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20


A primeira noite foi difícil e Helena passou boa parte dela acordada. Antes de sair do quarto deixou alguns bolinhos para Mora quando ela foi limpar o banheiro. Por duas vezes tentou puxar um assunto com a criada, que a repeliu educadamente. Desprovidos e protetores pareciam misturas heterogêneas.

Helena encontrou Charlotte esperando no corredor no meio de um bocejo.

― Você demorou. ― Ela esfregou os olhos.

― Não consegui dormir bem. Você também não pelo visto. ― Helena reparou nas olheiras.

― Estudando. ― Charlotte desceu a escada pulando dois degraus. ― Ivan gosta de treinar ao alvorecer, vamos antes que a gente se atrase.


A brisa fresca fez o cabelo cacheado de Helena balançar contra as suas costas. O único som que ouvia era das botas contra a grama molhada pelo orvalho da manhã. As duas circundaram o pátio externo e passaram por trás do palacete de cristal.

― Qual o problema daquele seu amigo Will, afinal? ― Helena soltou.

― Will é problema, ok?

― Pensei que ele fosse seu amigo.

― Não somos amigos. ― Ela disse. ― Will não é amigo de ninguém.

Helena franziu a testa para aquelas palavras, mas deixou passar.

Charlotte conduziu Helena até a floresta. As árvores impediam que os raios de sol entrassem, portanto, a atmosfera estava mais fria. Helena contornou os sulcos nos troncos cobertos de musgo com o dedo. Formavam símbolos desconhecido. Ela podia jurar que em determinadas árvores rostos macabros sorriam para ela.

― Então você é uma veritax? ― Helena alcançou Charlotte. ― Como isso funciona?

― Eu estava me perguntando quando você ia tocar no assunto. ― Ela riu.

Helena deu um sorriso sem graça. Se Charlotte tinha aquelas habilidades, ela já podia saber a verdade sobre o tipo de dom que carregava consigo. A arte da destruição. 

― Ivan me contou ontem sobre você.
― Ela adivinhou os seus pensamentos. ― Não se preocupe, você vai aprender a não queimar ninguém de novo. Eu queria ter esse poder na verdade.

― O que há de errado com vocês? ― Ela parou. Os pássaros ao longe se sobressaltaram com a sua voz.

― Escuta não me leve a mal, mas não é só o seu poder que é uma maldição.

― Eu preferiria mil vezes saber se alguém está mentindo do que queimar pessoas vivas.

Assim que chegaram à clareira Ivan às recepcionou. Usava um uniforme de treino. Túnica preta com adagas presas em seu cinto e calça de couro marrom. Ele havia acabado de posicionar quatro alvos de madeira à certas distancias. O traje combinava com a sua precisão séria e expressão compenetrada.  Tudo o que um protetor deveria ser. Tudo o que ela não era. 

― Presumo que Will decidiu não aparecer no treinamento. ― Ivan girou a sua espada ao redor do punho. Charlotte deu de ombros e se aproximou. ― Cuidaremos dele mais tarde.

― Espero que sim. ― Charlotte murmurou e dei um meio sorriso.

― O seu poder Helena vem do seu cerne. O ponto mais profundo de todo o seu interior. Quando não é controlado, fica mais sujeito à determinados espasmos e isso pode ser letal para um cataclista. 

Helena assentiu e se recordou dos gritos de Madalena, enquanto o seu corpo queimava. Ela quis salvá-la, mas não pode.

― O que eu quero que você faça hoje é tentar projetar as suas chamas nas mãos, apenas nas palmas da mão, sem arremessar e sem queimar tudo ao seu redor. ― Ele ordenou. ― Depois você vai treinar arremessos com Charlotte.

― E o que vai acontecer se eu resolver queimar vocês?

― Eu estarei caso isso aconteça― Disse a voz atrás dela. Will havia se movimentado de maneira tão silenciosa que ninguém o viu chegar.

― Já não era sem tempo, Will. ― Ivan reclamou. ― Quero que você trabalhe com Helena por agora, só por precaução.

Os dois se afastaram dos alvos de madeira facilmente consumíveis e Helena se concentrou do jeito que pode na tarefa. De longe ela viu que tanto Charlotte quando Ivan a observavam.

Todas estavam na expectativa pelo poder letal da cataclista, mas no primeiro minuto nada havia acontecido. Não sentiu uma força repuxando e crescendo de dentro de si ou a sensação quente sob o corpo como costumava acontecer. Era quase como se não tivesse poder algum.

Os minutos se transformaram em horas. Ao longe Charlotte e Ivan arremessavam facas. Helena evitou encarar Will, mas o rapaz com os seus olhos escuros e frios se prostrou bem à sua frente. Irritante.

― Você não está tentando. ― Ele comentou.

― Estou sim, idiota. ― Ela vociferou.

― O que aconteceu com você? ― Ele perfurou com os olhos. ― Está com medo. ― Não era uma pergunta, mas uma constatação irritante.

Claro que estava com medo. Não é todo dia que se tem o poder de incinerar coisas e pessoas, pensou, mas ao invés disso, disse:

― Você deveria ter medo.

Will sorriu com desdém. Levantou a palma da mão com cuidado e flocos de neve de diferentes tamanhos surgiram. O rapaz os fez virar gelo e sem seguida os transformou num arpão prateado e majestoso.

― Também tenho os meus truques. ― Ele fez o gelo desaparecer.

― Do que chamam você?

― Também sou um cataclista, mas o meu poder se manifesta pela água e seus estados físicos.

Finalmente Helena entendeu a necessidade de sua presença. Wil não estava ali para ajudá-la, mas para contê-la caso as coisas saíssem do controle. Ela era a ameaça.

― Não se preocupe, garota em chamas. Se você tentar me queimar, vai levar um belo balde de água fria.

Charlotte entrou na biblioteca com os cabelos ruivos molhados. Helena e Twyla já tinham começado a lição do dia. A única parte em que não era uma decepção total para alguém.

― Lottie. ― Twyla a cumprimentou.
― Como estão os gêmeos?

― Enlouquecendo Penélope nos minutos que ela cuida deles. ― Charlotte sentou-se à mesa de mogno e admirou os livros.

― Fico feliz em ouvir isso. ― Ela deu uma piscadela. ― Hoje vamos avançar mais um pouco no tempo.

― Mas e quanto a Galahad e Allagan, o que aconteceu quando eles retornaram?

― Cada um tomou para si as suas responsabilidades. Galahad se ocupou em viajar o mundo e descobrir os seus segredos, enquanto Allagan se tornou rei e primeiro-protetor.

Enquanto Twyla folheava o próximo livro, Helena teve a sensação de que ela contava muito menos do que sabia. 

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