Saber viver... e morrer
Acordai ó irmãos meus
Desse sono tão profundo
É bom que nós nos lembremos
Das Almas do outro mundo
Ó quantas Almas clamam
E dão gritos no inferno
Pelas nulas Confissões
Que neste mundo fizeram
Antes do prólogo
Irmãos meus, cuidai na morte
E no dia de Juízo
O inferno é mui feio
Deus nos leve ao paraíso
Quem quiser ganhar o Céu
Faça como São Francisco
Lembre-se uma vez ao dia
Das cinco chagas de Cristo
Acordai ó irmãos meus
Não vos fiqueis a dormir
Que as almas do outro mundo
Orações, 'stão a pedir
Quem quiser ganhar o Céu
Faça como São Gregório
Lembre-se uma vez ao dia
Das almas do Purgatório
Rezem a Salve rainha
Á Virgem Nossa Senhora
Seja a nossa salvação
Seja a nossa protectora
Á porta das almas santas
Bate Deus a toda a hora
As almas lhe responderam
Ó meu Deus que quereis agora
Quero que deixeis o mundo
Vinde pró Reino da Glória.
(Tradição de Reza Popular - autor desconhecido)
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Ano do Senhor 1.623
Ordem dos Beneditinos
Monastério DiSopra – Monte Adelia
Golfo de Taranto, Itália.
Dizem que o aventureiro tem vida curta e o covarde não vive plenamente... O segredo de saber viver está no equilíbrio entre as escolhas que fazemos. Há momentos em que é preciso ser cauteloso e momentos em que é preciso ser ousado. Como saber, entretanto, quando se deve ousar e quando se deve recuar? Na maioria dos casos, é um aprendizado que só assimilamos ao final da jornada.
Quando olho para trás e vejo as questões que deixei pendentes por excesso de cautela... Ou teria sido por covardia?
A mulher que amei e nosso filho há muito fizeram a passagem... Eu mesmo encomendei suas almas e os enterrei. Agora que sigo pela trilha que eles seguiram, mas de que adianta o cumprimento impecável dos rituais, se, em vida, eu lhes neguei o meu afeto? Fui inflexível... E lhes dei as costas quando mais precisaram de mim... Ainda poderiam estar vivos, se minha atitude, na época, fosse outra.
Que poder maldito é este? O de mudar o destino de gerações inteiras apenas pela manipulação da fé... De que adianta tal poder, se a mudança vem para destruir e não para salvar? Os filhos dos homens, cujos bens, eu ajudei a Santa Madre Igreja a desapropriar, hoje mendigam pelas ruas de Bari... Ainda ecoam em meus ouvidos os gritos das mulheres sob acusação de bruxaria, durante os julgamentos em que me abstive de votar. Sabia que eram inocentes, mas não fiz nada para defendê–las... Não podia, se quisesse me manter em boas graças com meus superiores. Ah, e eu queria estar em boas graças, acima de tudo.
Elas foram lançadas à fogueira.
Não sei se é delírio ou realidade, mas nas últimas madrugadas, tenho visto os espectros daquelas mulheres esperando pacientemente pelo meu desenlace. Elas esvoaçam ao redor da cama, olhando–me com olhos predadores. Não, não consigo sequer fixar aqueles olhos brilhantes e rancorosos... Querem se apoderar da minha alma!
Elas invadem minha mente, mostrando–me como pretendem se vingar pelo que eu não fiz... mais do que qualquer coisa que tenha feito. O cheiro de carne humana queimada invade minhas narinas, enlouquecendo–me aos poucos. E eu nada posso fazer para detê–las. Já não sou dono do meu corpo...
Os clérigos mais resolutos defenderiam a ideia de que seguir a Regra não é pecado. Muito pelo contrário. No leito de morte, tentariam acreditar que as ordens da Santa Sé são as ordens de Deus... Considerando a mesma forja que nos criou, eles podem estar certos. Mas, quando se está morrendo, nossas ações em vida agarram–se à garganta como tentáculos, sufocando–nos aos poucos, obrigando–nos a encarar os crimes mais bem guardados e quase esquecidos.
Quase esquecidos.
Minha conivência criminosa favoreceu uma vida longa e confortável. Sem paixões nem valores a serem defendidos; sem convicções a conduzirem meus passos; evitando cuidadosamente o enfrentamento e a superação do medo... Medo de ser banido. Medo de não pertencer a algo ou alguma coisa. Medo de morrer sozinho. Medo de ser esquecido...
Homens mais valorosos do que eu, pagaram o preço de enfrentar o medo e se libertaram. Nós, covardes, vivemos aprisionados até o fim pelo poder que tanto almejamos. Mas não deixamos de pagar o preço na hora de nossa morte.
Tive a vida de um prisioneiro e pecador. Em minha juventude, pequei por omissão, enquanto presenciava, impassível, meus companheiros serem mortos por defenderem aquilo em que acreditavam. Só pensava em seguir o que a vida monástica me ensinou... Mas, secretamente, eu os invejava pelo brilhantismo, pois não se permitiram ser maculados pela ignorância e truculência do poder.
Não foram contaminados pela corrupção do Sistema.
Atualmente, quando me lembro deles, é num misto de respeito e saudade. Morreram, mas sua grandeza de alma vive – para sempre incorruptível. Agora sou eu quem está às portas da morte... E não tenho mais motivos para temer represálias.
Eu segui a Regra!
Eu segui a Regra!
Galguei astutamente os degraus do poder. Levei a vida de eclesiástica que me foi destinada, sem que nunca se apontasse qualquer deslize da minha parte. Desfrutei da confiança de meus superiores e tive acesso a muitos documentos secretos arrancados dos pagãos capturados. Tal acesso foi um privilégio e, ao mesmo tempo, uma maldição...
O quanto de informação, conhecimento e saber a humanidade perdeu para o fanatismo?
Arrependo–me amargamente de ter me omitido perante a destruição de muitos desses artefatos, pois encerravam conhecimentos preciosos. Dentre os papiros sobreviventes da biblioteca de Alexandria (que escaparam à destruição por parte de incendiários fanáticos) grande parte se perdeu para sempre ao passarem pelas nossas mãos ocidentais, grosseiras, e igualmente fanáticas, comandadas por outras, maliciosas e mesquinhas. Mas os papiros da maior biblioteca do mundo antigo é apenas um exemplo...
Havia documentos valiosíssimos circulando pelo mundo pagão. Biografias de pessoas carismáticas e revolucionárias; tratados de medicina visionários, que poderiam contribuir para as intervenções cirúrgicas e o controle de doenças; remédios miraculosos a base de plantas; evangelhos que testemunharam os primórdios cristãos; estudos metafísicos hinduístas; registros de experimentos geométricos que conduziram os projetos arquitetônicas dos egípcios; e por fim, pedras com propriedades mágicas – utilizadas para antigravidade e portais interdimensionais... Essas pedras podiam trazer para nosso mundo as forças mais poderosas do universo.
Assim, pergaminhos, papiros e códices preservados em compêndios cuidadosamente reunidos ao longo dos milênios, foram irremediavelmente aniquilados pela ignomínia autointitulada herdeira cristã do "trono" de Deus.
Mea culpa! Mea culpa! Mea maxima culpa!
Então, eu conheci a Ordem... E o entendimento sobre o meu papel na Igreja mudou para sempre.
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Recebo a extrema unção. Os cânticos sagrados ecoam pelos corredores outrora silenciosos... Todos aguardam respeitosamente pela minha morte. O devotado Ludgero estende–me a cruz–medalha de São Bento.
Sob o olhar úmido de Ludgero, beijo a medalha colocada diante dos meus lábios, cujos dizeres orientaram meus anos na Ordem. Crux Sacra Sit Mihi Lux. A Santa Cruz Seja a Minha Luz. Essas palavras ficarão gravadas em minha'lma para a eternidade.
Estou rodeado por aqueles que estimo; e que instruí desde a mais tenra infância. Eles me foram completamente devotados, e sei que serão capazes de morrer a fim de cumprir minhas últimas determinações. Desta forma, o mais fantástico arquivo secreto já reunido, com documentos sobreviventes do mundo pagão, permanecerá a salvo de mãos inescrupulosas.
Eu venci a Regra!
Eu venci a Regra!
O homem deve desfrutar da liberdade em conhecer – mas não o conhecimento como instrumento de barganha por parte de alguns, mas como símbolo de independência para os povos... O conhecimento liberta, o conhecimento sustenta, o conhecimento orienta.
De certa forma, a minha crise de consciência não foi tão tardia quanto se possa imaginar. A meu modo, apostei no homem livre – embora eu mesmo vivesse escravizado. Foi como viver uma vida de duas faces. A face que eu exibi para a sociedade era o exemplo esperado pela Igreja; mas a face oculta era a que abrigava o meu verdadeiro eu.
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