Capítulo único
No início desta história, os livros tinham deixado de existir havia, pelo menos, cinquenta anos.
No entanto, numa cave escondida de um albergue que acolhia os trabalhadores que migravam, todos os anos na estação boa, do campo para a metrópole, existia uma biblioteca proibida.
Ninguém iria procurar nada na cave de um lugar que se enchia constantemente de gente esquálida e famélica, ansiosa por mudar de vida, tão curtida na desgraça que se tornava desconfiada, calada e até assustadora. Afastavam qualquer tentativa de exploração ou de inquirição.
A cave era escura, um cubículo com uma única estante desconjuntada, que alinhava nas suas prateleiras livros de vários tamanhos e feitios. Eram poucos os volumes que tinham sobrevivido à purga. Mas mais valia poucos do que nenhuns. Aquela era, para todos os efeitos, uma verdadeira biblioteca! Um lugar que juntava livros e que fazia jus ao seu nome composto a partir de antigas palavras gregas. Biblion, que significava livro; e theca, que significava depósito.
Aquela biblioteca secreta era, portanto, um milagre.
E como tinha aparecido?
Meio século antes, o Governo Central chegara à conclusão de que os livros se tinham tornado supérfluos, depois de mais um debate exaustivo e meticuloso sobre o tema, que reuniu pensadores de todo o mundo. Nessa época já não existiam muitos livros, pelo que a questão foi abordada com algum cansaço e displicência. De seguida, publicou-se o Decreto Livreiro de Supressão que baniu os últimos exemplares físicos e eletrónicos das obras literárias que tinham conseguido sobreviver às vagas sucessivas de irada limpeza em benefício do povo. A decisão governamental não surpreendeu ninguém, nem mereceu mais do que um apontamento de pé de página nas notícias mundiais. Era cada vez mais raro haver pessoas que liam e que escreviam. A palavra tornou-se, de certo modo, obsoleta e escassa.
Por isso, esta história foi escrita anos depois, quando se recuperou a variedade prolixa do léxico que os anos de obscurantismo eliminaram com uma foice demasiado ávida e célere. Esta história – e qualquer história – não seria possível nesse tempo recuado, porque as histórias tinham, simplesmente, morrido. As pessoas deixaram de precisar de histórias, porque deixaram de acreditar nelas. Mas, como iremos ver, as histórias hão de ser sempre fundamentais como repositórios de conhecimento e de sonho.
O processo de eliminação dos livros tinha conhecido várias etapas, ao longo de, mais ou menos, dois séculos de intenso fanatismo sobre o poder da palavra, as suas consequências e as suas virtudes. Tudo começou com a formação de grupos voluntários de "leitores de sensibilidade" que seguiam os aconselhamentos enviesados de professores e de pedagogos, que proclamavam na Academia a necessidade de evitar o uso de certos termos que podiam ser considerados anacrónicos ou ofensivos. Os grupos de "leitores de sensibilidade", graças às redes sociais, foram-se impondo e passaram a ditar a política das grandes editoras que começaram, para agradar ao grande público, a rever livros que tinham sido escritos no passado. Na realidade, por detrás deste aparente cuidado com os seus leitores mais atentos e assíduos que se podiam indignar e espantar, estava o objetivo mais cínico e prosaico do lucro. Essas grandes editoras queriam continuar a vender os seus livros mais bem-sucedidos, conquistando um novo público moderno que tinha a tendência para cancelar o que não gostava.
Ninguém se preocupou demasiado com os boicotes extremados a obras antigas que foram revistas, outras que foram censuradas e outras ainda que acabaram suprimidas. Julgava-se que a análise seria moda passageira. Julgava-se também que a cosmética empregada era ligeira e que não iria macular a obra em si.
Depois, os "grupos de sensibilidade" foram alargados para "comissões de educação", criadas de forma oficial pelos governos de vários países. Estas comissões, cujo objetivo final era criar leis e regulamentos que visavam alterar práticas existentes, reuniam vários intelectuais ligados à área das línguas e das humanidades. Uma das consequências foi que muitos livros e obras diversas, incluindo publicações online, passaram a ser vetadas – um termo mais polido que escondia o cancelamento – e que, por isso, tinham dois caminhos à escolha: serem reescritas e reintegrarem, numa nova versão aprovada com o devido selo, o circuito literário; ou não serem reescritas e serem simplesmente destruídas ou apagadas.
Estas medidas oficiais dos governos, transversais nos países ditos ocidentais e progressistas, provocaram grandes protestos. Mas como aqueles que queriam contrariar os acontecimentos se encontravam em menor número, foram perdendo todas as batalhas. Aconteceram ações mais radicais, como atentados, raptos, imolações e assassinatos, mas o silêncio da maioria, que não era necessariamente cúmplice, antes eram aqueles que não se importavam e que não viam pertinência na luta, acabou por esmagar as tentativas de meia dúzia de, como eram desdenhosamente apelidados, intelectuais privilegiados que viviam à custa da sociedade.
A medida mais abrupta que resultou das novas leis foi o fecho de livrarias e de qualquer estabelecimento que vendia ou trocava livros. As publicações, já de si reduzidas devido ao cancelamento e destruição de milhares de obras, eram geridas pelos governos. Só podiam ser feitas em tipografias controladas pelo Estado ou disponibilizadas em plataformas online que passassem pelos gabinetes censórios, que também monitorizavam a Internet. Os livros, por sua vez, quer fossem em formato físico, ou formato eletrónico, só podiam ser disponibilizados ao público mediante uma autorização emitida num cartão virtual que era também atribuído e validado pelo Estado. A idade mínima para ter esse cartão foi aumentando de vinte e um anos, para vinte e cinco, para trinta e, por fim, para cinquenta anos.
Depois do fim da Terceira Guerra Mundial, a humanidade reorganizou-se num único continente, onde a terra, o ar e a água não estavam tão contaminados por causa das sucessivas deflagrações nucleares que dizimaram dois terços da população mundial. Foi criado um Governo Central que reunia elementos que representavam as nacionalidades sobreviventes, várias raças e credos, numa tentativa de trazer união às pessoas que tinham estado sujeitas à desunião de um conflito mundial.
Foram anos negros de penúria e de desalento, em que o mundo era constantemente assolado por pandemias e fenómenos climatéricos extremos, provocando escassez de alimentos e elevadas taxas de mortalidade. Eventualmente, a humanidade conseguiu prevalecer sobre a adversidade, encontrou um caminho viável, como sempre tinha acontecido na sua longa história de queda e de conquista de impérios. Voltou a reerguer-se a civilização, a restabelecer-se os pilares da economia que proporcionavam a necessária prosperidade para aumentar o número de habitantes do planeta.
Os livros, nesse entretanto em que a sobrevivência era o mais importante, tornaram-se completamente desprezíveis. Eram mantidos por algumas pessoas como relíquias do passado, heranças de entes queridos, objetos que representavam estatuto social. Poucos eram os que sabiam ler, dos sobreviventes da grande guerra, e esses estavam ocupados com funções de poder e de responsabilidade que organizavam novamente as estruturas principais que dariam qualidade de vida às populações que tinham a cargo.
Foi nesses anos de redefinição da sociedade, quando se voltou a falar em educação generalizada de crianças e alfabetização do povo, que se começou a dar mais importância à língua, aos dialetos, às diversas formas de comunicação. Começou por se criar um idioma que fosse comum, para que todas as pessoas, que agora pertenciam à nação única reerguida das cinzas e dos escombros da guerra, se entendessem, quer pela forma verbal, quer pela forma escrita. Nesse processo foram criados dicionários e manuais que burilaram as linguagens e as palavras que o vieram a integrar. Considerou-se manter os idiomas de antes – o português, o espanhol, o inglês, o francês, o chinês, o japonês, o russo, o farsi – como dialetos, porque isso acalmava os grupos locais que se foram organizando em torno das suas culturas ancestrais que tinham nas respetivas línguas um pilar definidor.
E no âmbito desta revolução linguística, os livros, os malditos livros que ainda existiam e que a guerra não tinha destruído, para fastio dos políticos preocupados com o bem-estar dos seus representados, voltaram a ser mencionados. Uma vez que havia uma língua nova que estava a ser criada, os livros teriam de ser todos traduzidos. O empreendimento era tão volumoso e, a seu modo, infinito, que o Governo Central decidiu, simplesmente, eliminar os livros porque não eram importantes para o futuro da humanidade.
Aconteceu a maior purga de todas. Os livros, revistas, panfletos e qualquer publicação de antes da guerra foram dados à fogueira ou à guilhotina. A Internet, que acabava de ser reinstalada pelos engenheiros estatais, foi vasculhada. Tudo o que se assemelhasse a um relato fantasioso da vida foi obliterado. Quem não entregava os seus livros voluntariamente era alvo de denúncias, de prisão, as suas casas revistadas. Aqueles mais recalcitrantes eram despejados e exilados, enviados para os campos de aprendizagem em regiões remotas.
Como é que se dá o milagre, então, de existir uma biblioteca, ainda que minúscula, ainda que tímida e trémula, numa cave de um albergue, cinquenta anos depois de uma limpeza tão determinada e exaustiva?
Havia um velhote que guardava livros de doações de várias pessoas que se queriam despojar dos exemplares que encontravam em sua casa, que nem sabiam que os tinham, que achavam que ter um livro era uma falha de carácter, que não viam qualquer utilidade num livro. O depósito livreiro do velhote tinha conhecido muitos acrescentos, mas também muitas perdas, e vinha já do tempo do seu avô que pertencia àquela tal maioria silenciosa que assistiu aos sucessivos ataques contra a literatura e que achava que seria só uma daquelas manias passageiras, de um certo tipo de gente, que depois tudo voltaria ao normal. Quando o avô deste velhote percebeu que nunca mais iria ser como era antes, que as coisas não voltariam ao antigamente, começou, muito discreto, porque ele não gostava de levantar ondas e de se fazer notado, a recolher livros. A salvá-los. Esse trabalho foi continuado pelo seu filho e, mais tarde, pelo seu neto, que envelheceu e se tornou no velhote.
O esconderijo dos livros do velhote era realmente muito bom, pois mesmo a sofrer denúncias e pressões, apesar de ter sido interrogado mais de vinte vezes pelos agentes da polícia secreta, nunca revelou onde os guardava. Aceitou ir para o campo de aprendizagem onde passou um ano penoso, a passar fome e frio, mas ao regressar, sentiu consolo ao verificar que os seus livros continuavam ali. Silenciosamente incólumes.
No campo de aprendizagem, o velhote fez amizade com um rapaz e confiou nele ao ponto de lhe contar o seu maior segredo. Onde escondia os livros. O rapaz era realmente de confiança, porque se encontrava naquela prisão precisamente por se ter recusado a entregar um livro. Chorava todos os dias pelo seu exemplar perdido e rasgado à sua frente, uma história sobre um rapaz rebelde rodeado de amigos. Chorava mais alto por causa do livro do que por sentir fome e isso era um excelente sinal para o velhote que o acolhia nos seus braços e que o consolava.
Quando o velhote morreu, o rapaz, que já trabalhava no albergue, conseguiu ficar com o espaço da cave para si e transferiu a biblioteca para aí. Eram poucos volumes, mas eram preciosos e o rapaz sentia-se como o guardião de um tesouro. Mantinha a estante disfarçada na escuridão e, caso isso falhasse, costumava cobri-la com uma manta pesada que poucos se atreviam a afastar, por acharem que iria libertar uma tonelada de pó e insetos nojentos.
No albergue, o rapaz era chamado para toda a sorte de tarefas. Ora estava na copa a picar legumes para os caldos, ora estava nos quartos a mudar as cobertas das enxergas, ora estava a varrer o alpendre, ora estava ao balcão a distribuir fichas redondas e coloridas de plástico que identificavam os hóspedes por ordem de chegada, por idade e por categoria. Muito raramente tinha folgas e usava-as todas para visitar a cave.
Certificava-se sempre que não era seguido, que ninguém precisava dos seus serviços, que se tornava mais invisível do que já era. Raramente falavam com ele. Como era um dos reciclados, o nome que se dava às pessoas que tinham passado pelos campos de aprendizagem, evitavam-no sem esconder o receio ou a repulsa. Ele sentia-se menos condicionado dessa maneira e não procurava contrariar essa atitude dos outros para consigo. Sem o saberem, a rejeição de que era alvo, aquela tolerância artificial, dava-lhe o espaço de que precisava para ir visitar a sua biblioteca secreta, sem acrescentar outras preocupações.
Não tinha amigos, ou familiares, o vago indício de uma pessoa em quem pudesse confiar. Não se podia explicar, por dois grandes motivos. O primeiro, o seu vocabulário era escasso e as palavras correntes não exprimiam sentimentos; o segundo, era um trabalhador e pertencia à classe mais baixa da sociedade, ninguém se interessaria pelas suas lamúrias. Passava a maior parte dos seus dias num silêncio atento, por vezes curioso, outras vezes, obstinado e enfastiado. Só se expandia em murmúrios e suspiros e interjeições quando chegava à cave, acendia o pequeno candeeiro a gás portátil, destapava a estante e ficava na companhia dos seus livros.
Eram seus agora. Eram magnificamente seus!
Acariciava-lhes as capas, folheava-os e tornava a acariciá-los, passava os dedos pelas linhas, sublinhava as frases uma por uma. Não os conseguia decifrar e nenhum deles tinha figuras. Eram só letras, palavras, parágrafos imensos escritos nas línguas antigas que o povo não conhecia, nem falava. Isso não importava. O livro que ele tinha perdido estava também escrito nessa língua e não era por isso que o estimava menos. Algum dia, sonhava, pressionando o volume contra o peito, cheirando aquele perfume inebriante de papel velho, algum dia ele saberia que histórias contavam e iria aprender outras palavras, mais do que aquelas que ele sabia, e iria deixar de ser uma sombra silenciosa.
Os anos foram passando e o rapaz continuou a trabalhar no albergue. Mantinha-se naquele posto com uma firmeza estranha. Recusara promoções e transferências para outros lugares onde podia ganhar mais dinheiro. Se antes julgavam que era por medo, depois passaram a achar que ele era pouco ambicioso e deixaram-no na pacatez que atribuíram a um idiota. O rapaz deixava que pensassem o que quisessem. Ele nunca iria deixar a sua biblioteca, ao mesmo tempo que alimentava a ideia de, um dia, encontrar um hóspede que ainda conhecesse as línguas antigas. Essa pessoa, infelizmente, nunca apareceu e os seus livros, os seus bonitos livros, permaneceram indecifráveis.
Até que aconteceu a desgraça.
Numa tarde de muito calor, o albergue pegou fogo. Ninguém soube onde começou o incêndio, se na copa, se num dos quartos, se na casa das caldeiras. O certo foi que as labaredas ficaram imparáveis e desataram a devorar tudo o que encontravam pelo caminho. Eventualmente, chegaram à cave, atingiram a biblioteca. O rapaz gritava desesperado, de braços esticados, preso no abraço de um dos porteiros que era grande como um urso e que não o deixou entrar nas chamas que crepitavam e queimavam sem piedade.
Quando tudo se acalmou, o rapaz correu à cave. A manta conseguira proteger parte do acervo, mas com graves danos. Os livros que não arderam e se converteram em cinzas, estavam chamuscados e parcialmente danificados, com capas retorcidas, as pontas das folhas enegrecidas.
Ao verem os livros, as pessoas entraram em histeria. Gesticulavam, berravam e ofendiam como se estes carregassem a peste e fosse preciso eliminá-los totalmente, completar o trabalho do fogo. O fundamentalismo veio ao de cima. Julgaram que o motivo para aqueles livros terem sobrevivido ao incêndio, que destruíra mais de metade do albergue, fosse porque estavam amaldiçoados. O rapaz escutou tudo, muito triste, mas não fez qualquer gesto para contrariar a obstinação das pessoas que já uivavam, choravam e estremeciam de horror. Foi ao seu quarto. Agarrou numa mochila. Recolheu os livros. Deixou o lugar que tinha sido a sua casa durante aqueles anos todos, ignorou a multidão que o insultava e fez-se ao caminho.
Foi-se embora.
Já não era um rapaz. Tinha crescido num homem macambúzio, a agarrar-se tenazmente aos fiapos dos seus sonhos, com as ruínas dos seus livros às costas, sem saber o que fazer no fim da viagem. Na verdade, esperava que esta nunca terminasse. Ou, então, num resquício de fantasia, esperava encontrar no fim da estrada uma pequena cabana habitada por um sábio que conhecia as línguas antigas. Os dois sentar-se-iam na sala da cabana. O sábio leria as histórias, ele escutaria as histórias.
Lembrou-se do velhote que conhecera no campo de aprendizagem. Ele contava-lhe, apontando o céu da noite pontilhado de estrelas, que os livros frutificavam. Os livros puxavam por outros livros. Eram feitos de papel e o papel vinha das árvores, explicava o velhote com os olhos brilhantes, como se neles habitassem duas estrelas que tinham sido roubadas ao céu. Os livros podiam voltar a ser o que tinham sido, os livros eram as árvores.
Ao longo da estrada, ele passou a observar cuidadosamente a terra e a vegetação. Quando descobria um lugar que lhe parecia adequado, abria uma cova com as mãos e enterrava lá um livro. Marcava cada local com pedras. Sorria muito, acenava com a cabeça. A sua missão era essa. Semear os livros que se transformariam em árvores que, mais tarde, nos seus ramos, dariam novos livros.
Ao longo da paisagem que percorria, ia fazendo dos seus livros oferendas ao mundo. Um, dois, cinco, sete, oito e terminaram. Não tinham sobrevivido muitos ao incêndio do albergue. Nessa diligência, esqueceu-se de si próprio. De comer, de beber, de dormir, de descansar.
Alcançou um promontório que entrava mar adentro. O oceano ali estava revolto e fazia um vento muito forte que quase o atirava contra as rochas que as ondas fustigavam, mais abaixo. Olhou em volta. Não encontrou a cabana do sábio. Pestanejou. Passou a mão pelos olhos lacrimejantes. Era o fim da linha. A mochila estava vazia, o seu coração igualmente. A sua alma queria soltar-se. Libertar-se. Espalhar-se. Voar. Levantou os olhos para o céu. Era maior do que a terra. Gostou dessa imensidão. Ansiou por ela.
Ajoelhou-se no chão duro de rocha. Sentou-se sobre as pernas. Sorriu. Estava concluído. Fechou os olhos e morreu pacificamente.
Em pouco tempo, estes acontecimentos, ao serem recontados e ao passarem de boca em boca, converteram-se numa lenda. Toda a gente queria conhecer a maravilhosa história do homem que semeara palavras livres e que se deixara petrificar junto ao mar, a olhar cheio de esperança para o horizonte. Neste ponto podiam ser colocadas diversas perguntas sobre o relato. Como era possível que alguém soubesse o que tinha acontecido se o homem viajara sozinho, se o homem enterrara os livros sozinho, se o homem morrera sozinho? Ou talvez não estivesse sozinho... De qualquer modo, esses detalhes não são importantes para o que se seguiu. De qualquer modo, as lendas nascem assim, de forma espontânea, imprevista, germinam repentinamente e tornam-se património dos espíritos sonhadores.
Foi a lenda das palavras livres que acabou por inspirar o futuro. Uma menina que, depois de crescer, se tornou numa ministra muito influente do novo Governo Central, escutava essa lenda da sua cozinheira que a cantarolava enquanto preparava o seu famoso bolo que ela adorava. Nesta altura, a lenda possuía vários formatos. Era panfleto, frase escrita num muro, cantiga, poema e grito. A menina apreciava, particularmente, a sua versão musicada. Uma das suas primeiras vontades, depois de o pai lhe oferecer um caderno e um lápis a carvão, foi a de escrever a lenda das palavras livres à medida que ia tropeçando nela para analisar e comparar as várias versões. Foi um trabalho moroso que lhe levou muito tempo. O caderno foi-se enchendo com um estudo muito detalhado sobre a lenda, sobre os passos do homem desde que abandonou o albergue até chegar à costa onde desfalecera a contemplar as ondas azuis do mar.
Já adulta e já ministra, ela definiu um segundo plano, uma vez que o caderno se tinha completado e não havia mais folhas onde pudesse escrever coisas novas sobre a lenda, que estava bastante esmiuçada e determinada. Ela iria tentar recriar os passos do homem, fazendo o caminho inverso. Começava no promontório e terminava no albergue, se porventura este ainda existisse. Nesse trajeto, ela contava encontrar as covas dos livros e recuperá-los.
O mundo estava muito diferente de como era no tempo do homem da lenda. Havia escolas que ensinavam as crianças a ler, a maioria da população era instruída. O idioma comum era estudado por intelectuais autorizados que se reuniam nas recentemente fundadas Academias que produziam estudos encadernados e pequenos livros em quantidade limitada, que podiam ser consultados apenas mediante autorização. Mas era o princípio de um renascimento cultural.
A ministra, imbuída de toda a sua autoridade, juntou algumas pessoas da sua confiança e foram, em trabalho oficial, sancionado pelo Ministério e autorizado pelo novo Governo Central, traçar a rota do homem da lenda das palavras livres. A primeira dificuldade, que lhes levou mais de um ano, foi descobrir o promontório. Ultrapassado esse percalço, todavia, percorrer a rota que tinha semeado livros foi muito fácil e rápido.
Lá estavam as pedras a assinalar cada cova. A ministra quis que fosse ela a desenterrar cada livro. Claro que depois de todos aqueles anos, tantas décadas, mais de um século, os livros tinham-se desfeito em pó. Mas havia alguma da sua magia imbuída nos torrões de terra que a ministra esboroava entre os dedos, devagar, solenemente. Palavras. Livres. Línguas esquecidas. Gargalhadas e lágrimas. O calor de um verão eterno e o frio de um inverno marcante. Uma lição. Raiva e tranquilidade. Perseverança. Sonho. Algo perene e imutável, ao mesmo tempo demasiado frágil.
O albergue já não existia. Em vez dele havia um terreno vazio que, depois de investigado por especialistas do passado que recuperavam os anteriores métodos científicos da arqueologia, revelou as fundações de uma construção tosca que se tinha desmoronado e desvanecido pela ação inclemente dos anos de abandono. Confirmou-se ter havido dois incêndios de grandes dimensões, pelo menos. A ministra ficou muito satisfeita com as conclusões dos peritos.
A mulher recuperou o brilho da menina que fora antes e sentiu que completara um ciclo. Que cumprira um objetivo muito maior do que simplesmente comprovar que uma lenda tinha um fundo de verdade.
Nessa noite, teve um sonho. O homem da lenda era outra vez um rapaz e ela também tinha rejuvenescido. Foram os dois de mãos dadas pela estrada até ao promontório. Ele mostrou-lhe cada uma das covas. Escavava-as com afinco e um enorme sorriso na cara suada. Retirava os livros da sua prisão tumular como se os ajudasse a nascer. Limpava carinhosamente as capas. Cada exemplar estava impecável, novo. As cores eram vivas e as folhas muito macias, com as letras pretas a se destacarem no branco, como se tivessem acabado de ser impressos. Cada um constituía um tesouro. O rapaz mostrava-lhe os livros e contava-lhe as suas histórias extraordinárias. Fantasias, aventuras, romances, guerras, buscas, o poder esmagado e o poder conquistado. Enquanto falava, todo ele se inflamava. Depois de resumir o livro, dava-lho. Ela recebia-o nos braços que foram ficando cheios, muito cheios, demasiado cheios! Ela queria dizer que não aguentava receber mais livros, mas não os queria perder, nem deixar cair e ia aguentando o peso, a responsabilidade, o desafio.
De volta à cidade capital, a ministra emitiu um decreto cultural. Determinou que no lugar do albergue deveria ser construído um edifício para guardar livros. Biblioteca, era como se chamava esse local. Do grego biblion, que significava livro, e theca, que significava depósito. Conseguiu um financiamento misto, em parte do Estado, em parte com contribuições voluntárias dos cidadãos que gostaram da iniciativa.
No início, aquela biblioteca seminal estava vazia. Era só uma casa com uma sala ampla, estantes a forrar as paredes, duas mesas, duas cadeiras, divisórias de vidro e alumínio a formar cinco gabinetes. A ministra ia visitar a biblioteca todas as semanas. Andava pelos arredores, entrava na sala, observava as prateleiras desoladas, congeminava projetos para encher aquele sítio de vida, de conhecimento e de esperança. Devia isso ao rapaz que guardara os livros durante os anos proibidos, que se tornara no homem que soltara as palavras e as tornara livres. Fez essa promessa.
E cumpriu-a.
Os livros começaram, paulatinamente, a aparecer. Manuais escolares, documentos oficiais do governo, transcrições de reuniões. Depois, as primeiras tentativas de histórias – pequenos relatos que falavam sobre instantes da vida do próprio autor ou de pessoas que o autor observava. A seguir apareceram os contos que usavam a imaginação de quem escrevia.
As palavras disponíveis no dicionário oficial foram crescendo, foram brotando e renascendo. O idioma comum foi-se tornando mais rico. Recuperaram-se outros idiomas, a partir de livros que jaziam escondidos em diversos espólios. Havia pessoas por todo o mundo que tinham guardado livros como recordação de um passado estranho e remoto, e isso era maravilhoso. Foi definido um dia feriado para celebrar o livro. Convidavam-se crianças que vinham de lugares distantes para fazerem desenhos e criarem uma história com as suas frases. Eram sempre ideias inocentes, bonitas, cheias de força e de paixão, que vincavam preceitos para um mundo melhor. Havia esperança, muita esperança.
A ministra, no discurso que fez quando deixou o Governo Central, só falou da biblioteca. Era o seu legado mais importante de todos os anos em que governou. Mencionou a lenda do homem das palavras livres e emocionou-se, porque também se lembrou de si própria, menina, a rodopiar sobre a relva, a cantarolar a cantiga da cozinheira sobre essa lenda. Acrescentava, como novo verso da canção que inventava, cheia de bravata, que um dia haveria de soltar as palavras que ainda não eram livres.
E cumprira essa vontade que entoara ao vento.
As palavras soltavam-se. Percorriam o mundo. Alcançavam o universo.
As palavras nunca mais seriam aprisionadas.
No fim, a menina e o rapaz, como no sonho, estavam numa paisagem infinita e primaveril, na companhia dos livros que jamais haveriam de morrer. Lançavam palavras ao vento e riam-se alto, muito felizes.
Ao fundo, depois do promontório, sob o dossel de um céu azul infinito, o mar ria-se com eles.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro