Capítulo 1: escape
I: escape
A princesa estava sorrindo. Era um milagre, já que naqueles dias os motivos para tal eram raros. O Ocidente de Saas estava um caos e, em meio àquela insanidade toda, ela encontrara um poderoso motivo para sorrir...
–– Ravel. – Ele entrou apressadamente no quarto.
–– Oh, querido! – Seu semblante era radiante – Estou tão feliz! Preciso te contar...
–– Ravel, eles chegaram.
Ela empalideceu. Olhou firme para o príncipe de Mulber, seu marido, que estava com aquele ar de determinação, um olhar duro, mas que, no fundo, escondia o medo que todos sentiam.
–– Não...
–– Estamos na cúpula esperando por você. Acabou, Ravel, acabou... Eles venceram.
A princesa agora estava lutando contra as lágrimas, a frágil pele branca adquirira um tom rosado e os olhos verdes, afundando nas lágrimas, eram cristalinos demais para esconderem o pavor que Ravel sentia...
Eles caminharam apressadamente pelos corredores do castelo até chegarem à cúpula, uma enorme sala redonda lindamente decorada com pinturas no teto e uma mesa de mármore no centro. Os reis e rainhas de Mulber e Jope, os duques, duquesas e os generais de ambos os reinos estavam sentados esperando o jovem casal.
♜ ♜ ♜
Tudo começou antes do que todos pudessem imaginar, com Palassos produzindo armas em larga escala e investindo em pesquisas bélicas para realizar seu plano mais secreto: conquistar toda a Saas, ou melhor, todo o Ocidente que eles acreditavam ser Saas.
Anos depois eles estavam prontos para a maior guerra de suas vidas: as espadas eram maiores e de dois gumes, os cavalos tinham armaduras que, apesar de resistentes, eram leves. As lanças tinham veneno de cobra nas pontas, e os escudos eram feitos do mesmo material que a armadura dos cavalos: Criptônium. As flechas eram banhadas num líquido inflamável e voavam incendiando tudo o que ficasse no caminho. E eles tinham uma nova arma que ninguém nunca tinha visto antes: as catapultas. Eles estavam invencíveis.
Começaram atacando e conquistando Stuneg e, em seguida, Raboon. Antes de atacarem Mulber, que naquele momento fazia aliança com Jope através de laços matrimoniais, conquistaram Pong, o reino intocável. E, prevendo um trio de aliados com Mulber, Jope e Avite, os palassins precataram com um ataque surpresa ao reino dos esportes radicais, que estava sem chance de defesa. Com isso, os jopes e os mulbers ficaram ainda mais amedrontados, justamente o que os palassins queriam: aterrorizar antes mesmo de atacar, porque lutar contra um inimigo que está amedrontado facilita a conquista. Mulber não resistiu ao ser atacada por todos os lados, apesar do aliado ter enviado reforços, e, no final, alguns ainda conseguiram escapar para Jope, inclusive a família real.
Os palassins eram tão determinados a conquistar Saas que estavam dispostos a tudo. E sua estratégia para controlar os territórios já conquistados, enquanto guerreavam contra os outros, foi a mais cruel possível: quando um reino era tomado toda a família real e todas as autoridades do local eram assassinadas, todo aquele que possuía uma gota sequer do sangue azul ou que exercia qualquer espécie de poder era aniquilado.
Em Saas a Hierarquia era constituída do rei, rainha, príncipe, princesa, duque e duquesa, general, coronel, major e capitão. Por lei, só quem tivesse o sangue real poderia assumir o trono, mas, no caso de não haver descendentes, seguindo essa ordem hierárquica, qualquer um poderia assumir, exceto coronéis, majores e capitães. Então quando os palassins aniquilavam todos aqueles que faziam parte da Hierarquia, eles estavam criando uma situação que a lei não previra, deixando o povo sem nenhuma esperança de restauração do trono.
Eles ainda deixavam um duque tomando conta do reino, evitando, com isso, possíveis revoltas, ou que o reino, algum dia, pudesse ser reconquistado por rebeldes. E, antes de atacarem outro reino, eles enviavam a cabeça do rei do território anteriormente conquistado, era como uma mensagem de "você é o próximo".
Jope ainda resistira alguns meses, mas o inevitável estava acontecendo: os palassins tinham acabado de chegar à capital, era uma questão de tempo até que eles passassem pela frágil defesa e tomassem o castelo, onde a família real dos jopes e mulbers se refugiava. A guerra tinha durado pouco mais de dois anos e o exército de Palassos estava mais forte do que nunca, porque obrigava os soldados dos reinos conquistados a lutarem ao lado deles conforme iam avançando.
♜ ♜ ♜
Todos na sala estavam em silêncio, eles sabiam exatamente o que iria acontecer e qual a atitude deveriam tomar. Mas saber é uma coisa, fazer é outra. Eles estavam encarando a morte...
Ravel era a única filha do rei e rainha de Jope, e Dafar também era filho único, príncipe de Mulber. A união dos dois tinha sido arranjada, usada para marcar uma aliança mais forte entre os reinos, numa fracassada tentativa de deter os palassins. Porém, mesmo casando-se com alguém que eles nunca tinham visto na vida, os dois se apaixonaram perdidamente. Um ano e três meses depois, eles estavam reunidos numa sala com os pais e parte da Hierarquia para dizer o último adeus...
Finalmente, o anfitrião, rei de Jope, levantou-se solenemente e disse:
–– Senhoras e senhores, foi um prazer lutar ao lado de vocês. Que a história não se esqueça deste momento dolente, quando lutamos até derramar a última gota de nosso nobre sangue, sem jamais desistir. Tombamos como heróis, derrotados, mas com a glória dos perseverantes. – Ele ergueu a taça de ouro até acima da cabeça e, olhando para o céu, concluiu com o olhar sombrio – Um brinde à vida que levamos, à paz que guardamos, à gloriosa morte que teremos e um brinde à esperança que algum dia renascerá de Jope.
–– NÃO! – Dafar gritou levantando-se horrorizado – Não há nada de glorioso em tirar a própria vida, isso é desistir, é covardia!
Todos olharam indignados para o príncipe que aparentemente enlouquecera.
–– Filho! – A voz do rei de Mulber escancarava a ira que sentia – Cale-se! Não estamos tirando nossa vida, nós já estamos mortos! Os palassins estão aqui, a guerra acabou! Não quero dar àqueles bastardos o prazer de enfiarem minha própria espada em minha mulher e em você, filho, não quero que eles derramem meu sangue, não vou lhes dar esse mérito! Não estamos desistindo, estamos dando nosso último golpe.
–– Golpe?! Isso é suicídio!
–– Seu pai tem razão querido, nós já estamos mortos! – A rainha de Mulber chorava...
–– Eu não estou morto. Ainda não! Vamos, Ravel, vamos embora daqui!
–– Você não vai a lugar algum com minha filha! – Bradou, furioso, o rei de Jope.
–– Eu e a minha mulher não morremos assim!
Antes que eles começassem a brigar, Ravel se levantou e gritou.
–– Calem-se! – Todos olharam atônitos para ela, que continuou, aproveitando o silêncio – É meu direito decidir se vou ou se fico, é a minha vida! – Ela olhou para o pai e a mãe com lágrimas escorrendo pela face – Me perdoem, mas não posso ficar, não posso beber da Taça dos Heróis de Guerra...
O pai abaixou a cabeça tentando esconder o choro... Ele faria qualquer coisa para salvar a filha... Alguns segundos depois, tinha reunido coragem suficiente para balbuciar as difíceis palavras.
–– Então vá, minha filha, e que a vida esteja do seu lado...
O jovem casal se despediu dos respectivos pais e dos nobres e, então, partiu. Na sala, a cerimônia continuou: de um em um eles iam bebendo e passando a taça, até que todos beberam o vinho do cálice.
♜ ♜ ♜
No quarto, Ravel e Dafar pegavam a bagagem que eles prudentemente tinham deixado pronta, para o caso de uma possível fuga. Era apenas uma trouxinha que continha o que eles julgavam ser essencial. Ravel estava atordoada tentando entender o marido:
–– Como assim você não tem um plano?!
–– Meu plano é viver por muitos anos e beber aquela taça com certeza não era uma opção!
–– Mas... Amor, como nós vamos sobreviver, não tem como fugir, somos o último reino a ser conquistado, os palassins são donos de tudo, não temos para onde fugir! – A princesa estava à beira da histeria...
Eles haviam acabado de deixar o quarto e estavam correndo pelos corredores do castelo, tentando chegar o mais rápido possível ao estábulo. Dafar parou abruptamente segurando o braço de Ravel para que ela não caísse com a repentina inércia.
–– Eles não são donos de tudo, ninguém até hoje conquistou o oceano.
–– O Grandão Esverdeado?! Você enlouqueceu de vez?
–– Loucura é o que os palassins estão fazendo, precisamos tentar Ravel! O oceano é a nossa única saída...
Eles chegaram ao estábulo e montaram os cavalos. Fugiriam pelo sudeste, já que o ataque se concentrava no norte e noroeste, cavalgariam até a praia e confiscariam o barco de algum pescador. Navegando em direção a mar aberto ninguém iria atrás deles. O mais difícil seria chegar até a praia sem serem vistos.
♜ ♜ ♜
O Capitão Belkiron, do exército de Palassos, liderava parte da tomada do castelo. Ele estava ao sul "comandando" parte das tropas que invadiam pelo oeste, enquanto outros comandavam as tropas que invadiam pelo norte e noroeste. Todos já conheciam muito bem a estratégia que seria usada para a conquista do castelo, a defesa dos jopes estava aniquilada e o sul era o melhor lugar para se assistir ao espetáculo, sem árvores para tapar a visão e sobre uma montanha para não perder detalhes. Ele não precisava dizer aos subordinados o que fazer, tanto tenentes quanto soldados conheciam o plano.
Porém, algo chamou a atenção dele: dois cavalos corriam a toda velocidade em direção ao mar. Pegou o binóculo e percebeu que os cavalos não possuíam a exclusiva armadura que eles usavam. Alguém estava tentando fugir. E, para sair daquele jeito do castelo, só podia ser da realeza ou alguma outra autoridade. Qualquer um que fizesse parte daquela tão cobiçada Hierarquia estava amaldiçoado de morte e era compreensível que tentassem fugir. Se ele os capturasse poderia ganhar uma promoção.
–– Escudeiro! – O jovem que carregava as armas para o capitão se prontificou no instante que ouviu o chamado – Está vendo aqueles cavalos correndo em direção à praia? Alguém está tentando fugir, dê-me meu arco e pegue pra você a minha lança, vamos atrás deles! Você sabe cavalgar rápido?
–– Não tanto quanto o senhor, mas estarei logo atrás.
–– Então vamos lá acabar com aqueles miseráveis!
♜ ♜ ♜
Dafar e Ravel chegaram à praia e foram direto para o singelo porto de Jope, que mais parecia uma feira onde, em dias normais, os pescadores vendiam mercadorias frescas. Dafar apontou para um barco e eles cavalgaram em direção a ele, porém, no meio do caminho, ouviram o trotar de mais dois cavalos. Olharam para trás e viram o capitão Belkiron parado a alguns metros deles.
–– Identifiquem-se!
Ravel engoliu em seco, e agora? Ela já não estava mais com medo, estava revoltada com aquele cretino por tê-los visto fugindo... Com o coração batendo rápido, Dafar cochichou:
–– Ravel, quero que preste atenção...
–– Desçam do cavalo com as mãos para cima e identifiquem-se!
Enquanto eles desciam, Dafar continuou:
–– Eu vou distraí-los e enquanto isso você corre para o barco, desancore-o e alce a vela, eu sei nadar, te alcanço e você joga uma corda pra mim.
–– Muito bem, agora identifiquem-se!
–– Meu nome é Dafar, sua alteza real o príncipe de Mulber. Essa é minha mulher, sua alteza real a princesa Ravel... E aquela é a nossa escolta.
Belkiron caiu no truque barato e olhou para trás. Dafar não perdeu a oportunidade e sacando o arco e flecha, atingiu o braço direito do capitão, enquanto gritava para Ravel:
–– Agora, querida, rápido!
Ravel correu o máximo que pôde em direção ao barco e subiu jogando fora a escadinha, que afundou na água. Não olhou para trás. Desancorou-o e, enquanto alçava a vela, uma flecha disparada por Belkiron passou de raspão na cabeça dela. Se o capitão não estivesse ferido, certamente não teria errado. Outra flecha cravou na madeira do mastro e uma terceira atingiu seu ombro direito. A dor dilacerante não a impediu e quando terminou, o vento forte que soprava do oeste encheu a vela do barco que zarpou a toda velocidade. Ela correu para a popa, queria ver se Dafar já estava vindo.
Porém, a cena que viu iria persegui-la para o resto da vida: Dafar fora rendido e estava de joelhos com uma flecha cravada nas costas. O escudeiro parado na frente dele olhava para o capitão, que tentava atingir Ravel com mais uma flecha...
–– Dafar, amor! – Ravel não conseguia acreditar que ele estava ferido e não viria atrás dela como o combinado...
O vento estava soprando a favor dela, empurrando-a rapidamente em direção ao alto mar... Irado por ver que não conseguiria atingir a jovem, Belkiron correu em direção ao escudeiro, tomou a lança e enfiou-a no coração de Dafar, que deu um último grito de dor, tombando para o lado...
–– Nããão!
O capitão o acertara para que Ravel visse o amado morrer e, com isso, fazê-la sofrer por ter conseguido fugir...
–– NÃO! – Ravel sentiu como se a lança tivesse cravado o seu próprio coração – Não! Dafar, não! – Ela estava desesperada, queria pular do barco e salvar o amado – Meu amor, oh não, não, não!
Os gritos de dor da princesa ecoavam pela noite fria... Ela chorava, soluçava de agonia... Queria voltar, queria ir até lá e acabar com aquele que matara o amor de sua vida, queria morrer com Dafar, mas o barco pulava nas ondas como se tivesse pego-a no colo para ajudá-la a fugir...
–– Dafar! Meu amor, não! Não me deixe, você disse que viria, você disse que só ia distraí-los e depois viria! Dafar! Por favor, não me abandone! – Ravel gritava aflita enquanto via o porto desaparecer na neblina da noite...
À medida que os gritos de angústia da princesa eram engolidos pela distância que crescia entre ela e a chacina que assolava Jope, Belkiron cuspia palavras de ódio.
–– A maldita escapou! Como isso pode acontecer? Ele era um contra nós dois!
–– Perdão, senhor, mas ele era rápido, acertou meu cavalo e eu caí, perdi minha lança e ele veio para cima de mim desembainhando a espada... Enquanto o senhor estava caído, atingido pela flecha, eu lutava contra ele e...
–– Cale-se, seu bastardo incompetente! O rei foi muito claro, não deveríamos ter deixado ninguém da Hierarquia escapar! Vamos ter que dar um jeito nisso ou seremos punidos como traidores!
♜ ♜ ♜
Em alto mar, Ravel estava deitada encolhida num cantinho do barco, chorando baixinho e inconsoladamente... Ela soluçava enquanto sentia o coração pesado... Ele doía infinitamente mais do que o ombro. Sua alma estava despedaçada... Ela perdera o reino, a família e o amor, tudo em única noite... Ela queria morrer... Mas não seria justo com Dafar, que lutara tanto para salvá-la...
A cada lágrima que descia de seus olhos agora sem brilho, eram dúzias de boas lembranças dos momentos de amor e alegria que passara ao lado do marido... Quando o mundo à sua volta estava desmoronando, Dafar era o único que conseguia fazê-la sorrir, e agora ele se fora... Ele e o seu mágico olhar, o toque apaixonado, o abraço protetor, as palavras de conforto...
–– Você disse que viria, você disse que não me deixaria... Ah, meu amor, eu estou com tanto medo, por favor, eu preciso tanto de você... – Ravel chorou palavras até adormecer de tristeza e exaustão...
♜ ♜ ♜
Em Jope, o capitão andava de um lado para o outro pensando numa saída, num plano, porque se alguém descobrisse o que tinha acontecido, sua pena seria a morte. E não somente a dele, toda sua família seria enforcada. Óbvio que ele não poderia deixar isso acontecer...
–– Merda, não consigo pensar em nada!
De repente, o escudeiro sugeriu:
–– Senhor, você já tinha visto a princesa antes? Nem eu... Então por que não pegamos uma jovem parecida com ela e entregamos o corpo à sua majestade, como se fosse o da princesa?
Por mais mesquinho que fosse o plano, Belkiron não conseguia pensar num outro melhor. Então mandou que o escudeiro fosse à aldeia que ficava perto do castelo e lhe trouxesse um corpo com as características da princesa. O escudeiro foi e lhe trouxe uma jovem morta, e ambos cavalgaram até o castelo, onde apresentariam os corpos do príncipe e da falsa princesa. Depois era só torcer para que o rei também nunca tivesse conhecido a princesa pessoalmente e acreditasse na história deles.
------------------------------
Oláá! Deixe seu voto e comentário antes de continuar a leitura, adoraria saber o que você achou dos acontecimentos deste capítulo! ^^
************
As lendas de Saas
Escrito e publicado por: Becca Mackenzie
Wattpad.com | 2014
Todos os direitos reservados.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro