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Não houve julgamento para Éfero. O seu corpo fora encontrado muito longe de Brascard pelos protetores-batedores. Mas ainda assim ele foi condenado pela violação do Pacto ao atacar dois protetores e por conspirar com um fugitivo. Quanto aos outros, apenas um foi encontrado não muito distante dali. O seu julgamento não durou mais do que meio dia e a sentença foi a morte. 

O decreto, que determinava punições para toda a classe dos centauros, foi lido em praça pública pela Chanceler Margareth Roully e comemorado pelos poucos membros dos Profetas do Caos presentes. Os centauros não receberam bem a notícia.

As notícias foram dadas por Charlotte, que fez companhia para Helena, que ela permaneceu na enfermaria da Academia sob os cuidados de Nona por mais de uma semana. A exaustão fora tanta que ela dormiu por três dias inteiros e ninguém soube dizer o que lhe havia acontecido. Ninguém, além de Irina, presenciou o seu estranho poder e ela fez a fada prometer que não contaria.

Na segunda semana de agosto Helena recebeu alta, mas não foi em direção às aulas. Vestiu uma calça de couro marrom e uma regata preta e calçou as botas mais lenta do que o normal. Ela andou pelos corredores que lhe pareciam diferentes e abriu a pesada porta de madeira que dava para a escada em espiral. Era a entrada para uma das cúpulas.

No topo da escada deparou-se com uma outra porta de madeira, entreaberta. Ela espiou, mas não havia nenhum sinal de que houvesse alguém ali dentro, então entrou.

Os portais eram decorados com pedras coloridas e no chão desenhos geométricos se formavam num padrão que não parecia ter fim. O teto era preenchido de pedras preciosas de diferentes lugares e cores. Não havia janela em boa parte da cúpula e uma brisa gelada fez Helena se arrepiar.

Fora aquele esplendor o lugar era uma verdadeira bagunça. A cama estava desarrumada e as mesas de madeira cobertas de papéis e livros pesados. Algumas roupas estavam emboladas numa cadeira e no criado-mudo próximo à cama, o único lugar que parecia intacto, um porta-retratos. No instante em que se aproximou, algo se quebrou sob os seus pés. Era espesso e brilhante, feito uma pedra raspada.

― Helena?

Will entrou no quarto e ergueu a sobrancelha. Ele usava uma calça preta e uma blusa de linho marrom. Os cabelos despenteados como sempre. 

― Fui até a enfermaria ver você, mas Nona...

A frase ficou pela metade porque Helena correu em sua direção e o abraçou com toda a força que tinha. Enquanto estava desacordada sentiu a sua presença na enfermaria várias vezes, mas de repente ele sumiu e ele teve medo do que pudesse ter acontecido.

A última imagem que tinha dele... o sangue e o seu corpo flácido e sem vida. Ela estremeceu sob os seus braços e ele afastou, segurando o seu rosto e como se adivinhasse os seus pensamentos, disse:

― Eu estou bem. Não sei como explicar, mas estou vivo.

Ela ainda não tinha contado e não tinha certeza se o faria. A presença daquela mulher e o poder que despertou dentro de si ao curá-lo foi até mais forte do que o que usou para ferir Éfero. Não era algo que ela estava ansiosa para compartilhar.

― Posso ver?

― Não precisa de uma desculpa para me fazer tirar a camisa. ― Ele deu um sorriso torto.

Helena deu um soco de leve no seu ombro e ele tirou a camisa. Não havia nada além de uma pinta preta onde a flecha perfurou. A protetora instintivamente tocou em seu peito e a lembrança da luz azul bruxuleante que emanou de suas mãos e envolveu o corpo do dois enquanto o curava penetrou em sua mente.

Will segurou a mão de Helena e ela o encarou.

― O que aconteceu comigo, Helena?

― Eu não sei. ― Ela mentiu.

― Eu esperava que você pudesse me dizer.... Eu lembro da flecha, mas depois disso é só vazio.

― Isso é passado. Éfero está morto.

― Mas Leon ainda está a solta.

― Ele vai pensar duas vezes antes de se aproximar de mim de novo. ― Ela riu.

― Eu me lembro de uma coisa. ― Ele disse com um meio sorriso.

Will a beijou, enquanto segurava a sua mão juntou ao peito. Os seus lábios eram refrescantes e por um momento Helena se perguntou se ele usava o seu poder para que fosse assim. O coração de Helena se abriu como nunca aconteceu antes. E tudo o que circundava em sua mente era: finalmente!

Os dois ficaram abraçados por um tempo, enquanto admiravam a vista do horizonte. Helena se lembrou do dragão azul e escrutinou o céu a sua procura. Will brincava com os seus cachos.

― O que está pensando? ― Ele perguntou em dado momento.

― Nada. ― Ela tornou a encará-lo. ― Obrigada pelo aniversário. Foi bem surpreendente.

― Você não viu nada. ― Ele deu um meio sorriso.

― Pena que o vestido que você roubou para mim estragou.

― Eu posso te dar mil vestidos. ― Ele falava sério.

― Eu não preciso de mil vestidos.

― Do que você precisa? ― Ele sussurrou.

― Respostas. ― Ela disse.

― Respostas minhas? ― Will franziu a testa e recuou.

Helena assentiu.

― Você e Irina...?

Will explodiu numa gargalhada e relaxou visivelmente.

― Você está com ciúmes. ― Helena cruzou os braços. ― Ela é minha amiga e queria te conhecer.

― Ela não deu a mínima para mim.

― Irina é um pouco ciumenta, mas ela vai te adorar.

Helena deu de ombros e Will a puxou para um beijo demorado que a fez esquecer do mundo.

A tarde voou no quarto de Will e quando os dois desceram para jantar, apesar dos inúmeros protestos do rapaz, Thomas deu um abraço de urso em Helena e Charlotte a abraçou também, mas logo se afastou para sentar com as outras serpentes curiosas.

― Belo corte. ― Ela elogiou.

Thomas estava com o supercílio cortado já se recuperando. Ele riu feito uma criança e tratou de servir Helena com uma quantidade absurda de comida.

― Você precisa recuperar as forças.



Depois do jantar Helena deixou os amigos e foi direto para o gabinete de Althariel. Ele andava de um lado para o outro e ela não precisou adivinhar que na poltrona do lado estavam Ivan e Twyla, os seus ouvintes fiéis.

― Helena, por favor, sente-se.
Ela obedeceu.

Althariel interrompeu o seu ritual e sentou-se na cadeira acolchoada de frente para ela. Ele vestia uma túnica azul cintilante e parecia mais abitolado que o normal.

― Você já deve saber que Éfero foi encontrado morto e foi postumamente condenado. ― Ela assentiu com a cabeça e o diretor continuou: ― No entanto algumas peças ainda não se encaixam.

― Eu pensei que isso já estivesse resolvido.

― Mas está! Certamente, está. Mas tenho pensando em algumas coisas e talvez você pudesse ajudar.

― Com o que?

― Devido ao seu estado de inconsciência, o depoimento do jovem William Cardragon e dos seus outros amigos bastaram para resolver a questão. Mas William não se lembra de tudo, então, cá estou me perguntando se a senhorita seria capaz de suprir essas lacunas.

― Eu não posso... ― Ela engoliu em seco e concentrou-se na expressão mais casual possível. ― Eu não me lembro.

Os olhos de Althariel brilharam por um momento e depois de um longo segundo ele assentiu. Helena sustentou o olhar e em seu íntimo experimentou o peso da mentira. Queria poder contar para alguém o que havia feito e tudo o que havia descoberto, mas não podia.

― Você é incrivelmente forte, Helena. ― Foi tudo o que Althariel disse.

A porta do gabinete de Althariel se abriu e Phineas entrou de maneira altiva. Ele cumprimentou a todos, especialmente Twyla, então se recostou na parede de pedra fria.

― Por mais que a desventura de vocês tenha ocorrido durante as férias isso não me impede de providenciar um castigo a vocês. Sair sem autorização é uma contra as regras e uma tremenda burrice em tempos como esse.

Helena se encolheu na cadeira ante o diretor furioso.

― Portanto, como castigo a senhorita ajudará o professor Phineas, que necessita de um ajudante com as plantas da estufa. ― Ele sentenciou. ― Por três semanas.

Helena assentiu.

― Senhor, posso fazer uma pergunta? ― Ela perguntou antes de sair.

― Pode me fazer outra pergunta. ― Ele sorriu com os olhos.

― O senhor deu trabalhos tão ruins para os outros quanto para mim? Sem ofensas, professor. ― Ela acrescentou.

― Pode apostar que sim.

Will estava esperando no corredor com o pé encostado na parede e os braços cruzados, a expressão séria. A protetora se aproximou com cautela e ele segurou a sua mão. O toque era reconfortante e naquele instante ela esqueceu as preocupações que circundavam a sua mente.

― Você tem certeza?

― Eu devo isso a eles. ― Ela respondeu.

Helena e Charlotte andavam pela floresta em silêncio. Corujas piavam conforme elas passavam por seus ninhos e ao longe pássaros se aninhavam preguiçosamente em suas casas de palhas.

A noite estava fria e uma chuva fina caia do céu coberto por nuvens grossas. Ainda assim a lua e a estrelas iluminavam a floresta num tom azulado e prateado.

― Obrigada por me convidar. ― Charlotte agradeceu, enquanto girava a sua adaga no próprio punho.

― Você tem tanto direito de estar aqui quanto eu.

― Eu não acredito que Éfero foi capaz... ― A protetora bufou. ― Os Profetas do Caos estão usando o ataque para promover todo o tipo de discurso segregador.

― Éfero traiu a própria raça. Os centauros não tiveram nada a ver com o que aconteceu!

― O Conselho não vê dessa forma e boa parte dos Protetores também não. O Pergaminho de Brascard tem sido implacável nesse quesito.

― O quanto antes encontrarmos provas contra eles...

― Está muito mais difícil sair da Academia sem ser notado e sem os qilins.

― O que aconteceu?

― Eles partiram. ― Charlotte disse numa voz triste. ― Não pertencem a nós. São animais dignos que escolheram nos servir porque acharam que nós éramos dignos, mas o que Conselho pretendia fazer era... desumano.

O som de galhos se partindo ecoou pela floresta e por de trás de algumas árvores Thomas e Will apareceram carregando duas mortalhas pequenas. Helena engoliu em seco.

Por ordem do Conselho os qilins deveriam ser dissecados durante as aulas e suas propriedades mágicas ensinadas aos alunos, mas nem Althariel e nem Helena acharam aquilo correto. Como os animais não pertenciam de fato à Academia ou a Althariel, cabia ao Conselho decidir o que fazer com eles já que eles serviam aos protetores. O diretor não podia passar por cima da ordem do conselho, mas Helena podia.

― Você está pronta? ― Will perguntou, cauteloso.

Helena assentiu. Will e Thomas depositaram as duas mortalhas lado a lado dentro de um círculo de pedras que foram cuidadosamente colhidas pelas protetoras. Os Protetores levantaram as mãos e começaram a contar a cantiga fúnebre que todos aprendiam pouco depois de começar a falar. A voz de Helena tremia, mas a protetora se deixou levar. Nunca teve a chance de cantar para os seus pais. 

Thomas sinalizou para Helena e ela assentiu. Ela fez as próprias mãos pegarem fogo, mas hesitou. Sequer sabia o nome dele. O qilin prateado que salvara a sua vida. Will se aproximou e a segurou delicadamente o seu cotovelo.

― Você consegue. ― Ele a encorajou.

Helena emanou o fogo mágico das suas mãos na direção das mortalhas, que foram envolvidas por uma névoa azul cintilante. As cinzas prateadas e douradas rodopiavam em direção ao céu estrelado e refletiam por entre as gotas da chuva fina.

A protetora olhou para a cima e viu as árvores afastarem os seus galhos e darem passagem para que as cinzas chegassem mais rápido até o céu. As cinzas voavam feito um lento redemoinho até que não restou mais nada para queimar.

― Você quer dizer algo? ― Thomas perguntou.

― Obrigada por todas aquelas noites, Fogaréu. ― Charlotte murmurou. 

― Eu não seu o seu nome. ― Helena disse numa voz embargada. ― Mas para mim você é como uma Estrela Prateada. Obrigada por salvar a minha vida. ― Ela disse tanto para Will quando para o qilin. ― Uma vez eu te chamei de fera, mas eu não percebi o quão errada eu estava. Nós somos as feras e dificilmente seremos tão bons e majestosos como vocês, mas eu prometo tentar ser.… boa.

A névoa se dissipou por completo e revelou uma pequena pedra âmbar do tamanho de um polegar e outra pedra de cristal azul de mesmo tamanho e formato parecido.

― O coração de um qilin. ― Thomas explicou. ― O amuleto de proteção mais poderoso que existe.

Helena e Charlotte pegaram cada uma das pedras. A pedra de cristal azul estava fria, mas Helena a apertou junto ao peito com os olhos fechados.

Uma brisa gelada bagunçou seus cabelos para trás e uma sensação reconfortante lhe preencheu. Will.

Tudo ficaria bem.




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