04: O primeiro encontro
IV: O primeiro encontro
Nemat estava sentada numa cama, com as pernas e mãos amarradas. Ao seu lado estava um jovem negro de, aparentemente, vinte anos. Ele tinha o cabelo ralo, olhos brilhantes e lábios carnudos, numa beleza que não combinava com as palavras ameaçadoras. Nemat tinha acordado há poucos minutos e desejava ter continuado inconsciente... Não tinha dito nenhuma palavra, mas sabia que não demoraria muito para fazê-lo.
–– Eu vou te contar o que vai acontecer... – O garoto amolava um facão como quem não quer nada, sentado propositalmente perto dela, na intenção de fazê-la se sentir encurralada – Os outros estão amarrados em troncos, no pátio do nosso acampamento. Eles estão sendo torturados. – Nemat engoliu em seco, sentindo um tremor percorrer o corpo – Mas você pode ajudá-los, é só começar a falar: de onde você vem, quem é você e o que fazia aqui. A cada mentira que contar, traremos o dedo de um amigo seu, a começar pela garota.
–– Taipho!
Nemat e o jovem ergueram a cabeça, era Sical na porta da tenda. Ela estava com lágrimas nos olhos.
–– Sical, como você quer que eu interrogue essa vadia palassiana se você... – Dizia Taipho, levantando-se irado.
–– Dobre a língua, rapaz! – Sical entrou na barraca e ajoelhou-se diante de Nemat – Alteza...
–– Mas que merda é essa?! – Exclamou o garoto, chocado.
Sical levantou-se e cortou as cordas que prendiam Nemat. Enquanto isso, Taipho estava incrédulo, perguntando coisas como "o que está acontecendo, você enlouqueceu?", porém Sical o ignorava. Nemat estava de olhos arregalados, sem entender nada. O homem estendeu-lhe a mão para ajudá-la a se levantar e Nemat teve a impressão de que aquilo não era um convite. Relutante, levantou-se e ele perguntou:
–– Você é a descendente real da sobrevivente do Dia Vermelho?
–– Eu não acredito... – Disse Taipho, batendo com a mão na testa, só então entendendo as esquisitices do líder do grupo – Irmão, você não está pensando que o Sábio da Montanha tinha razão, está? Ninguém da hierarquia sobreviveu, todos viram os corpos expostos nas estacas!
–– Eles expuseram os corpos em estacas?! – Nemat deixou escapar, chocada.
O corpo de um morto no Ocidente de Saas era a coisa mais perto do sagrado que eles tinham, sabia disso pelas aulas da mãe. E também sabia que o que os palassins tinham feito ao expor os corpos daquela maneira era quase uma profanação...
–– Sim, mas você saberia disso se realmente fosse a descendente real. – Nemat sentiu a ameaça naquela frase de Sical.
–– Como eu poderia saber se o sobrevivente já tinha fugido quando isso aconteceu?
Sical deu um leve sorriso e Nemat percebeu que aquilo era um teste, um que ela felizmente passara.
–– Se você é realmente a descendente real da Princesa Ravel, então prove. E se não puder provar, mataremos todos vocês pela ousadia de fingirem ser da realeza. – Ordenou o líder dos Guerreiros Exploradores.
Ela abaixou a cabeça e disse, torcendo para que eles fossem jopes fiéis ao antigo Reino:
–– A prova está na minha mochila.
Sical mandou o irmão menor, Taipho, ir buscá-la. Minutos depois o jovem voltou trazendo todas as mochilas do grupo, com a ajuda de uma amiga.
–– Não sabia qual era a sua...
Nemat agradeceu e pegou, no fundo da mochila, o pequeno baú com o símbolo de Nalahu. Girou a coruja e a tampa abriu, revelando as joias. Pegou, como prova, o anel do avô, porque sabia que o símbolo dele era inesquecível e infalsificável, era com ele que os documentos reais eram selados.
–– Reconhecem a marca do anel do seu antigo rei?
No mesmo instante, Taipho, Sical e a jovem que ajudara a trazer a bagagem, caíram de joelhos diante de Nemat, pasmos. Eles estavam com a mão direita sobre o coração e a cabeça abaixada, em sinal de subordinação, e Nemat sentiu o coração apertar diante daquela prova de fidelidade.
–– Minha alteza, imploro humildemente perdão pela maneira como a tratamos... E à sua família. Merecíamos a morte. – Disse Sical, de cabeça abaixada.
–– Oh, não, não... Levantem-se, eu os perdôo! – Eles levantaram, constrangidos.
Não sabiam como reagir. Sonhavam com o dia em que um sobrevivente real apareceria para tomar o Reino, ou então que um jopiniense muito corajoso desafiasse o Império, porém nunca imaginaram que isso pudesse realmente acontecer, aquele sempre fora um desejo meio utópico.
–– Meu nome é Nemat, sou filha da princesa Ravel e do príncipe Dafar. – Ela deu de ombros – Não sei se vocês sabem que minha mãe já estava grávida quando... – Nemat suspirou, nunca gostava de terminar aquela frase.
–– Nós nem tínhamos certeza se sua mãe tinha sobrevivido! – Sorriu Taipho.
–– Não?! Mas, então, como... Achei que sabiam pela maneira como você apareceu aqui. – Disse a princesa, olhando para Sical ao dizer a última frase.
–– É por causa do Sábio da Montanha. Ele jurava que, no Dia Vermelho, tinha se aproximado mais do que o permitido dos corpos e, antes que os soldados o arrastassem de volta para a multidão...
–– ...Ele viu que o corpo que tinha sido exposto como sendo o da sua mãe, na verdade, não era. Então, ele pressupôs que ela tinha escapado. – A garota completou a frase de Sical.
–– Ah... – Nemat suspirou. Acho que isso estraga o nosso elemento surpresa – Quer dizer que todo mundo sabe que houve uma sobrevivente.
–– Nem um pouco, minha alteza, – Disse Taipho – todos pensam que o Sábio da Montanha é louco. Depois de alguns anos tentando convencer a população de que a princesa tinha escapado, sem que ninguém acreditasse nele, acabou abandonando a esposa e fugiu para a Cordilheira Branca. Ele vive numa caverna e se sustenta com o que ganha dando conselhos.
–– Por isso ele ficou conhecido como o Sábio da Montanha, pelos conselhos que dá. – Completou a jovem sorrindo.
–– Eu adoraria saber de tudo o que aconteceu durante os vinte anos que se passaram, – Disse Nemat sorrindo – mas é que eu realmente não consigo pensar em mais nada: onde estão os meus amigos?
Os três se entreolharam preocupados e saíram porta afora, com Sical se explicando pelo caminho.
–– Estão cada um em uma tenda, tinham que ser questionados. Já voltamos! Não se incomode, alteza, pode esperar aí... – E saíram a fim de libertar os outros.
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Quando Nemat saiu da tenda, sob os protestos de Sical, percebeu uma cena... engraçada, diria, se não fosse meio trágica: Leor estava amarrado a um tronco no meio do acampamento de tendas, ele corria ao redor da estaca, gritando. O motivo? Um guepardo. O animal corria em círculos ao redor dele, se divertindo à beça.
–– Velho maluco, tira essa besta irracional de cima de mim! Idiota, você é um perigo pra humanidade!
–– Pelos monstros marinhos, o que é isso?! – Disse Nemat, horrorizada. Agora ela entendia por que Sical não queria deixá-la sair.
–– Nalco, tire a chita de perto do garoto! – Ordenou Sical, sem tentar se explicar.
–– O que está acontecendo? – Gritou o velhinho, que já era meio surdo.
Enquanto Taipho tentava explicar para Nalco o que se passava, Sical segurou a chita e a afastou de Leor, com dificuldade, pois o guepardo não queria parar de brincar tão cedo. Nemat foi até o amigo e o desamarrou, abraçando-o logo em seguida. Leor estava ofegante e suado.
–– Me deixa longe do velho, ou juro que mato ele! – Nemat riu da ameaça.
–– Calma, garoto, precisávamos interrogar vocês. – Disse Sical, se aproximando e estendendo-lhe uma camisa.
–– Sou um homem, não um garoto. E aquilo não era interrogar! – Leor arrancou a camisa da mão do líder dos exploradores – Onde está a Shari?
–– E Hadin! – Lembrou Nemat. – Oh, e Tenazd.
Eles mal tinham acabado de falar quando Hadin e Tenazd chegaram acompanhados por boa parte dos exploradores. Sical recebeu uma informação e voltou-se para o grupo de estrangeiros, que se cumprimentavam.
–– A garota ainda não acordou, estava muito desidratada quando a encontramos.
–– Quero vê-la! E cadê meu lobo?! – Leor falava cuspindo ódio.
Sical não teve tempo de responder, porque Nalco apareceu correndo, com Marboh latindo atrás dele.
–– Lobo feio, AAAAAHHHH!
Todos começaram a rir, principalmente Leor.
–– Bem feito para você. Muito bem, Marboh!
–– Eu ia soltar ele, mas ele voou para cima de mim! – Gritou o velhinho, ofegante.
Sical ordenou que Collina levasse os estrangeiros e o lobo para a tenda onde Shari estava e depois retornasse, fariam uma reunião de emergência. Assim, a jovem os levou para a tenda e saiu. Leor ajoelhou-se, passando a mão pela testa de Shari: ela parecia dormir e estava quente. Pegou um pano e molhou-o, colocando delicadamente na testa dela.
–– Eles são fiéis à antiga Jope, não são? – Tenazd perguntou, aflito. Ainda se sentia culpado por ter contado tudo à Collina, mesmo que ela não tivesse entendido nada.
Não demorou muito e Shari finalmente acordou. Então, Nemat contou o que tinha acontecido com ela, enfatizando no final que sim, eles eram confiáveis. Shari ouvia os outros contando as desventuras nos interrogatórios, tentando não rir. Para ela, que não tinha tido nenhuma experiência desagradável ali, aquilo ainda seria uma boa piada para contar aos futuros filhos e netos.
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Eles ainda estavam na tenda, conversando, quando Nalco apareceu na porta, chamando-os:
–– Senhores, estão convidados para uma reunião muito especial, por favor, me sigam. – Era engraçado como o idoso só falava gritando.
Seguiram o velhinho até o centro do acampamento. Havia umas cinquenta pessoas de pé num meio círculo, todos muito emocionados. Indicaram cinco cadeiras colocadas num cantinho especial. Quando eles se sentaram, Sical tomou a palavra.
–– Durante vinte anos, nós vivemos sob o domínio de Ortis, servindo a um imperador que não era do nosso Reino, pagando impostos a estrangeiros, sendo ameaçados e reprimidos para que não disséssemos nenhuma palavra contrária ao Império. Mas hoje... Hoje, meus irmãos, é o Dia da Esperança, porque hoje volta para casa uma de nós, a herdeira ao trono, aquela que resgatará a nossa liberdade! – Os ânimos se afloraram e eles gritaram de alegria – Viva Jope! – E eles responderam com um caloroso: "Viva!" – Viva eternamente o nosso Reino!
Dessa vez, até os cinco convidados não resistiram e gritaram "vivas". Sical voltou-se para Nemat e continuou:
–– Alteza, sou o líder desse grupo desde que nos rebelamos contra o Império, e em nome de todos aqui, gostaria de dizer que, de agora em diante, somos seus leais servos. Aonde você for, nós iremos, a sua guerra será a nossa guerra e daremos a nossa vida para que você viva. – E, então, eles se ajoelharam.
Nemat estava emocionada. Tinha sido a líder de cinco pessoas até aquele momento, agora estava responsável por mais cinquenta e não demoraria a ser rainha de milhões. As proporções estavam aumentando rapidamente...
–– Meu amado povo, – ela se levantou – é uma honra tê-los como fiéis aliados! De hoje em diante, Ortis vai começar a pagar pelo pior erro de sua vida, que foi ter desafiado a poderosa Jope! – E os gritos, dessa vez, vieram acompanhados por alguns "Viva a princesa!".
Em seguida, Sical mandou que preparassem um banquete e, uma hora depois, todos comemoravam com o grande almoço. Eles conversavam animadamente, comendo e bebendo, principalmente os viajantes: era a primeira vez que comiam algo melhor que frutas desde que tinham começado a viajar. Porém, apesar de sorrir e ouvir as histórias que lhe contavam, Nemat não prestava muita atenção.
Ela estava preocupada, pois não sabia ao certoqual deveria ser o próximo passo. Eles estavam no Ocidente, tinham encontradopessoas fiéis ao Reino, mas e daí? Como um grupo de cinquenta pessoas, contandomulheres e crianças, tomaria um Reino inteiro? Era impossível, precisavam de umbom plano e ela não tinha nenhum... Ou tinha? Ela precisava de um conselho. É, Sábio da Montanha, espero que você nãoseja louco como dizem, porque estamos indo até você...
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Momento curiosidade:: se fosse você no lugar deles, tem alguma ideia de como faria para tomar o reino? Acham que esse Sábio da Montanha vai ajudar?? rsrs
Não esqueçam de clicar na estrela! :D
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As lendas de Saas
Escrito e publicado por: Becca Mackenzie
Wattpad.com | 2014
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