♪ três
♫ Parte 3: pré-refrão
Sentada na cadeira da escrivaninha, apoio o violão entre as pernas e me debruço no tampo marrom para ler as novas correções no papel. Meu olhar trava por um instante assim que alcança a figura cinzenta no reflexo do espelhinho de maquiagem esquecido ali.
— Você devia parar de aparecer assim em quartos alheios — acuso ao me virar para ele.
— Força do hábito — balança os ombros antes de se jogar na minha cama e mal consigo rir da situação maluca em que estou metida.
Dois dias se passaram desde que encontrei um fantasma na biblioteca e estou sendo seguida por ele para todos os cantos por tocar em seu instrumento. Seria ainda mais bizarro se não fosse seu humor humano e a aparência de um jovem de vinte anos comum, porém acinzentado, como se estivesse lutando para não deixar de existir neste plano. A pior parte é que ninguém consegue vê-lo e, por extensão, minha sanidade é testada a todo segundo. Já tentei de tudo para fazê-lo desaparecer — contar até três e me beliscar, inclusive —, mas ele insiste no tratado. O problema é: como vou fazer um acordo com um fantasma que se diz um deus com habilidades musicais?
Balanço a cabeça exausta demais para me importar com o enredo de Julie e os Fantasmas na minha vida e arranjo o violão de volta no colo. Inspiro o ar mais uma vez e posiciono os dedos para tocar as cordas. Antes que o fracasso se concretize pela milésima vez, o papel da canção voa para longe e ouço a voz debochada ao lado:
— Conserte a postura. Faz diferença ao tocar — os olhos amarelados me encaram por cima da folha e logo voltam ao texto. — Cante o pré-refrão.
Levanto uma sobrancelha, mas faço o que diz. No meio do verso, faz um gesto para que eu abaixe meio-tom e segure até entrar no refrão. Depois, fecha a mão para que eu pare e anota algo em silêncio.
— Mais uma correção para entrar suave e confortável no refrão — sorri ao virar a folha e apontar sua observação. — Está perdendo todo meu talento e disposição em ajudá-la. É a quinta dica que lhe dou em dois dias.
Pego a música de seus dedos e o encaro. Um mal músico ele com certeza não é. Já mentiroso...
— Você não é realmente um deus, é?
Ele faz uma careta e senta na cama na mesma hora, como se o tivesse ofendido.
— Na minha opinião, sou sim. Eu era bem conhecido — gesticula com orgulho e acho graça, quase desejando autoestima dessas. — E meu conhecimento de mais de duzentos anos me fazem especial, sem dúvidas.
O rosto jovem e um cálculo rápido me levam a pensar como era sua vida em 1800, como se tornou músico e se ele tinha pessoas que amava e o amavam. Como ele morreu? O que ele fez para acabar preso à lira na Escola?
— Bom, nunca ouvi falar em você — dou de ombros para provocá-lo e coloco a canção sobre a mesinha.
— E o que seus vinte anos de vida poderiam saber? — Finge tirar sujeira da blusa cinzenta e não reprimo minha risada. Ele realmente se considera um ancião.
— Ainda não sei seu nome.
Cruzo meus braços sobre o corpo do violão e deito a cabeça neles. Seus lábios se entreabrem, mas ele logo conserta a postura e estende a mão.
— Direi apenas se aceitar meus termos.
Olho de relance para o calendário. Faltam quatro dias para a apresentação e tenho três problemas: não consigo tocar, a canção está pela metade e tem um fantasma no meu pé. E se...
— Vai desaparecer se fizermos uma boa música e eu for aceita?
— E se cantar ou tocar mal após minhas lições também, não há dúvidas.
Quando minha gargalhada arranca um pequeno riso da boca acinzentada, estendo minha mão até a dele. Palma com palma. Dedo com dedo. As cores envolvem sua pele clara, cabelos castanhos e roupas pretas e assisto, cativada pela esperança que me toma.
— Estou ligado a você e a esse mundo oficialmente.
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