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As ruas de Brascard fervilhavam naquele sábado. O inverno deu um descanso e o céu se abriu num azul claro perfeito acompanhado de um sol fraco. Era o suficiente para deixar os casacos em casa ao menos. Os aprendizes partiram pela manhã numa mistura de mochilas pesadas, gritos e risadas. Poucos entenderam o espírito do discurso de Althariel na noite passada.

Aqueles como Helena que não retornariam para a casa foram para Brascard no expresso-voador na companhia dos professores e dos desprovidos. Se não estivesse tão ansiosa poderia se incomodar no quão embaraçosa fora a viagem.

Helena se encontrou com Charlotte num café lotado na rua principal. Todas as lojas estavam descoradas com serpentinas e confetes, não era diferente na cafeteria pequena com móveis de madeira velhos e revestida de tinta preta. Na vitrine de cada estabelecimento um boneco de pano era pendurado pelo pescoço. A retratação caricata de um invocador. Um porrete de madeira era deixado ao lado para que qualquer um pudesse descontar a sua raiva.

Helena não se surpreendeu nenhum pouco quando viu através das janelas da cafeteria Brandon com o seu séquito destruindo um daquele bonecos. Um homem muito parecido com ele se aproximou e tomou-lhe o porrete das mãos.

― Brandon é tão estúpido. ― Charlotte captou o seu olhar.

― Aquele é o pai dele?

― Brutus Laurel. ― Ela concordou. ― Aonde aqueles dois se meteram? ― O sino da porta da cafeteria ressoou e dois protetores com cara de poucos amigos, entraram. ― Finalmente!

Will sentou-se entre Thomas e Charlotte. A ruiva franziu o rosto por um momento, quando chamou a atenção de todos para o plano. Por mais que Helena não quisesse se incomodar com as atitudes estranhas de Will, pelo menos não naquele dia, ela ainda assim sentiu o peso daquele distanciamento repentino.

― Todos entenderam? ― Charlotte perguntou.

Os três se viraram para Helena, que assentiu mesmo sem ter ouvido uma palavra.

― Espera, o que?

― Charlotte e eu vamos monitorar tudo de cima pelos telhados. Enquanto, você e Will patrulham o desfile. No menor sinal dos mantos vermelhos, nós agimos, avisamos os Guardiões e tentamos conter o pânico das pessoas. ― Thomas resumiu.

Helena concordou e os quatros saíram para a rua abarrotada. Ela viu cada um deles se afastar, Will não se dignou a olhar para trás ou falar com ela. A protetora se moveu com dificuldade pela massa. Família inteiras riam e conversavam, enquanto esperavam pelo começo do desfile. Crianças em sua maioria com espadas de madeira e escudos de papel brincavam sem saber do que em breve aconteceria.

Helena engoliu em seco e atravessou a multidão. Subiu num caixote de madeira do outro lado da rua e escrutinou a rua em busca dos mantos vermelhos, mas a explosão de cor era tamanha que era difícil ver.

Brascard fora tomada pelos sentimentos mais profundos e orgulhosos dos protetores e enquanto andava de um lado para o outro ela não viu nenhum elfo, fada, anão ou duende. Aquele dia também representava para eles uma vergonha por terem apoiado Edgar no passado. Por mais que o Pacto significasse redenção os protetores não se esqueciam facilmente.

― Mia bella signora. ― Max a cumprimentou ao longe.

― Max! ― Helena disse, surpresa. ― O que faz aqui? ― Ela sussurrou quando o homem se aproximou cercado por seus seguranças.

― Eu sou um homem admirador do caos, Senhorita. Eu quero ver o circo pegar fogo, ora. ― Ele beijou as suas duas mãos e sorriu.

― Cuidado para não se queimar. ― Helena provocou.

― Hora do show. ― Ele disse com um sorrisinho.

Helena seguiu o seu olhar. Do alto da sacada do Ministério do Protetorado pontualmente às duas tardes, a Chanceler Margareth Roully deu as caras. O suor fez a sua pele negra brilhar e Helena não deixou de notar a semelhança com a professora Christina. A Chanceler usava uma túnica verde e lustrosa, os seus cabelos crespos foram penteados para cima e ela abriu um grande sorriso para a multidão que a aclamou.

Ao seu lado a figura menos simpática de Mordhor apareceu na sacada com o nariz de papagaio e os olhos verdes sem brilho. Exalava severidade e presunção. O chefe do conselho não pareceu nem um pouco contente, quando a sua chegada foi ofuscada pela presença alegre de Althariel com a sua túnica mais chamativa e dezenas de cordões.

A despeito das críticas do Pergaminho de Brascard, o diretor foi aclamado por boa parte dos presentes. Os descontentes vaiaram, mas foram engolidos pela multidão. Helena sorriu quando viu Brandon e sua família reclamando.

― Senhoras e senhores, que no dia de hoje sejamos abençoados mais uma vez com os frutos da nossa vitória. Dedico esse o dia em memória às centenas de milhares de protetores que tiveram a vida ceifada pela guerra. Beatrice Lancaster. ― Começou a chanceler e uma salva de palmas se seguiu. ― Gideon Campbell. Henry Fitzgerald. William Fitzgerald. Maressa Lovegreen. Lídia Thompson.

A chanceler prosseguiu com a leitura e conforme cada nome era lido um fogo-fátuo era lançado ao céu como uma lamparina. Helena seguiu uma a uma com os olhos e a imagem dos nomes escritos nas paredes daquela caverna lhe assaltou. Seriam nomes de protetores? Ela se perguntou.

Um grito agonizante chamou a atenção de todos. O corpo coberto por um manto vermelho caiu feito um saco de farinha do prédio próximo à poucos metros de Helena. O som dos ossos se esfarelando abafou os risos e as palmas.

O pandemônio se instalou. As crianças correram e gritaram. Da sacada do Ministério do Protetorado, a chanceler gritou para o caos, mas não foi ouvida. Helena trombou e abriu espaço entre os protetores, então viu a mulher com o rosto desfigurado pelas feridas. Já estava morta ao cair. Os guardiões se aproximaram do cadáver numa mistura de luz e sombras e fumaça, quando outro grito se irrompeu. Outro corpo era erguido do telhado e, dessa vez, vivo.

O protetor era segurado pelo pescoço e o seu corpo pendia no vazio. Os pés balançavam em agonia e o seu manto vermelho oscilava com o vento. O seu agressor sorriu de modo lascivo, quando soltou o homem que gritou antes de se espatifar na calçada. Helena protegeu o rosto do sol, quando viu o ser que tinha provocado a queda. Um centauro.

As pessoas correram, pisoteando umas nas outras e os guardiões tentaram conter a confusão. Helena avistou a cabeleira ruiva de Charlotte ao saltar para o telhado da sacada, Thomas ia logo atrás, quando o seu braço foi puxado e ela viu Will empunhando a sua espada.

― Precisamos chegar até lá. ― Ele gritou.

Os dois foram engolidos pela multidão e no meio do caminho uma criança magricela e de aparência doentia parou em sua frente. Diferente dos outros, ele não chorava.

― Você precisa de ajuda? ― Helena perguntou.

A criança não disse nada, apenas lhe estendeu um pedaço de papel enrolado numa pedra. Will parou de transpor o caminho por entre a multidão que corria desesperada e a encarou, preocupado.

― Você tem até às seis da tarde para recuperar o que de valioso foi tirado de você. ― Ela leu. ― Sabe aonde me encontrar, no lugar em que nos encontramos da última vez.

Helena olhou para a pedra em suas mãos, amarrado a ela, um cacho de cabelo loiro misturado com sangue. Vince. A protetora correu para o lado oposto, mas Will a segurou pelo cotovelo.

― O que há de errado?

― Leon. ― Ela gritou. ― Ele pegou Vince, eu tenho pouco tempo, preciso chegar à Academia antes das seis da noite.

― Espera, Helena. ― Will gritou. ― Pode ser uma armadilha.

Ela estendeu o cacho de cabelo loiro.

― Não é uma armadilha, confia em mim.

Will xingou e olhou para o céu em busca de Thomas, contudo, era impossível achar alguém no meio daquela confusão. Will a puxou sem dizer nada. Os dois correram até uma loja velha de quinquilharias. O dono estava preocupado demais em esconder os itens mais valiosos para notar o casal de protetores que entrou de supetão no armário velho.

Ela não teve tempo de respirar ou pensar, pois a pressão no ar mudou e o armário de madeira balançou como se fosse se desmontar. No instante seguinte estavam no Clube dos Perdidos. 

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