O berço
Lena, a Chanceler-mor da Casa Alma, vivia só no quarto da única torre do Magistério. Além do seu cargo, era conhecida pelo dom mais forte da sua Casa: conseguia arrasar exércitos com as suas emoções. Embora controlasse tal habilidade com mão de ferro, esta escapava do seu controlo quando baixava a guarda ou sonhava. Assim, decidira viver afastada do seu povo, para protegê-lo e por ser uma maneira saudável de estimular o mistério que costumava envolver entidades poderosas como ela. Ainda assim, Lena era modesta e os seus aposentos pouco mobilidades transpareciam o seu desapego pelos bens materiais.
Despertando à hora habitual, afastou o cobertor para o lado, sentou-se na cama e estalou as costas, surpresa com a meteorologia. Costumava acordar durante o crepúsculo, com os sons silvestres da floresta que rodeava o Magistério e com o primeiro raiar da manhã na janela. Todavia, hoje a floresta estava muda e o Sol, totalmente encoberto.
As nuvens negras que passavam pela janela eram um mau agouro e Lena, temendo saber o que as trazia, trocou a túnica de noite por um vestido tulipa verde-escuro e levitou até ao espelho do quarto de banho, onde prendeu o cabelo ruivo com um lápis prateado. Olhou-se um momento ao espelho — ela ainda não o sabia, mas seria a última vez que via a sua imagem. Descalça, atravessou a parede da torre do Magistério e esvoaçou até ao local da floresta donde emergiam as nuvens clandestinas.
No centro da tempestade em formação, duas Oblivium procuravam abrigo na sua floresta, uma mãe e a sua bebé. Lena reconheceu a mulher — era Elisa, o amor proibido de Richard, um dos melhores representantes da Casa Alma. Lena aproximou-se delas, desiludida. Pensava conhecer Richard tão bem quanto ele a conhecia, contudo, não fazia ideia de que ele havia sido pai. E para quê tanta pressa?, perguntava-se, voando e pousando no ramo mais robusto de um castanheiro próximo. Se Lena as quisesse fora do Magistério Alma, não teria problemas em expulsá-las, mesmo que Elisa avançasse como uma chita.
Lena voltou a fitar as nuvens negras que escondiam a floresta da manhã e percebeu o que afligia a bruxa clandestina. Antes de poder reagir, um relâmpago de luz vindo da vegetação embateu no arbusto próximo das Oblivium, arrancando-as do solo. A mãe amparou a sua bebé com os braços e caiu uns metros adiante, esfolando o ombro nas raízes expostas do castanheiro onde Lena repousava.
Surpresa pelo relâmpago, Lena procurou a sua origem e encontrou-a em três soldados Ilariht, que se aproximavam ameaçadoramente das suas visitantes clandestinas. Soltaram mais raios contra Elisa, que, sem força para se desviar, defendeu a bebé com o seu corpo. Contudo, nenhum dos ataques as alcançou, pois Lena libertara o seu Pulsar, a famosa energia protetora dos Alma, sobre elas.
Elisa seguiu o Pulsar até ao topo do castanheiro e agradeceu a Lena com um aceno. Pousou a sua bebé no sopé da árvore, lavou as lágrimas derrotadas que lhe escorriam do rosto com a manga da camisola e abriu os braços para a floresta. Podia estar demasiado exausta para continuar a fugir, mas jamais morreria sem dar luta. Inspirou fundo, conjurou as suas capacidades Oblivium e o ambiente começou a escureceu. Lena arqueou as sobrancelhas de espanto — Elisa estava a absorver a pouca luz que atravessava as suas nuvens, de tal modo que em poucos segundos deixou de conseguir vê-la. Do outro lado da floresta, os Ilariht libertaram um clarão que ameaçou superar a escuridão, no entanto, a Oblivium manteve-se firme, absorvendo também a luz que eles emitiam. Lena sabia que a guerrilha estava prestes a terminar. Além de Elisa estar esgotada, absorvia demasiada energia e teria de a libertar não tarda, engolindo a floresta e tudo o que esta envolvesse com ela.
Da copa do castanheiro, Lena saltou e planou até à bebé. A escuridão podia impedir os opositores de as avistarem, porém, Lena não tinha problemas em vê-los. Como Alma, sentia a presença da floresta condenada, das duas Oblivium e dos três Ilariht que as caçavam. Pegou cuidadosamente na bebé ao colo e sentiu a resignação de Elisa, que tremia com a luz que absorvia da floresta e dos opositores Ilariht.
Lena voou velozmente até os portões do Magistério Alma e recostou a criança num dos dois bancos de pedra que se dispunham na entrada. No momento seguinte, a luz voltou, as nuvens dissiparam-se e a mãe Oblivium explodiu num clarão abrasador, incendiando a floresta e ameaçando devorar o Magistério Alma. Com a visão irradiada pelo clarão, Lena gritou de dor e fechou os olhos. Antes que o calor a alcançasse, libertou o seu Pulsar pelo Magistério. Era uma barreira formidável e apenas a Chanceler-mor conseguia conjurar uma de tamanha dimensão. Com o passar das gerações, a Casa Alma havia enfraquecido e Lena era a última dos grandes Alma. Ainda assim, emanar o Pulsar requeria imensa energia, pelo que Lena apenas o manteve por breves momentos, o suficiente para enfrentar a explosão e evitar a desgraça do seu Magistério. Em contrapartida, o pouco que restava da floresta ardia e, quando voltou a abrir os olhos, reparou que estava cega. Agoniada, Lena engoliu em seco, voltou a segurar na bebé e permitiu que as suas habilidades a conduzissem até ao novo pai. Ela teria de ser rápida e discreta, o sol já havia ultrapassado a linha do horizonte e a explosão de luz libertara um estrondo audível a vários quilómetros de distância — certeza disso eram as janelas recém-iluminadas que surgiam no Magistério. Alunos, professores, estadistas, estudiosos e demais Almas haviam de querer saber o que se passara na floresta. A sua Chanceler-mor dir-lhes-ia como a floresta morrera, de que forma perdera a visão e o quão desesperada ficara a mulher Oblivium, mas ninguém saberia da bebé.
Com o plano delineado, Lena voou para o quarto do pai da criança, tentando não pensar na visão que acabara de perder. Entre os escombros da floresta, o único Ilariht que sobrevivera ao clarão afastava-se paulatinamente, satisfeito por não encontrar réstia da bebé e da sua mãe.
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Richard despertou em aflição e suores frios. O seu coração bombava violentamente, tomado por um desespero somente equiparado ao que havia sentido há uma década, com o falecimento do seu pai. Na altura, ele acordara a tempo de o abraçar uma última vez. Aterrorizava-lhe desconhecer quem tinha perdido desta vez. Podia ter sido um dos seus amigos mais íntimos, como Lena, mas não sentia ser o caso. A sensação era pior do que quando o seu pai morrera, o que apenas podia significar uma coisa: Elisa tinha perdido o bebé.
— Richard, não me disseste que tinhas uma filha — repreendeu Lena, subitamente no seu quarto.
Surpreso, tentou sair da cama, mas constatou que tinha os músculos doloridos e a cabeça a latejar. Com esforço, sentou-se. Afinal, fora Elisa que morrera.
— Sabes que facilito tudo quanto posso, mas a tua bebé coloca a nossa Casa em perigo.
Apesar do que tinha acabado de experienciar e de não conseguir ver, a Chanceler-mor mantinha a sua beleza flutuante, com um pequeno sorriso leniente dirigido para o montinho de trapos nos seus braços onde a bebé dormia. Lena levitava a dois palmos do chão, com o vestido tulipa verde-escuro a pulsar. Sentindo a ânsia do amigo, sentou-se ao seu lado na cama e levou a mão de Richard à nuca da bebé.
— Ela é um de nós? — perguntou-lhe Richard, com a cabeça demasiado pesada para levantar o olhar do chão e encarar a Chanceler-mor.
— Tu sabes ao que a tua criança se resume, Richard. Ela é Alma e Oblivium num só e eu não quero imaginar o que acontecerá se a Casa Ilariht descobrir que a temos.
Richard rodou tremulamente a cabeça até encarar Lena, preparado para a confrontar com a noção de a sua bebé ser um Alma tão digno quanto qualquer outro. Lena suspirou e prosseguiu o discurso:
— Não recusarei abrigo a nenhum Alma, mesmo a um com uma segunda metade. Caso pretendas que a nossa Casa a receba, a sua identidade não sairá deste quarto. Ninguém poderá saber que a tua bebé é Oblivium, nem mesmo ela. É a única forma de a mantermos segura.
Richard permaneceu imóvel, apenas movimentando os órgãos da fala:
— Ela viverá somente como Alma, Lena. Tens a minha palavra.
— Ótimo! — exclamou a Chanceler-mor, pousando a bebé no colo do pai. — Vou falar com a Débora. Precisas de alguém para fazer de mãe.
— A Débora não está prestes a dar à luz? — atentou Richard, demasiado zonzo para seguir o seu raciocínio arrojado.
— Ela teve a criança esta madrugada — esclareceu ela, perdendo momentaneamente o sorriso. — Sinto que morreu.
Emotiva, Lena saiu do quarto às apalpadelas pela parede. Podia continuar a usar a suas habilidades Alma para se guiar pelos corredores, porém, temia libertar o seu dom se o fizesse. Oportunamente, estava a um lanço de escadas da enfermaria e conhecia o Magistério tão bem quanto a palma da sua mão.
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