Chào các bạn! Vì nhiều lý do từ nay Truyen2U chính thức đổi tên là Truyen247.Pro. Mong các bạn tiếp tục ủng hộ truy cập tên miền mới này nhé! Mãi yêu... ♥

Escrito na Divina Comédia do universo

Guilhem bocejou, reclamando pela terceira vez:

-Estou com sono, Pascal. Porque tu estás sendo tão rigoroso comigo?

O professor contornou a chama da tocha bruxuleante, fazendo com que seus olhos parecessem assustadoramente negros.

-Eu não tenho muito tempo...

-Como assim? - De repente, uma ideia terrível se formou na mente do rapazinho, espantando a névoa do sono. - Eles vão te executar?

Pascal inclinou o tórax, mãos às costas, enquanto o encarava com estranho divertimento.

-Não... – respondeu, de maneira sucinta. - O momento crucial está próximo, e por isso, urge concluir vosso treinamento.

Ele ficou sombrio, subitamente. - Uma alma nefasta chegou a estas paragens... Estremecendo o equilíbrio de barreiras que jamais deveriam ser rompidas.

-O que quer dizer? – garoto sacudiu a cabeça, confuso.

Pascal olhou para o teto de pedra escura. Um teto que ele se acostumou a observar durante anos e anos. Conhecia cada rachadura, cada reentrância, cada...

-As leis da divina obra não devem ser desafiadas... – sussurrou mais para si mesmo, num pesaroso.

Guilhem franziu as sobrancelhas, questionando-se se o seu amigo não tinha enlouquecido de vez. Decidiu que procuraria o pai sem demora, a fim de pleitear a libertação de seu mestre.

-Abrís vosso o livro na parte que trata sobre justiça. Dizeis a diferença entre lei, moral e ética; e como se relacionam no cotidiano dos indivíduos.

O menino suspirou, mas como respeitava Pascal, decidiu controlar o mau gênio. Fez o que lhe foi pedido, respirou fundo, e então começou:

-Justiça é um conjunto de procedimentos que garantem direitos e deveres iguais a todos. Mas a justiça também é acionada para punir uma ofensa.

-E quem determina o que é uma ofensa?

O rapazote refletiu por um instante.

-Alguém com reputação irrepreensível, - disse, afinal - que esteja de fora do conflito e veja as coisas com imparcialidade.

Seu tutor balançou a cabeça, concordando. Aquele era o método socrático que ele sempre adotava em suas aulas: instigar o questionamento, Guilhem reconheceu, uma vez que o mentor lhe instruíra sobre os métodos de ensino dos grandes mestres da Antiguidade; suas estratégias e pensamentos.

-E quem pode ocupar tal papel? – inquiriu-o Pascal.

-O líder de um clã, de uma tribo, ou aldeia... Um juiz, um padre, um patriarca, um ancião... Nas grandes questões, a família real, especialmente o rei. Depende da hierarquia e da gravidade da ofensa, suponho.

-E depende dos implicados no caso a ser julgado... – o mestre complementou. - Pode ser uma questão de fé, de impostos, de crime, ou dolo. Sempre haverá alguém que representa a justiça em diferentes instâncias. E qual é a última instância, meu lorde?

-Tenhas dó de mim, Pascal! – O garoto explodiu. - Estudar legislação a esta hora da noite?

-Qual é a última instância? – Pascal tornou a questionar, ignorando a queixa.

O garoto suspirou. - O rei.

Pascal sorriu. - Isso mesmo, meu príncipe. O rei é a figura mais importante de uma nação. A vida de seus súditos depende dele. Do camponês mais pobre ao nobre mais rico. O rei não pode se dar ao luxo de errar em seus julgamentos.

-E o que me dizes das leis? – Craon apoiou o queixo nas mãos, visivelmente cansado, mas interessado em saber mais.

-Ora, devem estar a serviço da justiça. São instrumentos. O rei também não deixa de ser um instrumento da justiça. – Ele parou de falar, interpretando corretamente um olhar irônico do rapazote; sabia que estava pensando no próprio pai. Não cabia a ele instigar o rancor filial. Por isso, com cuidado, prosseguiu: - Os reis de hoje e de ontem se esqueceram de por que os líderes primordiais criaram a realeza. Pensam que são como deuses com direitos, e nenhum dever para com o bem público. Na verdade, por definição e direito de nascimento, os reis devem estar sempre a serviço da justiça. Eles têm a missão de guiar seu povo. Daí o símbolo do pastor, antes mesmo que fosse usado na coroa de um rei antigo.

-Tu falas dos faraós do Antigo Egito. – O menino prontamente referenciou.

-Exato, meu lorde. Vejo que estais assimilando muito bem vossas aulas de História.

Craon brindou-o com um de seus raros e belos sorrisos.

O professor retomou a aula:

-As leis dependem quase completamente do contexto que as origina. Quando o contexto desaparece, e isso acontece com a passagem dos anos, muitas vezes devem ser reformuladas.

-Por quê? - Guilhem questionou. - Pensei que as leis deveriam ser sempre as mesmas, imutáveis, para que as pessoas tivessem algo para guiar sua conduta.

-Vós estais certo, meu príncipe. Mas, só até certo ponto... Digamos que nos tempos antigos, um ladrão pego em flagrante devesse ter, conforme o código de seu povo, a mão decepada. E isso valesse para todos... E se em outra época, aquele povo passasse fome por condições adversas ao seu controle. Por causa da seca, por exemplo; ou devido ao governo de um rei tirano que lhe negasse o essencial. E se o ladrão estivesse roubando comida para matar a fome de seus filhos...

Fez uma pausa significativa.

-A pena deveria ser a mesma?

Guilhem pensou por alguns instantes.

-Teoricamente, sim. A pena deveria ser a mesma para todos, não importam as circunstâncias.

-Quantas vezes vós roubastes pão da cozinha para me alimentar?

Os olhos de Guilhem brilharam.

-Isso é diferente. Eles não te trazem nada para comer. Se...

-... Se tu não trouxeste, eu já estaria morto? – O mestre complementou. – Não é mesmo?

O rapaz concordou, cabisbaixo.

-Compaixão, meu lorde. Lei sem compaixão não é nada senão uma regra vazia...

O garoto levantou o rosto, com a expressão endurecida.

-Meu pai não é conhecido pela compaixão.

-Verdade. – Pascal sorriu, sem humor. - Pierre, o impiedoso... Mas temo que a jornada de vosso pai a fim de responder pelos próprios débitos, já começou.

Guilhem arregalou os olhos e perscrutou o semblante de seu tutor em busca de algum traço de chacota. Mas Pascal o encarava incrivelmente sério. Antes que o garoto pudesse questionar o significado de suas palavras, ele prosseguiu:

-A aplicação da Lei deve ser imparcial e igual, mas a pena deve considerar os atenuantes, o contexto... Se vós matais, deveis ser condenado. Mas e se matais para salvar a própria vida, ameaçada por algum malfeitor? - Ele fez uma pausa, como se estivesse subitamente cansado. - Marie, tu não deves acender as velas... Ainda não...

O sussurro quase imperceptível fez com que Guihem erguesse a cabeça, intrigado. Antes que perguntasse o que estava acontecendo, Pascal pareceu ter voltado a si, embora mais pálido do que de costume.

-Enfim, acabamos. – Ele disse, num tom assustadoramente definitivo. - Prometeis que sempre vos lembrareis de nossas conversas.

-Por que estás falando deste jeito?

- Deveis me prometer...

-Eu prometo – respondeu Guilhem, impaciente. - Não me esquecerei de nada do que me ensinaste. Eu jamais vou esquecer-te ou abandonar-te, Pascal.

O prisioneiro se virou para a porta e, por um instante fugaz, Guilhem quase não conseguiu distingui-lo das sombras, por causa das roupas escuras e maltrapilhas.

-Lembrai-vos que o torneio de amanhã, meu lorde, é muito importante para o vosso sucesso. - Ele sussurrou, com dificuldade. - Não há lugar para o fracasso, amanhã.

Guilhem assentiu, fechando o livro devagar. A ideia de participar do torneio fora de Pascal, desde o início. E o rapaz sabia que não podia desapontar seu mestre. Mal se levantou do chão de pedra, percebeu-se sozinho. Pascal havia desaparecido.

-Pascal?

Guilhem olhou para o prato deixado na véspera. Pela primeira vez, a comida ainda estava lá, intocada.

***

O Torneio dos Valorosos era aberto a qualquer jovem franco que tivesse coragem de enfrentar as provas físicas, preparadas pelos clãs aos jovens promissores que almejavam ter voz no conselho; envolvia alguns ritos de passagem, que transformavam os primogênitos dos patriarcas em homens adultos e valorosos. O vencedor não necessariamente precisava pertencer a uma família nobre; a ascensão ocorria por merecimento, ao invés de por nascimento. Era a chance de qualquer franco livre ter voz ativa nas decisões de seu povo.

As provas costumavam ser difíceis, e muito disputadas. Os jovens guerreiros de todo o território, e de todos os protetorados, vinham à Paris apenas para desafiar os campeões dos anos anteriores (os quais eram tratados como verdadeiros heróis na sociedade franca). Se a imagem que Hilda publicamente passava do filho bastardo era de inépcia, ele iria provar que não só era um guerreiro habilidoso, como apto a assumir sua herança: o trono do império.

As arquibancadas em torno da arena estavam lotadas de cortesões e de plebeus, em lados opostos. Independentemente da condição social, todos gritaram ao avistarem o estandarte sendo transportado em direção ao marco divisório – lá, onde os clãs aguardavam.

De repente, o estandarte do Lobo Negro surgiu tremulante, transportado por um gigante barbudo. Todos silenciaram ao reconhecerem a quem pertencia o brasão – a casa dos Craon. Alguns também reconheceram Avraed, o gigante, à frente do príncipe Guilhem, que marchava com segurança para dentro da arena.

A rainha ergueu-se lentamente do palanque principal. Furiosa, olhou do garoto para o estandarte (que era o símbolo de Pierre).

-Quem pode ter permitido tamanha afronta? – sibilou.

Alan de La Chapelle olhou para ela como quem olhava para um inseto.

-Vós concedeis muita importância a um garoto bastardo. - Ele sorriu quando Hilda devolveu-lhe um olhar temeroso. Na noite anterior, ela viu e sentiu o que Alan era capaz de fazer entre quatro paredes. Não ousaria enfrentá-lo outra vez.

Pelo menos tem bom senso, o necromante pensou, algo divertido.

Isidoro remexeu-se na cadeira ao lado de ambos, aborrecido à menção da palavra "bastardo". Joana, sentada ao lado da mãe, lançou um olhar afiado para o Grão-duque de La Chapelle.

-E o que o fato de ser bastardo tem a ver com isso? – ela ergueu a voz, sem conseguir se conter, e ignorando o olhar horrorizado dos pais. - Não o subestimes apenas por isso, senhor. Caso contrário, vós podereis passar por idiota.

Todos a olharam, agora petrificados, mas a garota continuou encarando o Grão-duque sem pestanejar. Ele sorriu, deleitado. Uma reprimenda começou a se formar nos lábios dos adultos ao redor. Surpreendentemente, Allan interveio:

-Não, por favor, deixem a criança falar. É sempre bom ouvir a verdade de bocas puras e ingênuas. Aproveite a tua inocência, minha querida... Enquanto ainda a tens.

O pai beliscou o braço de Joana com força, sussurrando-lhe ao ouvido:

-Há lutas e lutas, Joana. Nem todas valem à pena.

-Mas papai...

-Chega! Tuas estripulias acabam aqui e agora, ou não respondo por mim!

Joana fechou a cara e fixou o olhar na direção da arena, onde estava o príncipe maltrapilho. A risada malévola da Alan de La Chapelle atiçou-lhe os nervos, mas ela evitou novos confrontos. Joana era teimosa, porém, sabia que o pai estava certo.

Na arena, Guilhem tentava ficar alheio aos comentários ultrajantes que vinham da arquibancada. Certamente, - ele concluiu – são bajuladores da rainha.

Avraed quase partiu para a ignorância, mas vendo o semblante concentrado de seu amo, decidiu não fazer nada que o perturbasse. Exasperado, limitou-se a segurar o estandarte da maneira apropriada.

-Vosso lugar não é aqui, bastardo. – Um jovem competidor falou, ao seu lado. Guilhem reconheceu-o: Anicet, o campeão do torneio do ano passado. – Vós sois príncipe, mas não deixais de ser um bastardo saxão.

-Eu sou tão franco quanto saxão. – Guilhem murmurou entre dentes.

- Metade de cada parte. O que equivale a dizer que sois nada – o outro revidou, com evidente deboche.

Os garotos em torno do campeão riram – exceto um deles, tão ou mais forte que o campeão; ele representava um clã distante e não tinha afinidades com os demais. Ignorando-os, ele se aproximou e estendeu a mão para Guilhem, que arregalou os olhos.

-Não vos importeis com eles. – O rapagão disse. - Eu sou Arnaud e pretendo vencer este ano. Boa sorte!

Guilhem poderia contar nos dedos as vezes em que fora recebido com cordialidade pelos outros filhos de nobres. Guilhem apertou a mão estendida, sentindo-se meio apatetado. No último momento, recuperou a presença de espírito.

-Tu te enganas. Quem vai vencer, desta vez, serei eu. - Respondeu, calmamente. - Ano que vem deixo o caminho livre. Uma vitória só me basta. Não preciso provar nada a ninguém... – Seus olhos se desviaram sugestivamente para Anicet, que competia todos os anos, desde que tinha nove.

Os demais rapazes se entreolharam, esperando pela reação de Anicet. Ele manteve a pose, apenas trocando o peso de um pé sobre outro.

Arnaud riu da indireta, lançando um olhar de deboche para Anicet; então, retornou para o seu grupo. O pai o interpelou. Não queria que o filho tomasse partido de uma briga dentro da família real... Mas o garoto deu de ombros, muito tranquilo.

Guilhem girou nos calcanhares e disse baixinho, apenas para que Avraed pudesse ouvi-lo: - Onde está Crin Bleu?

Avraed riu.

-Não sejais impaciente. Ele está aonde deveria estar. Agora, acene para Denise. Ela está saltitando de preocupação, lá, da arquibancada.

Acabrunhado, Guilhem olhou naquela direção. Quando viu o rosto descomposto de sua ama, ele acenou, sentindo-se desajeitado.

Tudo pareceu ficar para trás quando a compreensão do que estava por fazer caiu como um raio sobre sua cabeça. A hora da verdade chegou... Seria o sucesso ou o fracasso. A glória ou a humilhação. Depois da prova, haveria ou não um lugar para ele na corte.

-Ides à cabine real, assim ordena a rainha – soou uma voz peremptória.

Guilhem girou nos calcanhares, deparando-se com o emissário real. Numa súbita inspiração, respondeu como Pascal lhe ensinara a fazer para com seus futuros súditos:

- Agora, não. - As palavras, ditas em tom calmo, porém categórico, pareceram abalar o emissário até a alma. Ele olhou para os lados, sem saber o que fazer.

Bem, isso não era problema de Guilhem. Ele se voltou para o pórtico, onde começaram a soar as trombetas. Ele havia decorado a sequência das provas pelos sons. Sabia tudo o que deveria fazer, e contava com sua natural agilidade e força física para completar o percurso antes dos demais.

-Eles verão o que um meio saxão sabe fazer – murmurou.

Avraed levantou as sobrancelhas, mas ficou quieto. Deixaria as piadinhas de mau gosto para depois.

Os jovens competidores se conduziram à parte central da arena. Um idoso barbado, em trajes de batalha suntuosos, já os aguardava. Tratava-se do velho líder tribal – Martel, o Grão-duque dos Grão-duques. Assim que os jovens formaram um semicírculo em torno dele, o velho patriarca levantou um bonito penacho para que todos pudessem vê-lo.

-Entrastes aqui, meninos; saireis daqui, homens. O vencedor tornar-se-á o líder dos homens jovens. Qual de vós será o escolhido? – Ele deu de ombros. - Vós devereis vencer cinco etapas: a atlética, a luta, a cavalgada, o enigma, e a prova do penacho. Ao final, tereis que tirá-lo de minha mão. – Ele sorriu de leve. - O que não será nada fácil...

Os homens mais velhos riram, enquanto os rapazes se entreolhavam, receosos.

Guilhem estava concentrado demais para achar graça em qualquer coisa.

-O penacho deverá ser entregue à rainha Hilda. Quem, entre vós, tornar-se o herói, representará todos os jovens dos clãs perante a Coroa.

-Há um bastardo entre nós... – Anicet bradou.

-Cala-te!!! - O pai mandou que se calasse, porque sabia da justeza dos protocolos vigentes. Mesmo assim, era tarde demais, o mal estar já tinha se instalado na arena e se espalhado pelas arquibancadas.

Hilda sorriu.

-Os francos são livres. – Martel encarou Anicet com olhos perfurantes. - A liberdade nos distingue dos demais povos. A competição é aberta a todos os jovens primogênitos dos clãs. – Ele falou, abrindo os braços como se incluísse as pessoas das arquibancadas em sua declaração. - Se há parte do sangue franco correndo pelas veias de Guilhem de Craon, então, ninguém tem o direito de se opor. Assim diz a Lei!

Embora débil, um murmúrio de concordância se fez ouvir entre os presentes – o que fez extinguir o sorriso da rainha.

Os jovens competidores se posicionaram. Diante deles, havia símbolos pregados em estacas, indicando os caminhos a serem seguidos; também havia diversos obstáculos de madeira. Ao lado de Guilhem, alguém resmungou que não entendia o que eles significavam.

O príncipe sorriu, antecipando a vitória – aqueles símbolos faziam parte da prova de inteligência. Pascal havia lhe contado que poucos competidores sabiam sobre eles, e que a maioria das etapas ocorria de maneira simultânea, e não sucessiva.

Ele se inclinou, concentrando-se... De repente, recebeu uma cotovelada que retribuiu com a mesma força, antes mesmo de ver quem tinha ousado tal ato. Virando a cabeça para o lado, lançou a Anicet um olhar perigoso. Por um segundo, o outro garoto estremeceu, mas não se deu por vencido.

-Vou acabar com vossa empáfia, bastardo saxão! – O campeão do torneio avisou.

Da arquibancada, Isidoro observava a cena. Sua máscara de indiferença não traía a preocupação e expectativa com que acompanhava o torneio dos jovens. Nem que Pierre tivesse planejado aquilo, poderia ter sido tão estratégico, tão perfeito. Cofiando seu bigode, ele se perguntou se Guilhem tivera, sozinho, a brilhante ideia de participar do campeonato, ou se ele fora instruído por alguém... Nesse caso, quem teria sido a mente por trás dos passos do garoto?

-Está cuidando bem daquelas terras, Saint-Martin? - ele ouviu a voz irritante da Allan de La Chapelle interromper os seus pensamentos. Virou-se e deu de cara com aquele estranho olhar que não conseguia sustentar por muito tempo. Naturalmente, não fingiu não ter entendido a que terras Chapelle estava se referindo.

-Estou, sim... – respondeu, com voz aveludada. - Como jamais um Chapelle cuidou.

O outro sorriu com frieza.

- Fico feliz. Cuidastes delas para mim.

Mas que audácia! Antes que pudesse replicar, as cornetas soaram e a prova teve início.

Joana e o pai concentraram-se no rapaz alto e atlético que se projetava pela pista, seguido de perto por uma massa de garotos enfurecidos.

-Ele tem as pernas compridas, vai conseguir. – Joana sussurrou para o pai. Ela sentiu uma pontada de inveja, porque também gostaria de estar competindo. Infelizmente - como tudo de bom na vida, a prova não estava aberta às mulheres. – Joana fez uma careta de raiva.

***

Guilhem não teve dificuldade em deixar seus oponentes para trás. Ele saltava os obstáculos, esgueirava-se por entre as estacas pontiagudas, escalava os muros de madeira - cheios de armadilhas por entre as toras enganadoramente empilhadas... De repente, o príncipe escutou um "Ai" de alguém que havia se espetado nelas, alguns metros atrás.

O príncipe não olhou para conferir, e continuou correndo até que se deparou com uma parede alta e lisa, feita de madeira grossa. Ele percebeu que não havia pontos de apoio, ao contrário do muro anterior. Então, escalou as paredes agarrando-se pelas laterais rugosas, usando a força dos braços, então saltou para o outro lado. Na arena, a multidão aplaudia empolgada.

Sem notar as mãos sangrando, Guilhem seguiu os símbolos pendurados ao longo do caminho pré-estabelecido, os quais indicavam tanto a direção certa, quanto a errada. Era preciso saber ler os signos. E graças a Pascal, Guilhem sabia.

Quando deu por si, estava do lado de fora da arena, perto dos cavalos, que esperavam seus respectivos donos para iniciar a etapa da cavalgada. Crin Bleu se destacava dos demais, não só pelo porte imponente, mas pelas fitas azuis caprichosamente trançadas em sua crina. Obra de Avraed, deduziu o príncipe. A trança era a maneira como os cavalos saxões costumavam ser enfeitados para os desfiles, ou para as batalhas. Um tapa na cara dos nobres francos...

Guilhelm saltou agilmente sobre o lombo de Crin Bleu, partindo em disparada na direção do bosque. Estreitando os olhos argutos, vasculhou o ambiente em busca dos símbolos que indicavam a continuação do caminho. Ele não sabia exatamente o que deveria procurar, mas quando percebeu que o último símbolo estava à beira do lago, freou o cavalo, confuso. O que fazer?

Então, ele entendeu. Desmontou e mergulhou nas águas geladas do lago. Ele não tinha ideia do que buscava, nem onde deveria começar; mas seguiu seu instinto, mergulhando e nadando, até que, bem mais adiante, avistou um pequeno baú enterrado no fundo. Ele conseguiu emergir a tempo de ver alguns dos outros competidores perdidos na praia, olhando para os lados e tentando descobrir o que deveriam procurar. Arnaud e Anicet estavam entre eles.

-Lá está o bastardo! – Anicet gritou. - Vamos nos unir e roubar o baú dele.

Arnaud encarou Anicet com desagrado. Mal sabiam eles que, entre as árvores, os anciões das tribos observavam todas as suas atitudes. Mas Guilhem também não sabia disso. Simplesmente cruzou o lago na direção da margem oposta, abriu o baú, e tirou de dentro um penacho idêntico ao de Martel. Deixou a caixa na margem e nadou como louco para o outro lado, enquanto os garotos contornavam toda praia para alcançá-lo.

-Olhem!

-Ele está fugindo!

-Vamos!

Mas Guilhem já tinha alcançado a margem... Ele assobiou para Crin Bleu, que passou pelos garotos como um furacão, derrubando Anicet dentro d'água. O animal deixou para trás uma nuvem de poeira, com garotos tossindo e tentando tirar os grãos de areio dos olhos e da boca.

-Maldito cavalo! – gritou Anicet, tentando sair da água.

Guilhem saltou sobre o lombo de Crin Bleu, atrapalhando-se um pouco com as roupas encharcadas. Mas, enfim, conseguiu dominar as rédeas e manobrar de volta à arena. Os outros subiram em seus respectivos cavalos e seguiram nos calcanhares do príncipe.

Como um foguete, Guilhem cruzou a linha de chegada. Ele então apeou, liberando Crin Bleu para os cuidados de Avraed. Mas foi aí que o jovem se deparou com uma parte fechada, por onde não havia como passar a fim de alcançar as arquibancadas. Por que os sinais indicavam aquela área, se era um beco sem saída? Ele retornou para entrar por onde tinha vindo e deparou-se com os cavalos dos oponentes, vindo a toda velocidade. Para evitar ser pisoteado, Guilhem jogou-se ao chão, rolou, e depois, saltou, correndo pelo outro lado.

Arnaud respirou, aliviado, ao vê-lo passar ileso por baixo do corpanzil de seu garanhão. Sua aparição fora tão rápida que ele não teve tempo de se desviar. Assim, deu meia-volta e seguiu no encalço de Guilhem, acompanhado de perto pelos outros rapazes (e, claro, de Anicet, que vinha mais atrás, atrapalhado com suas roupas encharcadas e escorregadias).

Com a terra grudada na roupa, no rosto, e nos cabelos, Guilhem adentrou a arena e foi recebido com expressão de surpresa, por grande parte dos espectadores.

-Chiqueiro! - Zenóbia riu para a irmã. - Eu não disse?

Então os outros garotos saltaram de suas montarias e o alcançaram.

A arena era simultaneamente o início e o fim da competição. O espaço estava reservado para a etapa da luta. Segundo a tradição, um dos jovens ainda tinha uma chance de reaver o penacho – mas teria que arrancá-lo de Guilhem e vencer os demais. Este, por sua vez, teria que se defender, mantendo a posse do penacho. E foi o que fez, repleto da fúria que empregava quando queria se vingar dos criados, ou dos nobres que debochavam dele por ser um bastardo.

Guilhem se transformou numa verdadeira fera, canalizando para a luta a raiva que sentia do pai ausente; da mãe, que o abandonou; dos francos que o chamavam de bastardo-meio-saxão. Todos eles contribuíram para que vivesse como um mendigo, sob os desmandos da rainha – expondo sua condição humilhante diante de toda a corte.

Agora era a sua vez!

Então ele derrubou um, socou outro, jogou Arnaud de encontro à arquibancada, arrancando murmúrios assombrados de espanto e admiração por parte da plateia.

Ele continuou lutando até que alguém acertou sua nuca. Guilhem tonteou, sem saber que Anicet tinha um anel disfarçado, o qual usou como soqueira. Martel, o velho líder tribal que arbitrava a competição, percebeu o que estava acontecendo. Ele fez menção de intervir, mas o outro líder de clã – um aliado da rainha - interferiu na questão.

-Vós deveis dar uma chance ao príncipe. – Foi o argumento persuasivo. - A prova é vencida sem auxílio externo.

-E quando o auxílio externo é a perfídia sob a forma de um anel? – Apesar da indagação de Martel, e do silêncio constrangido do outro, os dois mantiveram-se imóveis como num acordo tácito.

Martel esperava que a vitória de Guilhem fosse completa. Todos os líderes de clã viram o ato covarde de Anicet; inclusive o pai do rapaz, que demonstrava decepção em suas feições fortes e orgulhosas.

De repente, Guilhem caiu no chão, soltando o penacho. O Grão-duque dos Grão-duques prendeu a respiração de forma imperceptível. Anicet pegou o penacho e afastou-se, triunfante. O príncipe olhou ao redor e fixou-se no rosto enfurecido de Joana. Ela gritava alguma coisa, que a custo ele entendeu. Isidoro não conseguiu contê-la, nem quis. Mesmo sob o olhar sombrio da rainha, deixou que a filha falasse.

-Levantais-vos! Vós sois filho de vosso pai. Franco ou saxão, Nenhum dos dois povos se entrega a uma derrota... Levantais-vos!

Não lutei tanto para perder agora. Sim, Joana, eu vou me levantar porque sou filho do meu pai – o rei! E foi o que ele fez... Ignorando a tontura, e a dor pulsante na parte de trás da cabeça, Guilhem de Craon levantou-se com força sobre-humana e saltou nas costas de Anicet.

Os dois rolaram pela areia quente do sol a pino, disputando a posse do penacho. Quando Guilhem imobilizou o seu rival no chão, arrancou o anel traiçoeiro de seu dedo - quase arrancando o dedo junto - e o levantou bem alto a fim de que todos vissem a prova da sordidez de Anicet.

Ouviu-se uma exclamação geral do público que dispensou quaisquer explicações.

Anicet tentou se desvencilhar, mas Guilhem deu-lhe um cruzado de direita que o nocauteou. O príncipe tomou fôlego, pegou o penacho sujo de areia e sangue, então se levantou. Fez uma pausa para recuperar o fôlego, enquanto observava os outros oponentes, que também se erguiam vagarosamente.

Arnaud já estava de pé há muito tempo, mas não tomou a iniciativa de tentar um combate com Guilhem. Ele apenas assistia – braços cruzados sobre o peito - como se reconhecesse a primazia do príncipe ao derrotar sozinho um grupo inteiro de oponentes.

Guilhem reconheceu a intenção de Arnaud com um aceno rápido de cabeça, antes de se virar para o pórtico, onde estava o velho chefe tribal. Evitando mancar, o rapaz caminhou até o Grão-duque dos Grão-duques, que segurava o outro penacho. Ele parou a alguns metros, e inesperadamente apontou para a mão do patriarca.

-Eu quero o vosso penacho.

O povo riu, diante da audácia do garoto. O velho ergueu as sobrancelhas.

-Muitos já tentaram, meu jovem. – Foi tudo o que disse, perigosamente calmo.

-O vosso mérito em conquistá-lo é o que desejo para mim, não o objeto em si. Desejo pautar-me em vosso exemplo para trilhar meu próprio caminho. Se vós me déreis vosso penacho, prometo honrar os nomes de todos os clãs que vós, Grão-duque dos Grão-duques, protegeis e orientais.

O silêncio expectante tornou-se sepulcral, nas arquibancadas. As pessoas aguardavam o desfecho, sem prognósticos ou palpites – já que ninguém entendia o que ele estava fazendo. Mas o chefe tribal, como árbitro do evento, soube que Guilhem realmente tinha compreendido a prova do penacho.

Era a principal etapa de toda a competição e nunca apresentava o mesmo objetivo e o mesmo resultado ao longo dos anos. A cada ano, o penacho representava uma questão crucial no império que deveria ser elucidada e devidamente respondida pelo candidato. A postura do velho, porém, era sempre a mesma; como a esfinge que questiona os viajores desejosos de atravessarem o território sagrado e se apoderarem dos tesouros dos reis...

Decifra-me ou devoro-te.

Guilhem decifrara a "esfinge" da competição; o que ficou esclarecido quando Martel se manifestou:

-Sois o campeão da prova final: a de inteligência... Respeito ao ancião de um clã é o ato mais digno de um futuro rei.

Hilda ergueu-se encolerizada. Ela entendeu direito, ou o chefe do Conselho dos Grão-duques estava apoiando o filho bastardo de seu marido como herdeiro do trono? Ciente de que todos os olhos estavam sobre ela, procurou conservar a máscara fria pregada ao rosto.

Ela sentiu a bile subir à garganta, diante da prova flagrante de que o odiado rapaz tornara-se o herói jovem dos clãs, na competição daquele ano. Deu-se conta de que estava em jogo muito mais do que apenas escolher um ganhador para o torneio - a coroa estava sendo decidida naquela arena!

Enquanto isso, o velho Grão-duque estendia o penacho à Guilhem.

Com o porte naturalmente nobre e orgulhoso, e apesar de estar todo sujo de lama e areia, ele atravessou a arena, em direção à arquibancada, levando os dois penachos para a rainha. Os presentes o encaravam, estarrecidos (menos Chapelle, que parecia estar alheio aos dramas das pessoas ao seu redor).

Hilda teve que aceitar os penachos, amarrar as pontas, e devolvê-los ao jovem campeão. O povo gritou:

-Viva o príncipe do povo!

Isidoro cuidou para não sorrir. Seus planos não poderiam estar se desenvolvendo de melhor maneira. Joana exultava ao seu lado, dando pulinhos. O pai obrigou-se a lançar um olhar de advertência para a filha se conter. Joana reagiu com o costumeiro beicinho.

O chefe tribal proclamou:

-Guilhem de Craon é o jovem herói de todos os clãs.

Arnaud sorriu para ele e bateu continência, como quem diz: "Até breve". Então, deu meia volta e saiu da arena para se juntar ao pai.

Craon estava eufórico, como nunca estivera antes... Sentia-se sem fôlego, e ao mesmo tempo, eufórico; com tanta energia acumulada quanto uma mola comprimida prestes a ser liberada. Ele sabia que era apenas o começo. Estava trilhando um caminho sem volta para o topo; e que novos desafios, muito mais difíceis, sutis, e complexos, iriam surgir à sua frente. Ele sabia, também, que nessa tarde havia conquistado novos inimigos. Além da promessa de revanche por parte de sua detestável madrasta.

Mas, antes, ele iria saborear o gosto da vitória.

###

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro