desvencilhou e correu em direção à fumaça. Parecia a ela que aquela distância tinha duplicado de tamanho e conforme os seus pés tocavam o chão naquela corrida desenfreada, os seus pensamentos foram inundados pela urgência e significância que Will representava para ela.
Num bater de asas feitos velas de navio, a fumaça se dispersou. Helena foi lançada para trás e aterrissou de mal jeito no chão frio. Ela abriu os olhos, atônita. O laço estava à centímetros dela, porém algo brilhante e pequeno chamou a sua atenção, o medalhão.
Ela recuperou os objetos e afastou a poeira da vista. Sobre ela, o dragão se ergueu.
A criatura por pouco não bateu a cabeça no teto da caverna. O silêncio recaiu sobre todos. A tensão e o medo se espalhou por cada um deles, até mesmo por Edgar. Há tempos que um dragão aparecia e era algo belo e aterrorizante de se ver.
O dragão urrou e as pequenas pedras no chão da caverna vibraram. O animal baixou a cabeça em direção às pequenas criaturas. Ele bufou um ar quente na direção de Helena, que não se moveu. As suas pernas eram como gelatinas.
― Will? ― Ela chamou.
Ela ergueu a mão no ar e reparou na linha fina no pescoço da criatura. A cicatriz quase que imperceptível entre as escamas do ferimento que ela havia curado. O animal a observou. Helena soube que ele a reconheceu. Os olhos dele se tornaram escuros e brilhantes, feito os olhos de Will. Com cautela, ela deu dois passos para frente, numa falsa calma. A voz de Edgar cortou o silêncio.
― Helena, se afasta. ― O invocador ergueu o cetro.
O dragão piscou e as suas pupilas voltaram a ter formato de fenda. O dragão rugiu e balançou as asas, movendo-se de um lado para o outro, como um animal enjaulado. Helena não se afastou. Ainda era Will. Em algum lugar sob aquelas escamas, ele estava ali.
― Se quiser matar todos nós, vá em frente. ― Ela olhou para o invocador. ― Mas se quiser viver por mais um segundo, me deixe falar com ele.
Edgar trincou o maxilar, mas Leon pôs a mão ao seu ombro e lhe lançou um olhar pacificador. Helena virou-se para o dragão, e, com cuidado, disse:
― Will, você está aí?
O dragão abaixou a cabeça novamente e a farejou tão de perto, que poderia devorá-la antes mesmo de ela soltar o ar que estava prendendo. Ela tornou a olha-lo e lá estavam eles. Os olhos pretos e luminosos. Helena estendeu a mão para o seu focinho. A sua perna tremeu violentamente, contudo, o pensamento em Will a tranquilizou. Ela tocou nas escamas azuis e a fera guinchou de surpresa e irritação.
Ela o fitou nos olhos. Algo nela, um misto de instinto e determinação, lhe dizia como agir. Helena se concentrou naqueles olhos, enquanto segurava o seu focinho. O animal guinchou, mas parou, e, olhou.
O dragão abaixou a cabeça, não de forma submissa, mas no mais profundo respeito. Atrás dela, Rodka arfou, mas foi Edgar que quebrou o silêncio, ao sussurrar:
― O invocador encontra a sua fera.
Helena escalou o dorso do dragão e sentou na parte de trás da sua cabeça, evitando os espinhos feito adagas prateadas. O dragão voltou a erguer a cabeça e ela olhou de maneira majestosa para Edgar e seu grupo, não conseguiu deixar sorrir.
― Você teria coragem? ― Edgar deu um passo à frente.
― Não me provoque. ― Ela gritou.
― Você é tão parecida com ela. ― Foi a sua resposta sem sentido.
― Eu não acredito em uma palavra do que você diz. Você é tóxico como veneno, mas eu não soube como eles.
Edgar virou-se de costas para ela e caminhou até o portal. Rodka e a senhora seguraram as mãos de Mora e Rufus e atravessaram. Antes de partir, Rodka deu-lhe um último olhar.
― Não era para ter sido desse jeito, Helena. ― Leon se desculpou. ― Se você apenas me ouvisse da primeira vez.
― O que você queria que eu fizesse? Você matou os meus pais. Não importa se estava sendo controlado ou não. ― Ela o confrontou.
― Se ao menos você me deixasse... ― Leon começou, mas Edgar ergueu o dedo.
Leon engoliu em seco e atravessou o portão, então desapareceu. Helena encarou à nuca de Edgar. Um movimento e poderia simplesmente acabar com tudo, ainda assim, uma voz dentro dela lhe dizia. E quem estaria disposto a contar a verdade?
― Mais cedo ou mais tarde nos encontraremos novamente ― Ele olhou por cima do ombro ― e quando isso acontecer espero que traga aquilo que me é de direito.
O diadema, ela pensou. Ela olhou para a escultura de Angelina Jenkins. Não era só uma visão, mas uma instrução oferecida pelo próprio cetro. Ligados como teias.
― Os anos no exílio cozinharam o seu cérebro? Isso nunca vai acontecer. ― Ela disse de modo determinado.
Por um instante, Edgar cerrou os punhos, mas relaxou e se virou por completo.
― Você irá. ― O invocador sorriu e caminhou ao portal. ― Vejo você em breve, minha filha. Minha adorada Rowena Blackwell.
O mundo de Helena se estilhaçou como o cristal quebrado de Francis e Tereza. Os seus pais ou quem pensava que eram os seus pais. Pobre Josephine, ela pensou. Não restava nada e nem ninguém. Ela endureceu sob o dorso dragão e Edgar saboreou o peso daquela verdade antes de desaparecer no portal, que se partiu.
A sua garganta queimou e, sozinha na caverna, ela deixou que o seu choro se libertasse. O dragão guinchou, mas não um grito furioso. O animal compartilhava a sua dor. O dragão balançou as asas e antes de levantar voo, Helena viu o corpo de Vince.
― Não podemos deixa-lo. ― Ela disse com uma voz fraca.
O dragão não fez sinal de que realmente a entendeu, mas se aproximou do corpo esquálido de Vince. A fera abriu a mandíbula e colocou o protetor na boca como se estivesse pegando alimento para o seu filhote. O corpo de Vince pendeu entre aqueles dentes afiados.
O dragão esmurrou a parede da caverna e uma tempestade de pedras e rochas os assolou. Helena fez o máximo que pode para se proteger. Num movimento rápido e preciso o animal arrebentou a parede e ele voaram para a liberdade.
A Academia Brascard se erguia sobre eles no meio da madrugada. O vento frio da noite bagunçou os seus cabelos, conforme o dragão subia em direção ao céu estrelado. Helena avistou todas as luzes da Academia acesas e se perguntou se àquela altura já tinham sentido a falta deles.
Helena deitou sob o dorso do dragão e o abraçou. Não se importou com as escamas afiadas que machucavam a sua pele ao ponto de fazê-las sangrar ou com a altura fatal que aumentava a cada batida de asas. As verdades reveladas e as perguntas que a agoniavam, ela deixou no canto mais escondido de sua mente. Naquele instante, durante o silêncio daquele abraço espinhoso, enquanto as suas lágrimas se uniam às escamas azul-prateadas, tudo o que ela queria era estar com William Cardragon. O menino dragão. O seu melhor amigo.
FIM (?)
***
Finalmente, chegamos ao final. Agradeço de coração quem acompanhou até aqui, mesmo com os meus atrasos, rs. Críticas e elogios são bem-vindos. Qual o palpite de vocês para o que vai acontecer agora?
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