Um nome que não se deve pronunciar...
Ao contrário dos súditos e conselheiros mais chegados, os únicos que sabiam, Ramsés III permaneceu calmo. Há dias se conformara com o seu destino – determinado pela traição contra a sua divina pessoa. O peso de três décadas de reinado, em que governara o Egito com mão de ferro, estava chegando ao fim. Em certa medida, não deixava de ser um alívio.
Apenas o mal estar físico sobrepunha-se à estranha apatia que dominava o seu ser. Ele observou, com complacência, os esforços do médico real – empenhado em lhe prolongar a vida, mesmo sabendo que o envenenamento fora bem sucedido (portanto, fatal). O organismo do homem mais poderoso da nação levaria poucos dias para ser completamente aniquilado.
Enquanto ele lutava pela vida em segredo, Ramasses - seu primogênito e herdeiro - liderava uma rede de espiões competentes e fiéis, a fim de desbaratar o esquema preparado para usurpar-lhe o trono. Ele caçou e indiciou todos os implicados na conspiração. Entre eles: as esposas do harém real, lideradas pela segunda esposa, a rainha Tiy; dois funcionários de alta posição, no judiciário; e o jovem príncipe Pentawere, filho de Tiy com o faraó, excluído da linha sucessória imediata, mas cuja mãe almejava-lhe o trono. Tiy não se conformava com a ascensão de Ramasses, nascido da união do faraó com a esposa principal, a rainha Isis.
De repente, o Príncipe Ramasses descobriu que o sumo sacerdote do templo de Sekhmet e dois escribas reais também estavam envolvidos - servidores supostamente leais a Ramsés durante décadas. A constatação o levou a uma conclusão nua e crua: a pessoa poderia manter uma fachada de lealdade por muitos anos, sem deixar que a máscara revele seus verdadeiros desejos e propósitos.
É impossível se conhecer realmente a pessoa, por mais que se conviva com ela.
As nuvens negras da suspeita também pairavam sobre o irmão do faraó, seu tio, o príncipe Anoremheb. E, com ele, possíveis colaboradores (os quais só mais tarde foram descobertos e devidamente implicados - um dos quais, o feiticeiro estrangeiro chamado Isef).
A participação de Anoremheb na conspiração não surpreendia Ramsés, uma vez que o irmão sempre questionou o direito ao trono. Aos seus olhos, o príncipe era o candidato ideal à usurpação. Ramsés não tinha a menor dúvida sobre a implicação de Anoremheb e o poder que este vinha conquistando ao longo dos anos!
Quando as provas contra o príncipe finalmente vieram à tona, viu-se que ele, e não Tiy, fora o elemento decisivo. Anoremheb não só arquitetou a trama, mas instigou a rainha para que articulasse os oficiais e os membros da corte de justiça - os mais suscetíveis a sua manipulação.
Ciente dos tentáculos e engrenagens atualmente controlados pelo irmão, o faraó subitamente se apercebeu de outra questão. Se o príncipe era obcecado pelo trono, não bastaria derrubá-lo – a ele, o faraó! O usurpador teria que derrubar o príncipe herdeiro também. Seu filho.
Tendo isso em mente, Ramsés ordenou a Ramasses que partisse para Punt numa missão secreta e aparentemente urgente. O que Ramsés não queria, na verdade, era que seu filho corresse o risco de ser atingido pelas artimanhas de Anoremheb; pelo menos até que este fosse devidamente condenado e, melhor, neutralizado.
Nos anais da corte de justiça, o nome de Anoremheb seria completamente dissociado do crime de lesa-majestade, por uma boa razão... Não era interessante para a política instituída deixar que viesse a público a real dimensão do poder exercido por Anoremheb. Além do mais, a pena de morte não eliminaria o perigo que representava.
Quando chegasse a hora de Ramsés, os médicos reais atestariam para a posteridade que o deus vivo venceu o veneno da serpente; e que não houve atentado algum, mas um infeliz incidente. Afinal, um deus vivo não poderia ser morto tão facilmente - como um mortal. Se fosse, sua legitimidade perante o povo entrava em xeque, prejudicando a sucessão ao trono por parte de seu herdeiro natural.
Para o povo, Ramsés morreria ao tempo cobrado pela natureza; compareceria diante dos juízes de Osíris, e pesaria os valores de sua alma. Assim, seu poder como deus vivo não seria questionado ou contestado. Restava saber se conseguiria conter a ameaça à soberania de seus descendentes.
O faraó só esperava viver o suficiente para impedir Anoremheb; e, quem sabe, a tempo de ver Ramasses uma última vez.
***
Ramasses não ficou satisfeito com a decisão do pai em enviá-lo aos confins do País de Punt, mas não tinha como contrariar uma ordem real. Assim, o corregente partiu com uma pequena comitiva para realizar a tarefa que, logo percebeu, revelou-se ultrajante de tão banal. Relações diplomáticas. O embaixador poderia fazer isto em seu lugar.
Ele se desembaraçou rapidamente do serviço, porém, levou quase um mês para conseguir retornar ao Egito. Mesmo empreendendo marcha forçada, o príncipe não conseguiu chegar a tempo de acompanhar o término do julgamento dos traidores. No entanto, esse período proporcionou a Ramsés a tranquilidade necessária para assumir a investigação iniciada pelo príncipe-herdeiro, a fim de verificar os crimes de autoria do irmão. Tão chocantes, Ramsés viria a descobrir, quanto o golpe de Estado orquestrado contra ele.
Crimes de magia negra e assassínio.
Os espiões constataram que a onda de sequestros de jovens mulheres, por toda a Tebas, estava conectada a Anoremheb e seu culto secreto. Mulheres da plebe, especialmente, estariam sendo torturadas e sacrificadas em nome de uma divindade estrangeira chamada Roth.
Além disso, Anoremheb aparentemente estaria invocando e comprometendo os espíritos para que lhe prestassem favores nefastos. Ele almejava insanamente obter o controle sobre o mundo dos vivos e dos mortos; algo que feria profundamente as leis do Tribunal de Osíris e exigia, portanto, punição exemplar.
O levantamento de provas referentes à participação do príncipe foi, a princípio, o mais difícil de se conseguir. Anoremheb era hábil, sagaz, e tinha olhos e ouvidos em toda a parte. Nenhum integrante da Casa Real que fosse fiel a Ramsés, teria imaginado que a conspiração estava em pleno curso. Nem que o desaparecimento das jovens tinha a ver com o príncipe e o culto a uma divindade estrangeira.
Anoremheb não seria julgado pelo crime de lesa-majestade, mas por todos os assassinatos das jovens, cujas famílias esperavam por justiça. Os demais conspiradores para destituir o faraó, inclusive o desventurado Pentawere, já haviam sido sentenciados, e aguardavam execução.
***
O julgamento chegou ao fim... Os juízes designados estavam prontos para imputar a todos os condenados a pena de "mudança de nome"; algo que, para um egípcio, consistia em terrível destino.
Cada um deles assumiria a alcunha indicando o crime cometido e a pena prescrita. Com o novo nome, eles adentrariam o reino de Osíris... No entanto, os espoliados de nome que tivessem a misericórdia de permanecerem vivos, deveriam ser cegados e vendidos como escravos. Eles adotariam nomes, como: "Esse Escravo Cego Porque Traiu", "Cegado pela Vergonha", ou "Cegado por Ra". Desta maneira, a sociedade sempre se lembraria de que eram criminosos. Já os condenados destinados a assumir o nome "Odiado por Ra", receberiam a pena capital.
Um conjunto de papiros judiciais foi redigido, a fim de registrar os fatos daqueles dias nefastos. Nele, constavam os autos completos do julgamento - subdivididos em rolos numerados por sessão. Os documentos descreviam minuciosamente os eventos, as testemunhas arroladas, e as ações criminosas que cada um dos implicados cometeu.
Conhecida como "A Conspiração do Harém" – por ter intentado o assassinato do faraó durante o período do festival anual de Opet, em Tebas - cerca de quarenta suspeitos foram implicados pelo crime de lesa-majestade. A comissão de quatorze juízes, nomeada previamente por Ramasses e aprovada pelo faraó, seu pai, classificou os conspiradores em dois grupos: de acordo com o envolvimento do indivíduo no crime, e de acordo com as evidências contra ele. A maioria dos acusados foi condenada à morte, graças à meticulosidade das provas coletadas.
Restava descobrir se, e em qual dos grupos, Anoremheb seria implicado...
***
Terminado a leitura dos autos, os escribas olharam para o faraó, aguardando sua deliberação. Um pajem o abanava, a fim de evitar que o suor incômodo lhe escorresse a maquiagem. O chefe da botânica e embelezamento fizera um trabalho excelente para encobrir sua fragilidade física – pensou Ramsés. Afinal, a figura do faraó representa a divindade. Ele é o deus vivo; e nada, absolutamente nada pode atingi-lo.
Os cortesãos egípcios não deveriam sequer suspeitar da precariedade de sua saúde, pois isso poderia suscitar dúvidas sobre o poder divino do rei e favorecer novas conspirações por parte de súditos ambiciosos e descontentes.
Por um instante, o faraó foi transpassado pelo remorso. Seu filho, Pentawere, parece ter sido mais enredado do que engajado nas atividades criminosas da mãe. A dor da dúvida e da suspeita iria golpeá-lo até o túmulo. O rapaz fora condenado à morte por causa das provas implacáveis – e irrefutáveis - que pesavam contra ele. No entanto, o pai pôde interceder junto aos juízes para que a execução fosse convertida em suicídio.
Deixando as conjecturas de lado, Ramsés ergueu a cabeça e encarou To, vizir das Duas Terras e sumo sacerdote do reino – o qual preparara os últimos encantamentos sagrados na pira gigantesca, a ser incendiada pelo servo expectante. Ele despejou a mistura de pós e ervas especiais, antes de se afastar e ordenar que se ateasse o fogo sagrado. A fumaça elevou-se no recinto, exalando uma combinação de odores agradáveis.
O último julgamento estava prestes a começar. A plateia fora composta por familiares das vítimas do príncipe Anoremheb, e por sacerdotes dos templos de Hator, Anúbis, e Seth. Apesar de representarem e dominarem as forças dos deuses da escuridão, todos os sacerdotes presentes temiam o réu, mais do que os demônios das profundezas.
O vizir instruiu os presentes a se apegarem aos seus amuletos de Maât, a fim de se protegerem da influência maléfica da criatura que, em breve, adentraria o recinto.
Anoremheb foi conduzido ao salão pela guarda real do faraó. A atmosfera da corte imediatamente tornou-se opressiva. As vozes exaltadas foram se transformando em murmúrios, até que se calassem por completo. O olhar dele era capaz de seduzir e destruir ao mesmo tempo - tamanho o seu magnetismo. As pessoas ficaram sem ação enquanto o necromante avançou a passos largos pelo corredor. O príncipe irradiava uma força assustadora e incompreensível para a maioria das pessoas – exceto para os iniciados em magia, de elevada patente.
Alguns diziam que Anoremheb era mais do que um feiticeiro poderoso. Um deus vivo, talvez, cujos poderes rivalizavam com os do próprio faraó. Se um era filho de Ra, o outro deveria ser de Seth... Havia muita especulação a respeito dos direitos que outro deus vivo poderia ter de conquistar o trono de Ramsés III. Para a corte havia um único fator a ser considerado: o necromante era uma ameaça ao poder de Ramsés sobre as massas.
Mas, a recordação das jovens desaparecidas fez com que a indignação substituísse o estupor. As famílias das vítimas começaram a bradar pela justiça divina, ou seja, faraônica.
-Morte ao necromante! – gritavam.
-Ó poderoso Ramsés, fazei o covarde pagar pelas atrocidades!
Bastou um olhar ameaçador do príncipe para que todos se calassem. Suas pupilas ficaram subitamente negras e brilhantes. Na opinião de Ramsés, há muito que as feições de Anoremheb não eram mais feições humanas. O faraó piscou para não sucumbir à estranha força que se desprendia daquele olhar. Apelou a Osíris e se concentrou no que tinha a dizer.
Anoremheb sorriu, diante do esforço do irmão para se libertar de seu poder.
-Príncipe Anoremheb, - o vizir To começou a dizer, com voz firme - este julgamento tem por objetivo avaliar tua participação em crimes hediondos: a morte de jovens mulheres, as quais deste cabo para angariar os favores de uma divindade estrangeira, em pleno território egípcio.
-O que sempre foi de vosso conhecimento... – a voz gutural do príncipe se fez ouvir.
Murmúrios espantados e indignados quebraram o silêncio.
-Calúnia! – bradou To.
A partir daí, o vizir desfilou acusações, arrolou testemunhas e provas contra o príncipe. Este ouvia a tudo calado e sombrio. Para Ramsés, parecia que ele não mais pertencia ao mundo dos vivos e, portanto, não temia do que dele viesse. A aparente indiferença só desapareceu quando a sentença foi proferida.
-Sabemos que entregaste tuaalma aos espíritos inferiores e maus (1). Crês que nenhuma punição poderá atingir-te e que tu possuis poderes acima do bem e do mal. Estás enganado. Os deuses apoiam a Ramsés e não a ti, e me orientaram sobre os encantamentos que neutralizarão tuas ações.
To, o sábio mais poderoso do reino, encarou o príncipe necromante nos olhos. A plateia ficou em suspense. O combate que se travou naquele instante estava muito longe da compreensão das pessoas comuns. Fluídos aurais escuros e claros entrechocaram-se no plano invisível. Aos expectadores restou o silêncio...
Anoremheb, que esperava sair vencedor, foi sacudido por um terrível mal estar que o enfraqueceu. Cambaleou e quase perdeu os sentidos. Algo surpreso, conseguiu permanecer de pé. Não compreendia o motivo de sua repentina fraqueza, afinal, Roth havia lhe concedido poderes que amplificaram seus dons naturais.
Nesse instante, diante de um Anoremheb chocado, os rostos da plateia se distorceram e, ao fundo do salão, surgiu um bando de criaturas nefastas, visíveis apenas aos seus olhos. Roth os liderava, rindo e apontando o dedo em sua direção. O necromante sentiu-se ultrajado. Não sabia se pela presença de Roth, que nada fazia para ajudá-lo, ou se pelo escárnio que percebia em suas feições, enegrecidas pelos fluídos malignos.
Tu me foste útil, Anoremheb, enquanto precisei de ti. Agora, não preciso mais! Ah, ah, ah, ah, ah, ah!
Aos pés de Roth, várias mulheres ajoelhavam-se acorrentadas por pesadas algemas. Algumas apresentavam o corpo chamuscado pelo forno aonde morreram queimadas. Outras apresentavam chagas, de cujos cortes brotavam sangue negro e viscoso. Eram as vítimas dos sacrifícios, que olhavam para Anoremheb com ódio.
- O teu nome – prosseguiu o sumo sacerdote To, alheio aos visitantes sobrenaturais do lado oculto – será apagado dos afrescos de nossos templos e de todas as escrituras. Serás sepultado vivo, na parede do templo de Amon-Ra, onde os deuses cuidarão para que tua alma seja desligada do corpo, rompendo teu duplo KA. As almas dos fiéis shardanas o conduzirão ao limbo, onde serás julgado por Osíris. Tua alma negra será devorada por Ammit.
O príncipe virou-se, deparando-se com os guardas ao seu redor; capturou o olhar de um deles. O rapaz não conseguiu se controlar e avançou para o sacerdote com a lança em punho. To, porém, não se abalou. Fez um gesto e pronunciou algumas palavras. O guarda estacou, sacudindo a cabeça. Ao compreender o que tinha ocorrido, abandonou o salão correndo, deixando para trás murmúrios estarrecidos.
-Teus truques já foram previstos, necromante. – To aproximou-se mais de Anoremheb a fim de demonstrar para a plateia que não o temia. Apenas seu assistente sabia o sacrifício que ele teve de fazer. – Teu nome, a partir de hoje, não mais será pronunciado. Assim, não terás nenhum poder sobre os vivos. E até que pagues as dívidas que acumulaste junto às tuas vítimas, tu permanecerás no limbo, sem nome.
O sacerdote virou-se para o faraó e aguardou seu pronunciamento final.
-Que assim seja. – Ramsés sentenciou e, com um gesto, ordenou ao capitão da guarda que escoltasse o condenado para o cumprimento imediato da sentença.
-Vós não podeis apagar o meu nome! Meu destino é sublime. Hei de governar o Egito, e terei tudo o que já foi vosso, Ramsés. A glória, o poder, e a alma da vossa amada rainha Isis... Em breve ela morrerá, como vós e como Ramasses!
Uma máscara de dor e ódio passou rapidamente pela expressão do faraó, enquanto ele se apoiava com força nos encostos do trono.
Ao sinal de To, o capitão da guarda acertou um soco certeiro no estômago de Anoremheb, calando-o. Infelizmente, não eliminou o seu sorriso escarnecedor.
Antes de ser levado pelo corredor, o necromante profetizou:
-Meu caro irmão, vós morrereis em breve, mas eu não... Os shardanas não me levarão até Osiris! No dia em que meu nome tornar a ser pronunciado, o vosso será esquecido...
Ramsés levantou do trono rápido demais, esquecendo-se por um instante que já não era mais um jovem e saudável guerreiro; nem que o veneno em seu sangue lhe roubava a vitalidade muito rápido... Ele oscilou sobre si mesmo, perigosamente. O sacerdote de pronto dispensou todos os presentes que, de tão abalados com a profecia do nefasto príncipe, nem perceberam o estado do faraó.
-Ele sabe que conseguiu me envenenar! – sussurrou o rei, quando To veio acudi-lo.
-Não falai, Vossa Majestade. Economizai vossas forças! – foi tudo que o sacerdote disse, sustentando-o pelo ombro.
Quando percebeu que caminhavam na direção dos aposentos reais, Ramsés parou.
-Não. Tenho que assistir ao cumprimento da pena.
O sacerdote tentou dissuadi-lo, mas foi em vão.
***
A multidão aglomerava-se em torno do suntuoso templo de Amon-Ra. Anoremheb foi transportado num carro com grades. Estava amarrado e amordaçado - para que não proferisse suas maldições. Quatro guardas o retiraram do carro e o carregaram até a parede externa do templo. Eles o posicionaram de pé, num nicho previamente aberto pelos pedreiros, entre a parede e os afrescos do templo.
A ordem foi dada, e um dos pedreiros aproximou-se, temeroso, para encaixar as pedras de granito diante do príncipe. Outros pedreiros permaneceram a uma distância que julgaram segura, perto o suficiente apenas para lhe passar as ferramentas de trabalho. Todos eles foram orientados de antemão a não olharem nos olhos do necromante. À medida que trabalhavam, os sábios do templo entoavam cânticos selecionados do Livro dos Mortos.
Quando a carruagem do faraó chegou ao templo, as pedras já estavam empilhadas à altura do peito do príncipe. O pedreiro parou o trabalho e esperou que o sacerdote começasse o ritual de sepultamento do condenado. Ramsés avistou Anoremheb amordaçado e amarrado, no interior da parede; então desceu do carro com extrema dificuldade, auxiliado pelo capitão da guarda real.
O sumo sacerdote assumiu sua posição junto aos sábios do templo - percebendo, num relance, que o céu claro rapidamente se fechou em estranhas nuvens de tempestade.
Repentino mal estar tomou conta do faraó, que também notou a mudança no clima. Um frio terrível e incomum se abateu sobre a cidade, como se esta tivesse sido cercada pelas forças das trevas.
Titi e Isis irão sofrer! Vós morrereis! Não ireis protegê-las da minha vingança! Ramasses perecerá em Punt e vossa linhagem real desaparecerá com ele... – uma voz maligna torturou sua mente.
-Começai! – conseguiu ordenar o faraó, com esforço.
Apesar das instruções precisas para não olhar nos olhos do necromante, a curiosidade falou mais alto. No instante em que um dos operários ergueu a cabeça, sentiu-se atraído pela força tenebrosa. Fixou o rosto do condenado; e imediatamente, a voz maléfica e imperiosa tomou conta de seus pensamentos:
-Tua esposa e teus filhos hão de morrer, um por um, antes que o ano termine. Tu contrairás a peste que vem do norte, e levarás cinco longos e torturantes anos para deixar o corpo.
De repente, o operário largou as pedras e saiu correndo, gritando. O cântico não parou, devido à forte determinação de To. Contudo, os demais sacerdotes pareciam abalados. Só retomaram as orações quando se deram conta de que o vizir prosseguia imperturbável.
O povo cochichava, e Ramsés temia que o pânico se generalizasse. Quando To encerrou o ritual dos cânticos, baixou os pergaminhos sobre o altar. O faraó juntou-se a ele e sussurrou:
-Conseguiste localizar os Papiros de Roth?
To negou com a cabeça, sentindo-se abatido.
-E também não encontramos as doze pedras da invocação.
Pela primeira vez na vida, Ramsés sentiu medo. Isso favoreceu a baixa de suas defesas mentais, permitindo que a voz do irmão necromante outra vez se imiscuísse em seus pensamentos:
Bem mais de quarenta pessoas desejavam a vossa morte... Vós fostes grande guerreiro, mas péssimo julgador de caráter... Vosso pobre filho, Pentawere não estava envolvido nos desatinos da mãe. Ele nem sabia o que Tiy estava fazendo... Tolo! Permitires a morte de vosso próprio filho. Um inocente... Ah, ah, ah, ah!
Novamente, Ramsés cambaleou. A tortura da incerteza que o perseguia há semanas voltou a dilacerar o coração paterno. Uma máscara de sofrimento tomou conta de sua expressão, por um momento, antes que reassumisse o controle das emoções. A dor insuflou-lhe fúria.
-Assegura-te de que esta criatura jamais consiga deixar os domínios estéreis do limbo! – vociferou, dando as costas a Anoremheb, que já estava com parte do corpo completamente emparedado.
Os servos que rapidamente substituíram o pedreiro apavorado, não viam a hora de cobrir aquele rosto ameaçador. Por isso, apressaram o trabalho.
Os olhos do príncipe indicavam que ele ria, intimamente. To tentou imaginar se o necromante tinha meios de exercer sua influência maligna, mesmo estando emparedado. Jurou a si mesmo que dedicaria o resto de sua vida a identificar e neutralizar todas as possíveis formas que Anoremheb viesse a utilizar para prejudicar os vivos.
***
Infortunadamente, To constatou que as ameaças de Anoremheb cumpriram-se, uma a uma. As pessoas que o necromante amaldiçoou, pereceram... Algumas logo; outras, depois de anos.
Ramsés faleceu pouco tempo depois do emparedamento do irmão. Ramasses desapareceu misteriosamente em seu regresso, entre a Núbia e Punt. Um dos outros filhos do rei assumiu o trono – sendo nomeado Ramsés IV.
O falecido faraó Ramsés III foi enterrado no Vale dos Reis, sob a proteção da tríade familiar de deuses: Amon, pai e esposo; Mut, mãe e esposa; e Khonsu, filho-deus do casal.
O nome de Anoremheb foi banido da história egípcia, restando poucas evidências de sua passagem pelo mundo antigo. Depois do emparedamento, dizia-se (entre os praticantes de magia negra) que ele conseguiu manter-se vivo por trás das paredes, em estado letárgico. Lenda urbana? Talvez... Mas o príncipe descobrira há muito tempo, em seus estudos de magia negra, como controlar o próprio metabolismo.
A verdade era por demais assustadora para que os sacerdotes do templo de Amon ousassem investigar os acontecimentos estranhos vinculados à parede do templo. As pessoas evitavam passar por ali e "serem vistas" pelas pedras. O fato era que a alma do necromante eventualmente deixava o corpo. À noite, ela vagava por Tebas em busca de pessoas suscetíveis, fracas de caráter, de iniciativa, e propensas às paixões mundanas... Ele utilizava seus corpos para se nutrir; sugando as energias vitais das vítimas durante o sono, para então retornar ao paredão – onde seu corpo trancafiado hibernava. Desta forma, Anoremheb adiava indefinidamente a chegada da morte; e, consequentemente, o julgamento de Osíris.
Em suas viagens astrais, porém, o necromante temia afastar-se muito e acabar perdendo o fio de conexão com o seu peri-espírito. Não ousava volitar além da cidade, preso que estava entre dois mundos – o dos vivos e o dos mortos. Temia, ainda, estar sendo vigiado atentamente pelos shardanas: criaturas encarregadas de perseguir almas como a sua e arrastá-las para o reino de Anúbis.
Ao longo dos séculos, as vítimas acometidas do que os estudiosos chamariam futuramente de "vampirismo espiritual", adoeciam e morriam sem que houvesse um motivo orgânico aparente. Os curandeiros acreditavam que um espírito maligno se nutria de suas energias, mas não ousavam se meter com "O Odiado por Ra", mesmo porquê, passadas tantas gerações, os sacerdotes desconheciam o verdadeiro nome "da entidade". Aqueles que tentaram proferir encantamentos contra ele, morreram de formas estranhas, ou tiveram colapsos – ficando em coma permanente ou derrame grave e paralisante.
Todos os conhecimentos compilados por To ao longo de sua vida, os quais mantiveram Anoremheb sob controle, desapareceram misteriosamente depois da morte (não menos misteriosa) do sábio.
Os Papiros de Roth continham os rituais com poder de libertar as almas das vítimas ofertadas ao deus, dissolver o estado de hibernação de Anoremheb, bem como trazê-lo de volta ao mundo dos vivos. Mas para isso, era preciso o uso das pedras da invocação.
Nenhum dos instrumentos ritualísticos jamais foi encontrado...
Os necromantes de eras futuras dariam ao príncipe amaldiçoado os alicerces de seu poder vindouro. Tornar-se-iam, de certa forma, os cultuadores de seu legado. Eles trabalhavam em segredo para que o mestre fosse libertado de sua sentença.
A oportunidade surgiria no século X d.C.
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Nota:
(1) Aqueles que não passaram pela pesagem do coração, no tribunal de Osíris.
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