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23: Fôlego de vida

XXIII: Fôlego de vida


            O tempo escoava rapidamente, como areia de uma ampulheta quebrada. A Suprema Aliança conquistava alguns territórios e perdia outros, de modo que a guerra arrastava-se cansativamente, como se jamais fosse acabar.

Pouco mais de dois meses depois que a caravana de embaixadores partira de Laghar rumo ao Oriente, Shari enviara mensageiros para Jope com a maravilhosa notícia de que Mulber teria um herdeiro.

Algumas semanas depois, quando Nemat já não conseguia mais arrumar uma posição confortável para dormir e estava óbvio que a qualquer momento poderia dar à luz, tanto Hadin como Leor, Shari, Tenazd e Collina foram à capital de Jope, aguardar a chegada do bebê real.

Todo o continente sabia, inclusive os inimigos. E eles aproveitaram aqueles dias para atacar com mais força, obrigando a Suprema Aliança a contra-atacar ou recuar.

–– Os bastardos estão fazendo disso a nossa fraqueza. – Resmungou Hadin.

–– Sinto muito... – Sussurrou Nemat.

Os seis estavam tomando café, numa agradável manhã de outono. O marido se desculpou:

–– Não foi isso o que eu quis dizer, você não está nos atrapalhando.

–– O que Hadin disse é que Ortis sabe que, tanto eu quanto ele estaremos aqui, ele sabe que Mulber e Jope são os Reinos mais fortes desta Aliança e, por isso, estão nos atacando mais. – Completou Leor.

–– Nossos generais estão em campo e são bastante competentes. – Shari tentou animá-los – Vamos ficar bem e assim que esse rapazinho decidir vir ao mundo, voltaremos aos nossos afazeres.

–– Eu acho que é uma princesa. – Protestou Tenazd.

–– O que você acha que é, Nemat? – Perguntou Collina.

–– Eu não sei, mas menino ou menina, sei que será bastante sapeca. E teimoso, nunca vi um bebê chutar tanto!

–– Acho que é um príncipe, que está doido para nascer e nos ajudar a derrotar Palassos. – Sorriu Hadin, orgulhoso feito um pavão.

–– Já escolheu o nome? – Shari havia acabado o prato e limpava a boca delicadamente com um guardanapo de pano amarelo. Todos os olhares se concentraram em Nemat.

Ela deu de ombros:

–– Tenho pensado em alguns, mas não sou muito boa nisso.

–– Não se pressione, quando nascer você saberá exatamente que nome deve dar. – Disse Hadin, passando a mão no cabelo da esposa, afavelmente.

Em Saas, era a mãe, e somente ela, que escolhia o nome de uma criança, pois fora ela quem carregara o bebê no ventre, sentindo-o enquanto ele crescia. Era uma tradição quase sagrada: após o nascimento, quando a criança ia para os braços da mãe pela primeira vez, esta pronunciava o nome.

Havia uma lenda que dizia que, se uma mãe dissesse o nome da criança antes do nascimento, os sete espíritos das últimas sete pessoas a morrer com aquele nome iriam perseguir a grávida, lutando para se apoderar do corpo em seu ventre. Assim, quando o bebê nascesse, não seria o filho, e sim uma reencarnação do espírito vitorioso. A única maneira de se livrar desse terrível destino era se ela descobrisse quem eram os sete espíritos, onde estavam enterrados os corpos deles e arrancasse a flor dos túmulos. Por isso, as mulheres tomavam todo o cuidado do mundo para não mencionarem o nome que dariam aos filhos antes que eles nascessem.

Já eram duas horas da tarde. Nemat, Collina e Shari estavam nos aposentos da rainha, analisando os relatórios administrativos enviados pelos duques e duquesas de Jope. Bem, Nemat estava analisando os relatórios, enquanto as amigas comiam frutas deitadas nas gostosas almofadas gigantes.

–– Admita: é muito boa essa mordomia real. – Falava Shari.

–– Não estou dizendo que é ruim, mas sinto falta do frente de guerra. – Collina tentava explicar seu ponto de vista.

–– Como um acampamento de guerra pode ser melhor que isto?! – Ela abriu os braços, mostrando o quarto – Às vezes, eu acompanho o Leor nos campos de batalha, mas sempre que vou, fico louca para voltar. Me embrulha o estômago ver os feridos...

–– Eu me sinto útil ali. – A negra deu de ombros – Não vou mentir dizendo que é melhor do que um castelo, mas aqui eu me sinto mal, como se estivesse negligenciando minha missão.

–– Você tem sangue de guerreira... – Comentou Nemat, do outro lado do cômodo, sem tirar os olhos da pilha de papel – Assim como eu tenho sangue real. Eu te entendo, essa sensação que nos dá de estarmos fugindo do destino. Era o que eu sentia em Nalahu. – De repente, ela pegou duas folhas e caminhou até as amigas – Estou impressionada com essas informações.

–– Como assim? – Perguntou Shari, sentando-se melhor.

–– Pelo que vi aqui, o número de suicídios reduziu no último ano, está cinco vezes menor. E também é o menor índice registrado em mais de cem anos!

–– Como assim?! – Shari franziu as sobrancelhas.

–– Os números não são muito confiáveis, mas, de acordo com este relatório, durante o Império de Ortis a maior causa de mortes aqui em Jope eram os suicídios. Superando, inclusive, o índice das doenças. – Confirmou Nemat, boquiaberta.

–– Eu acredito. – Disse Collina, com uma expressão sombria – Vocês não fazem ideia de como foram esses vintes anos de Império... Se o número de suicídios é o menor em cem anos, é porque agora as pessoas encontraram uma razão para viver.

–– Isto é possível? – Perguntou Nemat, observando o sol que entrava pela janela – A guerra trazer coisas boas?

–– Só pelo fato de ter uma guerra já é sinal de que tem algo errado. – Respondeu Shari, balançando negativamente a cabeça.

A rainha estava voltando para a escrivaninha, quando elas ouviram um barulho de água caindo no chão. Nemat ergueu a cabeça, pálida.

–– Eu acho que... – Deu um passo para o lado e constatou – Está na hora!

–– Vou avisar aos meninos! – Collina ficou de pé num pulo e saiu correndo.

–– Eu vou chamar a parteira, deite-se enquanto isso! – Gritou Shari, saindo apressadamente.

Logo o aviso foi dado e a população que se encontrava em Laghar correu para o castelo, formando uma pequena multidão do lado de fora da muralha. Estavam todos sentados na relva, fazendo piqueniques e aguardando a notícia final, sorriam como não faziam há algum tempo.

Nemat começou a sentir as primeiras dores horas depois. À medida que as contrações ficavam mais intensas e com intervalos menores, mais nervosos Hadin e Leor ficavam. Estavam do lado de fora do quarto, andando de um lado para o outro. Era extremamente proibida a presença masculina num quarto onde uma mulher dava à luz.

–– Costume estúpido! Eu sou um médico! – Grunhiu Leor, ao ouvir mais um grito agudo da irmã. Ele estava irritadíssimo.

–– Ela vai ficar bem, não é? – Perguntou Hadin aflito, pela milésima vez.

–– Sim, ela vai ficar bem! Agora parem de dar voltas que vocês estão me deixando tonto! – Resmungou Tenazd, sentado num banco de madeira encostado na parede.

Duas empregadas passaram carregando uma bacia com água e outra com panos limpos. Quando abriram a porta, Leor e Hadin tentaram enxergar alguma coisa, mas as mulheres foram mais ágeis ao fechá-la novamente.

O trabalho de parto já durava horas. Nemat, suada e exausta, mal tinha forças para gritar. Shari estava ao seu lado, em prantos. A amiga tinha segurado o pulso dela com tanta força que a mão ficara branca. A parteira repreendeu novamente:

–– Pare de chorar, você precisa encorajar sua amiga!

–– Não consigo! – Soluçou Shari, em lágrimas – Eu não quero mais ter filho! Eu não quero passar por isso!

–– Tarde demais... – Comentou Collina, do outro lado de Nemat, olhando para a barriga de Shari.

–– Minha rainha, – gritou a parteira – Fique conosco! Está quase! Vamos lá, mais uma vez, força garota!

–– Eu não... Não posso... – Sussurrou ela, ofegante.

–– Não desista! O primeiro sempre é mais difícil, força!

Nemat voltou a apertar os pulsos de Collina e Shari, com um grito de rasgar a alma. Ela pensava na mãe, como uma última fonte de coragem.

Os primeiros raios de sol deixavam o céu num tom de roxo e azul escuro, quando um choro de bebê encheu o castelo de alegria. Hadin parou de andar e aguardou ansiosamente que a porta do quarto se abrisse. Leor, ao lado, mal conseguia respirar.

Quase meia hora depois, Shari abriu a porta do quarto, permitindo que as dezenas de empregadas e a parteira saíssem do cômodo. Ela olhou para Hadin e sorriu emocionada:

–– Parabéns, papai. Seu filho tem a força e a beleza de um príncipe!

Com os olhos cheios d'água, Hadin entrou no cômodo. Já estava tudo limpo e organizado, com a janela entreaberta por onde entrava uma gostosa brisa, balançando as cortinas. Nemat parecia dormir, com um pequeno embrulho do lado.

Ele caminhou até ela lentamente, o coração explodindo de alegria. A criança dormia tranquilamente: tinha bochechas gordinhas e rosadas, uma boquinha e narizinho delicados, além de um cabelinho ralo, tão louro quanto os raios de sol que começavam a iluminar o quarto.

–– Hey... – Sussurrou Nemat, com um sorriso cansado.

–– Ele é lindo... – Comentou Hadin, com a voz embargada, afagando o rosto da esposa.

Nemat pegou o bebê com toda a delicadeza de uma mãe de primeira viagem e o entregou para o pai.

Para Hadin, o sentimento de segurar o filho pela primeira vez parecia que ia consumir sua alma. Era uma alegria tão profunda e uma vontade avassaladora de ver aquela criança feliz, de vê-la crescer em segurança... Saber que ele fora um dos responsáveis por trazer aquele pequeno ser humano à existência o fazia se sentir incrivelmente bem, como se tivesse cumprido a mais importante missão da vida dele. Ou como se ela estivesse apenas começando...

–– Como é o nome dele? – Perguntou, com um nó na garganta e os olhos brilhando.

Nemat também tinha lágrimas nos olhos. Ver o marido e o filho ao seu lado fazia com que todo o esforço e dor valessem à pena.

–– Dafar. – Respondeu – O nome dele é Dafar...

–– Eu acho que você não poderia ter escolhido um nome melhor. – Apoiou Hadin, beijando o topo da testinha do bebê.

–– Posso entrar? – Perguntou Leor.

–– Claro! – Hadin olhou para o amigo com o peito estufado de orgulho e um sorriso enorme – Vem conhecer o príncipe Dafar!

–– Que criaturinha linda... – Comentou Leor, sorrindo emocionado – Me deixa segurar um pouco. Oh, ainda bem que ele puxou a mãe, sorte sua parceiro, vai deixar as princesinhas loucas!

Shari, Tenazd e Collina também entraram no quarto para admirar o pequeno príncipe. Depois, Hadin foi até a sacada, onde trombetas foram soadas. O povo se alvoroçou, todos com os olhos fixos no palanque onde eram dadas as notícias da realeza.

Quando o rei apareceu carregando um bebê envolto em panos brancos, o silêncio foi ainda maior. Ele ergueu o filho acima da cabeça e anunciou:

–– Povo de Jope, conheça Dafar, seu Príncipe e herdeiro!

O povo foi à loucura, gritando mais alto do que as cinco badaladas do sino.

Dafar se assustou com o barulho e começou a chorar, então Hadin voltou para dentro e o aninhou confortavelmente nos braços da mãe. Naquele momento, os dois sentiam-se como heróis, como se nada no mundo fosse capaz de atingi-los dali para frente.


♜ ♜ ♜


Uma semana depois e toda a realeza da Suprema Aliança estava reunida no castelo de Jope, não somente para parabenizar os novos papais, mas porque precisavam traçar novas estratégias para a guerra.

–– Nós estamos vencendo. – Dizia o rei de Pong – Mas não é o suficiente para conquistar Mirlence. O antigo Reino de Raboon é muito grande, e poderoso o exército de Palassos...

–– Já nós estamos perdendo. – Falou Leor, num semblante obscuro – Não quero preocupá-los, mas estamos sendo atacados por Tenários e Mirlence, não sei até quando vamos suportar.

–– Nossos reforços não foram o suficiente? – Perguntou a rainha de Avite.

–– Fazemos o que podemos para ajudar vocês e Pong. – Apoiou o rei.

–– Foi uma ajuda, com certeza, mas não o suficiente. – Respondeu Shari.

–– E quanto aos canhões? – Apesar de não ser rei, Tenazd sempre participava das reuniões, afinal ele era o cientista mais renomado do Ocidente. E talvez do Oriente também – Enviamos uma nova remessa para todos os frentes que solicitaram com urgência.

–– Vocês precisam acelerar aquela produção, não chega a ser uma vantagem sobre Palassos, apenas nos impede sermos derrotados! – Bufou Leor.

–– Precisamos de uma mágica! – Resmungou Nemat, com Dafar dormindo nos braços.

–– Precisamos de ciência! – Contrapôs Tenazd.

–– Precisamos de barcos! Dúzias deles! – Falou, de repente, Shari, levantando da cadeira.

–– O que pretende fazer com eles? Pescar?! – Grunhiu a rainha de Pong. Parecia que os gigantes estavam constantemente de mal humor.

–– É, vamos tentar pescar sua inteligência. – Provocou Shari, irritada com eles – Não foi no mar que perdeu seu cérebro para uma sereia?

–– Veja como fala comigo, vermezinha! – Num estrondo, a gigante ficou de pé, derrubando e quebrando sua cadeira.

–– CHEGA! – Gritou Nemat, fazendo o bebê chorar. – Oh, céus, Hadin, por favor...

–– Já sei, querida, vá...

Ela levantou vermelha de raiva e saiu da sala. Tinha sido difícil fazer o filho dormir e agora teria todo o trabalho de novo.

–– O que quer dizer com isso? – Perguntou ele, assim que a esposa deixou o cômodo.

–– Pong precisa fazer o exército de Palassos em Mirlence recuar, só assim Mulber terá alguma chance. Ou seja: nosso próximo passo deve ser libertar Raboon. Só que fica meio complicado com nossas forças tendo que se dividir em tantas direções diferentes.

–– Onde os barcos entram nessa? – Perguntou Tenazd, embora já soubesse a resposta.

–– Vamos fazê-los se dividirem também. Podemos fazer um exército de barcos, que partiriam de Avite rumo a Mirlence. Apenas tomaríamos cuidado para não navegar em alto-mar, iríamos costeando a terra.

–– Parece uma boa ideia, mas os palassins atacariam assim que vissem os barcos. – Observou Leor.

–– A única maneira de dar certo seria se os barcos não fossem vistos, correto? – Perguntou o rei de Avite.

–– Sim. Mas isso não é possível, afinal se os barcos forem longe demais, correm o risco de serem atacados pelos dragões marinhos. E se ficarem a uma distância segura, serão vistos da terra. – Hadin estava um pouco frustrado. Aquele era um bom plano, porém impossível de ser executado.

–– Precisamos do elemento surpresa... – Concordou Shari, decepcionada.

–– E se eu disser que há uma maneira de fazermos seu plano funcionar? – Perguntou a rainha de Avite, com um semblante misterioso.

–– Como assim? – Tenazd aprumou a postura, curioso.

–– Faremos os barcos desaparecerem. 

A gargalhada foi geral, parecia uma ótima piada.A rainha não riu. Ela falava sério. Quando perceberam isso, todos se calaram,atônitos e curiosos demais. Com um sorriso torto, explicou como fariam aquelamágica.    


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Se você acha que as guerras não podem ficar mais criativas do que abelhas, ratos e dragões... Preparem-se para mais uma. Aliás, o próximo capítulo é um dos meus favoritos!

O que vocês acharam do pequeno Dafar?? *-*

E o filhote da Shari e do Leor, é menino ou menina? hehe


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As lendas de Saas
Escrito e publicado por: Becca Mackenzie

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