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27

O tour terminou na hora do jantar. Helena procurou uma mesa vaga e sentiu todos os olhares em sua direção. Por vezes olhou o seu reflexo na colher de prata para ver se não tinha surgido um chifre em sua testa ou brotado um terceiro olho. Mas estava tudo lá, perfeitamente normal.

Will ocupou o seu lado na mesa redonda forrada com toalhas vermelhas. A cor dos Leões Destemidos. A Serpente Curiosa era verde metálica e a Corsa Altruísta azul-ciano.

― Mais uma vez, sejam todos bem-vindos à Academia. ― Althariel começou. ― Que nesse novo ano possamos transpor as barreiras do conhecimento, cultivar novas e velhas amizades e, acima de tudo, exercitar a nossa tolerância com o diferente. Um boa noite a todos.

Althariel fez sinal e centenas de criados serviram os aprendizes em pesadas bandejas de prata.

― Senti a sua falta no tour hoje ― Thomas comentou com um sorriso largo. O monitor tinha olhos cor de mel expressivos, um queixo quadrado no rosto imaculado. Era musculoso e maior do que qualquer aprendiz que havia ali.

Helena o viu pela primeira vez no café da manhã falando com Will. Fora uma das poucas pessoas que fez o rapaz de cabelos escuros gargalhar. Helena gostou da forma como o riso preencheu o salão de banquetes. Antes do olhar conspiratório que ele lançou para Will durante o jantar, ela soube que eram cúmplices. 

― E-eu... ― Helena gaguejou.
Helena lançou um olhar para Will, que sorriu de orelha a orelha.

― Eu não estava me sentindo bem. ― Mentiu.

Thomas sorriu para o copo, feliz por tê-la deixado levemente ruborizada.

― Não precisa mentir, Helena. ― Will disse num tom travesso. ― Mais cedo ou mais tarde, todos vão ficar sabendo.

― Sabendo de que? ― Cordélia exigiu saber.

Cordélia Graham era uma menina loira de olhos verdes e expressão astuta. Ela gravitava ao redor de Will aonde quer que ele estivesse. Tanto que sacrificou a sua reputação ilibada por ele ao sentar na mesma mesa que Helena.

Tal como a sua família ela acreditava que nem Helena nem os Crawleys eram tão inocentes quanto faziam parecer. Devoravam cada matéria sensacionalista lançada no Pergaminho de Brascard sobre a sua reputação e de seus pais. 

― Não é da sua conta, Cordélia. ― Susan Ferrans veio em socorro de Helena.

Susan não era só a monitora, mas a garota mais inteligente da Academia, depois de Charlotte. Não era o tipo de inteligente metida e arrogante como Charlotte fingia não ser, mas o tipo que emprestava o dever de casa para os amigos em apuros e que passava madrugadas estudando com eles em vésperas de prova.

Ela também era bonita, do tipo muito bonita. Os longos cabelos escuros e os lábios pequenos naturalmente vermelhos lhe davam uma aparência quase vampírica naquele rosto pálido. Helena se sentiu um boneco de ventríloquo quando a viu.

Susan piscou para Helena e deu um beliscão em Thomas por debaixo da mesa.  Cordélia bufou e voltou a conversar com Jacob Rockfeller, que fora deixado à deriva na conversa.
Assim como Cordélia gravitava ao redor de Will, Jacob, o rapaz de cabelos castanhos e cacheados, de maxilar quadrado e olhos azuis, gravitava ao seu redor feito uma mosquinha diante de um torrão de açúcar.

Ao lado dele, os seus fiéis escudeiros, Wesley Sutter, o rapaz magricela de cabelos escuros e expressões gentis, e Jim Croft, gorducho e de cabelos cor de areia com espinhas no rosto, tentavam conversar com Iadala Nilman. A menina de pele azeitonada e olhos azuis mais ouvia mais do que falava.

O sino badalou em uma das torres e Susan e Thomas se levantaram.

― O dever chama. ― Thomas pegou um pãozinho pequeno e engoliu de uma vez só.

Os dois foram até a mesa de novos aprendizes ansiosos e preocupados. Helena agradeceu por ter chegado antes de todos. A longa distância, Vince acenou para ela, que retribuiu com um sorriso.

A massa de alunos seguiu numa marcha desconexa e falante. No meio da multidão Will puxou Helena pelo braço e a levou até a parede.

― O que você quer? ― Perguntou de maneira brusca. ― Não basta a humilhação na hora do jantar.

Will passou a mão nos cabelos bagunçados.

― Tenho um último lugar para te mostrar. ― Disse.

― Já soou o toque de recolher. ― Helena olhou para o corredor vazio da Academia.

― Você tem a vida toda para seguir regras, vamos. ― Will argumentou. ― Todos os alunos novos fazem isso. É como um rito de passagem. ― Os seus olhos brilharam.

Will aproveitava as sombras do corredor para andar sem ser visto. O protetor usou a chave-mestra, para abrir a porta lateral, que dava para um corredor amplo com arcos abertos e iluminados pela luze da noite.

― Onde estamos indo, Will? ― Helena sussurrou.

― Você consegue calar a boca por um instante?

― Na verdade não.

― Vai estragar a surpresa. ― Ele disse em tom misterioso. ― Temos pouco tempo antes de começarem a patrulhar os corredores.

Os dois desceram uma pequena colina. Os degraus de pedras eram irregulares e escuros e por duas vezes Helena tropeçou em Will, que precisou segurar a sua mão para ela não cair.

Will destrancou a porta do palacete de cristal e Helena o seguiu com o coração na boca. No instante em que entraram pequenas fogo-fátuos bruxuleantes iluminaram o recinto e Helena arquejou. Will sorriu, satisfeito.

― Não é tão grande quanto àquele jardim, mas serve.

Helena inspirou e experimentou a mistura de terra molhada e o perfume das flores no ar. A flora exótica era colorida e mágica. Arvores de cor verde-musgo cresciam até o teto de cristal, enquanto outras cresciam para os lados com folhas coloridas. Flores de diferentes cores e tamanhos enchiam o lugar de beleza e deleite. Uma delas, de cor roxa vibrante, era maior do que Helena e parecia letal.
Will a levou até um chafariz, cuja sereia despejava água pelos lábios.

― É lindo, Will. ― Disse Helena.

― Imaginei que você fosse gostar.
Will apontou um banco de madeira e conduziu Helena até lá. O rapaz passou a mão pelos cabelos escuros e a fitou com seus olhos profundos.

― Porque algo me diz que isso não é um rito de passagem?

― Porque não é. ― Will sorriu. ― Eu menti para você vir até aqui.

― Você é um tremendo mentiroso. ― Helena balançou a cabeça numa falsa reprovação.

― Ou você que é ingênua demais. ― Ele provocou.

Ela deu uma segunda olhada no lugar e suspirou.

― Até que para um guia você não é tão ruim. ― Ele riu.

― Você não viu nada. ― Ele se levantou. ― As aulas de botânica são ministradas aqui. Algumas dessas plantas foram os aprendizes que cultivaram. O que acha dessa?

Helena admirou a árvore retorcida e bela, que florescia lindas flores azuis e rosas. No pé da árvore havia uma plaquinha de bronze e Helena leu a inscrição.

―  Tereza Crawley, botânica em ascensão. ― Sorriu

― Se você ainda tem alguma dúvida sobre quem você é, saiba que esse lugar faz parte de você.
 
Helena tocou na árvore e os seus olhos se encheram de lágrimas. Will fingiu não notar e a menina se recuperou rapidamente. 

― Você definitivamente é o melhor guia que eu conheço. Porque não investe nisso? ― Ela brincou.

― Talvez eu o faça. Com certeza vai deixar o meu tio bem orgulhoso.

― O guardião do outro dia? ― Ela se lembrou

Will fez que sim com a cabeça.

― Foi ele quem você foi visitar na semana passada? Quer dizer, você sumiu a semana toda.

Will ficou tenso e Helena engoliu em seco. O William gentil o bastante para lhe mostrar o passado de sua mãe desapareceu num átimo e deu lugar ao William taciturno e emburrado de sempre.

― Helena Crawley e suas perguntas impertinentes. ― Foi tudo o que ele disse, antes de bufar e partir.

Helena ficou na estufa pela hora seguinte. A árvore de Tereza era como um presente deixado pela mãe para provar a sua passagem por aquele mundo. Ah, Tereza. Por quanto tempo a odiou por ela não ter voltado?

A garota afastou os pensamentos melancólicos e esfregou os olhos, limpando as lágrimas mais uma vez. Ao se virar para partir, o orbe de luz azul flutuava sobre a sua cabeça. 
O orbe circundou a árvore de Tereza e Helena rastejou até debaixo de uma mesa retangular. Os potes de vidros com líquidos viscosos de diferentes cores refletiam a luz azul.

― Não pode me fazer mal. ― Ela sussurrou para si mesma.

O orbe flutuou devagar. Uma dança preguiçosa para lhe torturar ainda mais. Estava a poucos metros de distância dela quando zuniu por dentre as árvores num movimento rápido. Helena soltou o ar que estava prendendo e uma cabeça ruiva com os olhos arregalados apareceu.
Ela gritou e bateu a cabeça na mesa, os potes de vidros tilintaram.

― Por favor, não aparece assim.

― Achei que tivesse visto você desaparecer com Will. ― Charlotte disse num tom de desaprovação.

― Engano seu. ― Helena olhou ao redor a procura do orbe.

― Ai! Vai mesmo mentir para mim? ― Charlotte fez uma careta. ― Veritax, lembra?

― Eu quis dizer sim, mas não é o que você está pensando.

Ela deu de ombros.

― Como está o braço?

― Bem! ― Helena puxou a manga da blusa e revelou o curativo feito por Charlotte. Uma mancha de sangue se formava por sob o esparadrapo.

― Os profetas do Caos sabem que alguém está de olho depois de ontem.

― Você acha que eles vão procurar os protetores? Quer dizer, aqueles guardas morreram. ― Legitima defesa, ela repetia para si mesma, quando pensava no assunto.

― Duvido. Eles não vão querer mais alguém bisbilhotando. Aposto que vão ficar um tempo na surdina para não pôr em risco o que quer que estejam tramando.

― Se ao menos aquele bisbilhotis tivesse voltado.
― Aí que você se engana. O bendito voou até o meu quarto ontem à noite!

― Quanto comprometimento. ― Helena imaginou a distância. ― O que ele descobriu?

― Bisbilhotis são bastante leais. Infelizmente não deu para ouvir muita coisa, porque ele morreu logo em seguida, mas o que eu sei é que eles chamam o financiador de O Príncipe. E tem mais, não é qualquer financiador, eles o idolatram.

Por um segundo um fragmento de lembrança preencheu os seus pensamentos. Aquela voz de novo. Ressoante e etérea. Mas se esvaiu antes que ela pudesse identificar.

― Você está bem?

― O Príncipe. ― Helena repetiu para si mesma.

***
Quem será O Príncipe? Qual o segredo de Will? O que o Orbe de Luz Azul quer com a Helena? Bom, espero que estejam comigo para descobrir em breve!




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