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A relíquia viva

Do cimo do seu castelo, Cassandra confrontava as nuvens negras que se antecipavam na linha do horizonte — eram quase tão escuras quanto as que sombreavam a sua propriedade. Tanto ela como a sua fortaleza representavam as cicatrizes de uma era quase esquecida. A magia antiga era perigosa, e o mundo não precisava dela. Os feitiços haviam sido substituídos pela ciência, a alquimia pelas químicas e medicinas contemporâneas, as defesas embruxadas pela segurança tecnológica e assim a lista progredia, numa melodia de uma só nota. Cassandra evitava abordar o assunto — fazia-la sentir-se alheia num mundo que outrora fora tão seu. Era certo que, quando decidisse partir, grandes saberes ausentar-se-iam com ela.

O seu castelo ocupava uma das muitas montanhas do País de Gales e ostentava o resquício da beleza gótica antigamente vigente na região. Com a segregação natural a que muitos apelidavam de evolução, Cassandra isolara-se resignadamente do mundo moderno.

Hoje, no entanto, a bruxa pressentia algo familiar e cada vez mais evidente. O vento estava impregnado de magia ancestral, daquela que ela própria combatera no auge da idade, e que agora lhe seria fatal. Cassandra estava cercada pela feitiçaria Ilariht, dos discípulos do Rei Sol. Noutra altura do ano, jamais alguém se atreveria a fazer-lhe frente. Porém, o periélio aproximava-se e a Casa Ilariht rejubilava à medida que as defesas de Cassandra vacilavam. Com as suas aptidões enfraquecidas, sentia o peso da idade sob a forma de uma dolorosa dor de costas, assim era todos os anos.

Os Ilariht que orquestravam a sua morte não eram a personificação do mal na Terra, apenas interpretavam a lenda ancestral da maneira errada:

Alma. Oblivium. Ilariht. El-kimikus.

O equilíbrio entre as Casas é vital.

A desarmonia trará o dia fatal.

Uma só ficará;

Enquanto o Rei Sol as outras consumirá.

Cassandra estudara a lenda de fio a pavio apenas para descobrir que a sua morte marcaria o início do fim da sua Casa, Oblivium, que estava irremediavelmente predestinada a perder. Na outra face da moeda, a Casa Ilariht interpretava a lenda como a realização da vontade divina do Rei Sol, tendo por base a história antiga. Qualquer discípulo que se prezasse sabia da batalha feroz: a disputa estendera-se pela galáxia, enquanto dois grandes oponentes celestes se alimentavam de tudo o que cruzava o seu caminho, desde os viajados cometas até às estrelas mais reluzentes. Uma terceira criatura, Terra, apelara à consciência dos dois rivais, temendo que a batalha só conhecesse o seu fim quando estes tivessem devorado tutti..., mas fizera-o tarde. As duas bestas gladiavam há demasiado tempo, tanto que haviam desaprendido o motivo da discórdia, obcecado pela destruição. Destroçada, Terra exilara-os, enclausurando a criatura maior numa estrela jovem e conjurando uma lua pequena para deter a segunda criatura. Após o ato, ela desfalecera num sono tão profundo quanto a morte. Ao passo que a sua Alma havia sobrevivido, o seu corpo mirrara até de dele só sobrar uma carcaça rochosa. No centro dessa estrutura pedrosa, permaneceu um calor imenso — o seu coração. Intangível, a Alma coloriu o coração rochoso com o vestígio de vida que detinha, e daí surgiu tudo.

Eternamente aprisionados, os dois oponentes contaminaram a Terra com as suas energias. Os seres que acolheram a influência da Criatura da Lua passaram a temer o Sol, e os seres que acolheram o poder do Rei Sol passaram a evitar a noite.

Perante tal contexto e a lenda, os Ilariht acreditavam ser capazes de libertar o Rei Sol se reunissem todos os seus dons e que este lhes recompensaria imensuravelmente. Algures na idade média, tentaram realizar a cerimónia de libertação da criatura, todavia, a Casa Oblivium, constituída pelos discípulos da Criatura da Lua, impusera-a. Cassandra mal se recordava dessa batalha e continuava empenhada em esquecê-la. Nesse ano, os Oblivium foram dizimados ao ponto de a bruxa temer ser a última. Felizmente, não se atingira tal extremo e uma pequena comunidade Oblivium restabelecera-se longe do Sol, sob a ilusão tépida da segurança tecnológica do século vinte e um.


As nuvens negras aproximavam-se vigorosamente. Traziam fogo amigo, mas não chegariam a tempo de proteger Cassandra.



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Mikhail detestava as visitas que fazia à velha bruxa. Embora Cassandra fosse menos rude que criaturas da Academia e o mago até a considerasse uma visão agradável, os seus aposentos eram arcaicos e repulsivos. Numa das suas visitas, Mikhail dera-se conta de que a bruxa era praticamente uma relíquia viva, ainda que passasse facilmente por uma avó recém-reformada. Ela era sabedora de segredos únicos, mas não estimulava o interesse dos estudiosos, que preferiam consultar os mesmos livros e debater o que já sabiam no conforto da Academia.

O mago aguardou, como sempre, várias horas em frente ao portão do castelo, recostado na cadeira portátil que trouxera para o efeito. A rotina da bruxa passava por fazê-lo esperar até ao limite da indecência, e aí ela recebia-o. A espera afastava prodígios curiosas e fazia com que Mikhail não abusasse do seu tempo. Numa das visitas, o mago aguardara três dias até a velha lhe abrir os portões, perdendo quilos no processo. Mikhail bem precisava de perder peso — especialmente a sua barriga abalonada—, no entanto, tanto tempo sem comer era um martírio. Em tempo algum a velha o voltaria a apanhar desprevenido, pois ele vinha abastecido para uma semana de comida, água e livros.

Mikhail virou a última página do romance que trouxera. De vez em vez, apreciava ler um livro contemporâneo — era a forma discreta de ele contactar com a sociedade humana.

Desta vez, Mikhail não tinha tempo a despender para uma segunda leitura. A velha corria perigo de vida! Apreensivo, fez desaparecer as nuvens que o acompanhavam com um movimento de mão repentino. Recentemente e embora o enfraquecesse, passara a tolerar as madrugadas e os fins de tarde com pouco Sol, o que lhe proporcionava algum tempo útil fora da Academia.

— Cassandra, venho com urgência! — exalou ele. Pontapeou uma pedra com a bota, que saltitou montanha abaixo, e aguarda um minuto. — Perdoa-me o atrevimento. Não posso adiar mais....

Mikhail aproximou-se da entrada do castelo e projetou a mão contra o portão, que de imediato se desfez. Surpreso, o mago quase perdeu o equilíbrio, recuperando-o uns passos adiante, na parede-mestra do castelo. Cassandra não se envolvia em conflitos há várias décadas, mas nem mesmo essa ausência de ação a fizera baixar a guarda. Mikhail conhecia a maioria das suas defesas pelas várias visitas que fizera ao castelo. A primeira de muitas era exatamente a do portão, que ele havia desintegrado como se de madeira podre se tratasse.

Cassandra, vou subir!

O mago aventurou-se à defesa mágica seguinte: a escadaria. Normalmente, teria de subir os degraus dois a dois, de modo a evitar as escadas de número ímpar. Cassandra habituara-se a fazê-lo com uma destreza incrível e, embora ela não lhe tivesse dado uma justificação, Mikhail sentia um grande feitiço por detrás daquela regra. Com a curiosidade espicaçada, ele decidiu ir mais além. Pronunciou um encantamento rápido e um corvo lustroso apareceu em seu auxílio. O mago fitou-o e apontou para a escadaria. Desconhecendo o perigo que levara o seu senhor a conjurá-lo, o pássaro aterrou perto do primeiro degrau. Mikhail rangeu os dentes e rodopiou o olhar pela divisão — a velha podia aparecer a qualquer momento para o impedir de profanar a sua casa.

Desapontado, o mago voltou a apontar para a escadaria e o corvo lustroso saltitou para o primeiro degrau. Instintivamente, Mikhail ergueu os braços, preparado para se defender do grande feitiço. Ingenuamente, o pássaro continuou a saltitar de escada em escada, até alcançar o andar superior.

— Raios! – grunhiu o mago. O mistério fazia o castelo mais sinistro.

Subiu a escadaria rapidamente e seguiu para os aposentos da bruxa.

— Cassandra, não me faças esperar mais. Rogo-te — insistiu ele, passando por zonas antigamente protegidas pelas maldições mais audazes.

Mikhail entrou no quarto da velha com tamanha destreza que arrancou a porta das dobradiças. Imerso na escuridão, esperou que os seus olhos se adaptassem à escuridão para verificar que a divisão estava vazia, perdendo as poucas esperanças que ainda tinha de encontrá-la. A decoração era lastimosa, composta por um catre, uma cómoda rústica e um armário verde rachado.

Entediado, o corvo lustroso levantou voo, crocitou suficientemente alto para atrair a atenção do mago e encaminhou-se para o topo do castelo, onde havia uma saliência para o exterior — era lá que Cassandra costumava passar as tardes.

Atormentado pelo mistério, Mikhail seguiu o pássaro e viu-o sobrevoar alegremente acima do castelo. O corvo lustroso crocitava e batia as asas alegremente, até avistar algo que o fez estremecer e procurar refúgio no ombro do mago. Mais uns passos, e o mago também vacilou. No centro da torre, havia um monte de trapos fumegantes e o odor característico de carne queimada. Pareciam as vestes góticas da velha, que envolviam algo com volume. Mikhail destapou o que se escondia com um movimento mágico brusco e assustou-se com um cadáver carbonizado.

Alimento a dúvida que o corpo pertencesse a Cassandra, o mago curvou-se, rasgou a pálpebra seca do rosto torrado e reconheceu a íris azeitonada da velha. Antes de chegar a uma conclusão, teve o cuidado de verificar que as roupas estavam intactas. Não restavam dúvidas — a anciã Oblivium fora torrada pelo Sol.

O seu instinto dizia-lhe para correr para dentro do castelo, contudo, não conseguiu evitar encarar o crepúsculo e confidenciar-lhe:

— Podes bem ser o meu último anoitecer. Estou metido numa bela encrenca.

Mikhail tinha sido incumbido da vida da velha. Quando a Chanceler-mor Oblivium descobrisse que a sua maior aliada estava morta, a sua punição não seria leviana.

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