À ferro e fogo
Ele acordou banhado em suor... Outra vez, aquele sonho tenebroso, em que era perseguido por uma criatura escura e etérea... Ela queria se apossar de seu corpo, destruir sua alma, abocanhar o seu mundo. Não havia precedentes nas antigas tradições, as quais ele estudara obsessivamente. Não havia descrição satisfatória o bastante para definir aquela entidade, a não ser como uma espécie de larva fantasmagórica, a se introduzir no organismo lenta e inexoravelmente.
Durante toda a infância ele fora perseguido por aquele mesmo sonho. A ponto de temer o cair da noite... Os pais não entendiam o que acontecia com o garoto, achavam que o demônio o buscava todas as noites. E temendo pelo pior, chamaram um representante da Igreja. O padre passou a noite na casa, e quando o mesmo terror de todas as noites irrompeu com os berros do menino, ele o exorcizou. Seu pequeno corpo foi queimado, atirado em água gelada, embebido em substâncias mal cheirosas, e chicoteado ao som da ladainha em latim.
Pronto, agora ele estava completamente livre do demônio... Ledo engano. O garoto apenas aprendeu uma coisa naquela noite em que foi humilhado, torturado e espancado... Esconder seu martírio. De modo que passou a dormir com uma mordaça na boca.
Mas, com a chegada da fase adulta, os episódios cessaram subitamente. Ele julgou ter se livrado para sempre da sensação de horror que sempre antecedia o seu despertar, todas as manhãs... No entanto, vinte anos depois, a criatura onírica reaparecia para assombrá-lo, e tirar a sua paz de espírito. Se é que, algum dia, ele teve paz.
-Logo derrubarei o muro de Amon. Aguarda-me... - a voz lhe sussurrou ao ouvido, no momento em que sua mente lutava para emergir da semiconsciência. Ele não sabia o significado do aviso, porém, ficou mais e mais agitado com o avançar das horas.
Não é por causa do sonho, que me encontro assim, tentou racionalizar, enquanto sorvia uma taça cheia de vinho. Ele tinha dispensado o camareiro, pois queria desfrutar dos raros momentos de solidão. Infelizmente, a solidão na corte era impresumível. As intrigas, as espionagens, os complôs requeriam constante vigilância. Um nobre poderia obter tudo ou perder tudo; sobreviver ou ser condenado à morte pela simples imprudência de não vigiar seus inimigos de perto, por escolher as alianças erradas... Enquanto sorvia a bebida, esperando anestesiar os resquícios do pesadelo, ele olhou de esguelha para a cama, com medo de adormecer.
- Água seria mais saudável do que esse veneno, meu lorde!
O susto fez com que o Grão-duque Alan de La Chapelle – recentemente assim intitulado pela rainha – engasgasse e derrubasse a taça. Tudo a um só tempo. Ele se virou abruptamente para se deparar com uma figura estranha, envolta em manto e turbante.
- Quem és tu? Como entraste aqui? – Alan olhou ao redor, procurando pela espada.
Percebendo-lhe o gesto, o homem curvou-se em atitude subserviente; então, disse:
- Sou Deared, a vosso serviço, meu lorde.
-A meu serviço? Conversa! – Alan pegou a espada, empunhou-a, e avançou na direção do homem (que nem se mexeu).
- O sonho que vos aflige, meu lorde, é o menor de vossos problemas. Na verdade, é a solução para eles! – novamente ele se inclinou, com humildade. – Trata-se do vosso destino...
Alan estacou com a espada a centímetros de sua cabeça.
-Como sabes do sonho?
-Ah, meu lorde... – Deared sorriu, discretamente. - Eu sei muitas coisas. Sei, por exemplo, que perdestes fortuna... Vossos aliados não podem saber disso, do contrário, tornar-se-ão vossos inimigos... A rainha começa a desconfiar de vós. Ela tem espiões por toda parte; não demora a desvendar a vossa condição. Se vós pretendeis vos apoderar dos bens de vosso maior inimigo, precisais vos mostrar confiável e poderoso aos olhos da soberana. – Ele fez uma pausa de efeito. - Eu sei como podeis reaver vossa fortuna, meu lorde. Estou aqui para ajudar-vos.
-Por quê? – demandou Alan, sem tirar os olhos do estrangeiro.
- Já disse, meu lorde. É o vosso destino... E o meu.
***
Assim foi feito. Alan jamais soube explicar a poderosa força que o compeliu a aceitar o auxílio do estrangeiro... Deared lhe dava nos nervos! No entanto, as palavras dele encontraram o caminho para sua maior fraqueza de caráter: a cobiça. Assim, Alan foi persuadido.
De sua "vida em morte" no sepulcro infernal, em Tebas, Anoremheb antegozava as delícias de voltar a possuir um corpo. Ele já tivera sucesso em animar cadáveres humanos e de animais, mas sua permanência no mundo físico não durava muito tempo. Agora, porém, os arranjos foram feitos; e os conhecimentos necessários para sua entrada definitiva no mundo físico, finalmente obtidos pelos seus adoradores. Deared, o atual arauto do culto que lhe era dedicado há milênios, encarregara-se de tudo. Os necromantes elaboraram o mapa astrológico, localizaram as condições mediúnicas e analisaram o estado de energia mental do escolhido que trocaria de posição com Anoremheb, na parede do templo de Tebas. E o motivo da escolha se devia à rixa entre as duas Casas – a dos Saint-Martin e dos Chapelle.
***
O Grão-duque Isidoro du Saint-Martin não era de origem puramente franca. Em suas veias, corria boa parte do sangue lombardo, graças à linhagem materna. No entanto, a casa Saint-Martin não só fazia parte da família real há várias gerações, como também era o suporte político das decisões de quem estivesse no trono. Tal aliança se consolidou quando Isidoro e Pierre uniram forças para traçar a ascensão do império franco.
Assim como os de Craon, a reputação e o poder dos Saint-Martin se estendiam a todos os clãs francos; mesmo entre os inimigos declarados, como os Chapelle. No entanto, a indignidade de um Chapelle arrastou ambas as casas a uma sequência de assassinatos e traições; o que culminou na interferência direta do rei Pierre (em favor dos Saint-Martin, seus aliados, naturalmente).
Na atualidade, a vendetta entre as famílias foi deixada de lado em favor da necessidade de todos os clãs em se unirem e apoiarem a bem-sucedida expansão territorial do império franco. Mas, daí, concluir que haveria paz entre os Chapelle e os Saint-Martin? Isso seria um erro de julgamento, dos mais graves.
Com a titulação de Isidoro – de duque para Grão-duque - ocorreram constantes favorecimentos por parte da Coroa, no que diz respeito à anexação de terras às já conquistadas pelos primeiros Saint-Martin. O território onde fica o Castelo de Marselha, pertencera anteriormente aos Chapelle. Foi tomado e, então, legalmente cedido por Pierre aos Saint-Martin, como compensação pelo assassínio de membros da família, por parte dos Chapelle. Consequentemente, a contenda agravou-se e disputa violenta desencadeou-se entre ambas as casas, incitando Alan, o último descendente varão, a tramar contra a Coroa. Ou melhor, contra o rei que concede favores ao seu inimigo. Ele precisava igualar-se em poder, já que as opiniões de Saint Martin eram determinantes nas decisões da Coroa.
Dizia-se, na corte, que Isidoro era voz, olhos e ouvidos do rei.
***
Saint-Martin estabeleceu a sede de seu grão-ducado em Marselha - na bela e exótica costa do Mediterrâneo. A região que abrigava o Castelo era famosa pelas atividades portuárias. No entanto, Isidoro reconhecia a fragilidade do poder do império naquelas paragens... Usuais redutos de piratas; e rotas comerciais das tribos ciganas. Alguns monges historiadores dos antigos mosteiros, situados na costa, creditavam a popularidade do tarô de Marselha aos ciganos. Possivelmente, versão adivinhatória, inspirada no tarô egípcio, que foi um dos poucos documentos que sobreviveram ao incêndio da biblioteca de Alexandria.
Marselha era efervescente. As miscigenações étnicas, culturais, e intelectuais aconteciam, em grande parte, por conta das trocas comerciais desenvolvidas entre os diferentes povos – fossem de passagem, ou nativos à beira mar. Costeando o litoral e as ilhas, os viajores encontrariam bizantinos, gregos, cipriotas, romanos, lombardos, e francos; mas, também, encontrariam mouros, hispânicos, e tunisianos. Essa aglutinação de costumes espalhava-se ao longo do litoral, apesar ou por causa do parco controle exercido pelo exército nas fronteiras terrestres do império franco.
Os modos de vida liberais da costa – negligenciada pelo império – floresceram relativamente à parte do rigor da Igreja. Assim, em meio a tal contexto, aos treze dias do mês de agosto de 957, ano de Nosso Senhor, nascia Joana du Saint-Martin. Uma das mulheres que faria história por mudar a história.
***
Isidoro casou-se com Geneviève Gascony. Os Gascony eram nobres e numerosos, embora historicamente obscuros. Dessa união, nasceram cinco filhos: Camus, o primogênito; Isabel, a recém casada; Henri, o intrépido cavaleiro; Antoinete, a musical; e Joana, a caçula selvagem.
Joana não costumava se aventurar além das cercanias do castelo, ao menos até os nove anos. Em sua primeira fuga bem-sucedida, ela conheceu o porto, e ficou fascinada por todo aquele movimento entre os marujos: o cheiro dos peixes sendo carregado nas cestas; o grito dos capitães e feitores; o içar e baixar de velas... Ela acabou adotando o costume de escapulir para lá com o auxílio dos filhos dos criados – seus amiguinhos de peripécias. Juntos, eles brincavam na praia; especialmente dentro das grutas que por lá existiam.
Depois dos 13, a liberdade da garota passou a ser tolhida na mesma proporção que a ânsia de aventuras crescia. Quanto mais tentavam impedi-la de vivê-las, mais ela desejava experimentá-las. Uma guerra de vontades se estabeleceu no seio da família, e os passos da rebelde Joana começaram ser vigiados de perto por sua mãe.
***
No entender de Isidoro, ele tinha duas missões a serem executadas quando chegasse à Paris, que não interferiam uma na outra. Primeiro, atender às recentes ordens de Pierre, contidas no decreto endereçado ao chefe do conselho tribal (Conselho dos Grão-duques e duques), com cópia a ser despachada para o Marquês de Robitaille, na Baviera. O teor do documento se referia à segurança e o destino de Guilhem de Craon.
Segundo, encontrar um marido para a filha mais nova, que chegara à idade cronológica propícia ao casamento. Afinal, as outras duas filhas já tinham se casado, e uma delas estava até grávida. Acontecia de o Marquês de Robitaille ter um filho também em idade de se casar... Daí, a ocasião perfeita para tratar dos dois assuntos, concomitantemente.
Mas o comportamento da filha caçula tornava-se mais e mais preocupante. Em sua opinião, a Grã-duquesa falhara em seu papel de mãe e educadora, pois não conseguira domesticar a filha geniosa. Isidoro frequentemente encarava a esposa com reprovação, nas vezes sem fim em que a filha irrompia suja, rasgada, e descabelada, pelo grande salão do castelo, diante dos convidados do pai. Joana adorava balançar-se nas cordas das cortinas – não interessando a ela se havia plateia, ou não.
A garota perdera as contas das vezes em que fora castigada. Durante horas intermináveis, ela ficava ajoelhada sobre o chão duro e frio da capela, orando a Deus que perdoasse seus pecados; isso antes ou depois das surras de cinta, de vara, ou das mãos nuas de Isidoro.
Mas ela aprendeu... Aprendeu a enganar os pais, a fingir obediência e até a acreditar que poderia conduzir os seus interesses sem a interferência deles, desde que soubesse apertar os botões certos. Isto é, dizer o que eles queriam ouvir; fazer o que queriam que fizesse; estar no lugar em que queriam que estivesse (apenas quando estavam olhando).
Quando a madrugada cedia lugar ao amanhecer, a floresta e seus mistérios tornavam-se o seu grande playground. Local por excelência, onde ela brincava de general, pirata, cavaleiro, ou conquistador... Onde travava grandes batalhas com a ajuda de cipós, galhos secos, e a participação involuntária, eventual, dos animais da floresta. Eles eram seus cúmplices e sua plateia.
Claro que ela não machucava os bichinhos. Pelo contrário, aprendera a ouvir os seus apelos, a compreender a linguagem que utilizavam para sobreviver na natureza; e a extrair, como eles, o alimento.
De dia, ela se escondia na torre do castelo para assistir ao treinamento dos cavaleiros e dos escudeiros; e de madrugava, fazia seus próprios exercícios na floresta. Por causa disso, muitas vezes começava o dia sentindo-se exausta – de tal sorte que, ao cair da noite, não conseguia formular uma prece inteira antes de adormecer.
Ela apenas perguntava em suas preces: "Por quê?" Por que Deus não tinha permitido que ela nascesse homem? Assim, seria livre para ir aonde quisesse. Joana não compreendia, em sua ingenuidade infantil, que os homens não eram tão livres quanto ela julgava. Eles precisavam casar cedo e procriar uma vasta prole para provar sua virilidade. Precisavam meter-se em batalhas, contendas, brigas, e disputas, para demonstrar que nada temiam e que eram capazes de proteger suas famílias.
Não se tratava de escolha: permanecer solteiro e percorrer o mundo sem ter um lugar para retorno. Se assim fosse, mesmo um homem seria tratado como paria. Todo homem precisava pertencer à família. A Lei dos francos sálicos era contundente, quanto a isto.
Contudo, o que mais Joana desejava no mundo era se tornar um paria.
***
Então veio a notícia da súbita viagem ao palácio, envolvendo toda a família. Joana logo ficou sabendo das intenções do pai em casá-la com o primeiro nobre disponível. O seu pretendente podia ser, segundo a língua maldosa de Antoinette, tanto o filho eternamente doente de Lvernel, da Baviera, quanto o estuprador de camareiras, filho do Marquês de Robitaille.
Joana ficou escandalizada com a possibilidade de ver seu destino ligado a uma daquelas criaturas. Casamentos entre desconhecidos eram comuns, mas Joana não conseguia aceitar nem a ideia do casamento em si – quem dirá que fosse celebrado com um estranho nojento. As criadas de sua idade começaram a enchê-la com suas histórias terríveis... Sobre a primeira noite de uma virgem - o sangramento, a dor, e os repugnantes desejos de um marido babão... Joana ficou tão angustiada, que começou a cogitar a possibilidade de fugir.
Mas fugir pra onde? Ela era só uma garota, e uma garota não conseguiria ir longe sozinha, sem se expor aos perigos das estradas e das cidades. Havia vilões em cada esquina, prontos a desonrar uma mulher. Os estupros eram muito frequentes, e as famílias precisavam criar todo um controle sobre a prole do sexo feminino para manter seu nome intacto. A desonra da mulher era desonra para a família inteira – de forma permanente.
Em seu desespero, Joana se lembrou das grutas na praia, numa das quais ela encontrou algumas pedras que continham símbolos estranhos. Ela sempre se escondia lá, quando queria um pouco de sossego. Os ciganos diziam que a gruta não era gruta. Eram as ruínas de um templo semidestruído por causa de um terremoto. Nele, costumavam acontecer os rituais dos adoradores de Anoremheb; teria sido erigido na antiguidade por uma expedição egípcia que fugiu da longínqua África a fim de esconder um tesouro fabuloso. Mas não havia tesouros ali, a não ser um altar, a figura de um deus estranho e algumas pedras pequenas que alguns chamavam de runas (mas eram muito mais antigas, e indecifráveis). Joana havia pegado três delas para si – como amuleto da sorte. Ela sempre as carregava consigo, num saquinho de veludo vermelho.
De repente, ideias começaram a pipocar em sua mente cheia de imaginação. Talvez, se ela se vestisse como rapaz e partisse sem rumo, a cavalo... Um jovem escudeiro em busca de um cavaleiro que o treinasse...
Não, não daria certo. Pelo simples fato de que seu corpo tinha criado formas incontestavelmente femininas. Mesmo que cortasse os longos cabelos loiros, ela não teria como esconder o volume dos seios, a cintura fina, e o contorno acentuado dos quadris. Nessas horas é que ela invejava algumas meninas da criadagem, que continuavam retas como tábuas, mesmo aos 13 anos de idade.
Deprimida, reconheceu que seu destino estava selado.
***
A organização das bagagens foi supervisionada com eficiência, por Geneviève. Em menos de uma semana, findos os negócios do esposo junto aos seus vassalos, eles empreenderam a longa marcha em direção ao palácio de Paris.
À altura de Gouloux de Morvan, Joana sentiu a preocupação do pai; algo que ela não conseguia compreender. A postura irrequieta de Isidoro parecia contagiar toda a tropa. Com o canto dos olhos, ela notava o movimento incessante dos soldados que compunham a escolta da família. Eles olhavam atentamente para todos os lados da estrada e, quando esta foi engolida pela floresta silenciosa, eles pareceram ficar mais nervosos; o que era um comportamento nada comum entre os homens do pai.
O fato era que ela sentia o pai mais ríspido do que o habitual - implacável nas críticas à esposa, em cada contratempo que surgia envolvendo os filhos ou a criadagem. Ele demorou a permitir que o grupo parasse para descanso e alimentação. Nem o primogênito, que já era um homem acostumado à equitação, estava preparado para uma marcha tão forçada.
Joana começou a se perguntar o que o pai tanto temia... Ela não podia imaginar que o Grão-duque Isidoro tinha ordens a cumprir com urgência. A linhagem de seu soberano, a quem servia com lealdade, poderia estar irremediavelmente ameaçada, se ele falhasse.
Isidoro só começou a relaxar quando a floresta ficou para trás, e Orleães estava logo a frente. O que indicava que não demorariam muito a alcançar Paris. Ao cair da noite, pernoitaram numa estalagem.
***
O comboio chegou a Paris na tarde do quinto dia de viagem.
Dentro da carroça, coberta por uma tenda de pele para proteger as mulheres do sol, Joana espiava a rua repleta de mercadores, compradores, e transeuntes. Diversas barracas abarrotadas de vegetais, frutas, peixes, carnes, e outras mercadorias, amontoavam-se pelo caminho, em alguns trechos da rua, dificultando a passagem da caravana.
Nada disso, porém, causou-lhe espanto. Marselha também guardava peculiar dinamismo em seus píeres. O que chamou a atenção de Joana foi o tamanho da cidade, que se subdividia em largos quarteirões, repletos de ruelas. Paris parecia um labirinto a perder de vista.
A ratoeira do rei - pensou, divertida.
Logo deixaram a parte movimentada e seguiram em direção ao palácio – uma construção grande, imponente, e que se tornaria símbolo do poder, nos séculos vindouros. Mas, por enquanto, para Joana, era apenas uma mansão de pedra, fria e assustadora.
Enquanto subiam a pequena ladeira que separava a rua lamacenta da propriedade, Joana avistou crianças de sua idade brincando com uma bola de pano que faziam rolar pela lama. Sua mãe a puxou pelo braço, como se previsse a filha saltando impulsivamente da carroça para se juntar à brincadeira imunda.
-São plebeus! – Ela explicou. - Não podes te misturar a eles.
Joana encarou a mãe com olhos penetrantes. E como sempre acontecia, Geneviève desviou rosto. A filha a desconsertava, pois seus pensamentos geralmente eram cristalinos. Mesmo assim, Joana os expressou em voz alta:
-Como se eu já não me misturasse o suficiente... – disse, num tom desdenhoso.
Geneviève torceu os lábios, mas se manteve calada. Não desejava atiçar uma discussão inútil em frente aos estranhos.
-Ainda bem que logo papai vai dar um jeito para que ela se case – Isabel tocou a barriga volumosa, distraída.
Joana observou o gesto com desprezo. Como se tudo o que uma mulher pudesse esperar da vida fosse casar e gerar bebês, tal qual uma vaca leiteira.
-Veremos - sussurrou.
A mãe lhe deu um safanão.
-Comporta-te, Joana! Tu estás na corte. Se teu pai for bem sucedido, tu irás debutar e conseguirás um bom contrato de casamento. Na corte será mais fácil, porque dificilmente alguém saberá da fama de encrenqueira, que deixaste em Marselha.
Joana pretendia responder, mas a carroça parou de repente e o pano foi levantado. Era seu pai quem estendia a mão para que ela saltasse, e logo em seguida, a mãe e as irmãs. Os maridos de suas irmãs vinham a cavalo, pelo outro lado.
Joana aproveitou para se afastar um pouco e olhar ao redor.
Aquela área parecia uma entrada alternativa para os criados do palácio, pois a estrebaria ficava perto. Alguns deles, carregando fardos de um lado a outro, olhavam-nos ocasionalmente, sem muita curiosidade. Pareceu à Joana que a família Saint-Martin não era esperada.
Ela caminhou em direção ao antigo muro de pedra, que escondia parcialmente a visão da rua. De repente, sentiu algo úmido e mole bater suavemente contra a sua barriga. A princípio, não compreendeu o que poderia ser. Girou nos calcanhares, até que escutou uma risadinha. Viu um garoto grandalhão, sentado sobre o muro. Ele tinha as mãos sujas de barro... Aliás, a sua figura toda parecia a de um indigente enlameado... Apenas uma fenda no rosto, por onde se viam dentes muito brancos e fortes, indicavam que o rapaz estava se divertindo por trás daquela máscara de sujeira.
Até que ele tinha o seu charme... Seus olhos eram provocadores e vivazes; e o seu sorriso, definitivamente, encantador.
Ele continuava olhando fixamente para ela, o que a despertou de seu devaneio. Foi quando entendeu que o garoto tinha lhe atirado uma bola de lama, a qual emporcalhou todo o seu vestido outrora branco.
Uma raiva surda se formou nas entranhas de Joana. Além de tê-la feito de boba, por causa dele, teria de ouvir um tremendo sermão da mãe em relação ao estrago em sua roupa nova. Isso não era justo! Ela conseguira cuidar com tanto zelo para não sujar o maldito vestido até que fosse apresentada à rainha... Maldição!
Movida por essa raiva, a garota agarrou um monte de lama. Já não se importava em se sujar um pouco mais, portanto... Sentiu a lama penetrar nas unhas antes de estender o braço para trás e atirar com pontaria certeira - bem na cara do rapazote.
O sorriso dele foi substituído pela incredulidade e depois, pela raiva. Ele saltou com agilidade do muro e veio em sua direção. Ao invés de sentir medo, Joana pode perceber a adrenalina endurecer seus músculos, como se estivesse preparando-a para o combate, ou para a fuga. Mas ela não se mexeu. Para o garoto era óbvio que ela tinha optado pelo combate.
Louca! – presumiu. - Que menina, em sã consciência, peitaria um rapaz do seu tamanho, ainda mais o filho bastardo do rei? Todos sabiam de sua fama de endiabrado. Mas, pelo visto, a garota não sabia ou não queria saber.
Ele se inclinou o suficiente para que seus olhos ficassem muito próximos e suas respirações tocassem a face um do outro. Mas Joana não cedeu um centímetro. Ficou imóvel, os punhos cerrados, só esperando... Ele percebeu que ela estava prestes a lhe acertar um soco. Então, inesperadamente, ele sorriu.
-Um a um.
Ela piscou, sem compreender, enquanto o rapaz lhe dava as costas, começando a se afastar.
-O que queres dizer?
Ele continuou andando, mas respondeu por cima do ombro:
-Empate.
De repente, ele sentiu o impacto de algo mole batendo em suas costas.
-Dois a um – foi a resposta dela.
Ele se virou como um furacão, mas antevendo que ele viria ao seu encalço, Joana praticamente voou pela pequena alameda em direção à carroça, onde os guardas do pai retiravam toda a bagagem. O garoto parou alguns metros mais atrás, observando.
-Joana! - gritou a mãe, puxando-a pela orelha. - Aonde tu estavas? Olha teu estado!
O garoto se escondeu atrás do muro de pedra e voltou a sorrir.
-Joana... – sussurrou Guilhem de Craon, saboreando o som do nome.
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