VOICE
A história costuma ser sempre a mesma: você olha para aquela garota, ela está sentada ou em pé com as amigas, bebendo, conversando e é como uma cena em slow motion. Você nota o movimento das mãos afastando o cabelo do rosto, a curvatura do sorriso, a cabeça inclinando sutilmente expondo um pescoço longo e sensual, uma luz incide nos olhos e eles faíscam. É o momento que você está menos perceptível ao que realmente está acontecendo. Não se dá conta de que está sendo tragado para uma dimensão na qual se fizesse ideia, talvez fugisse enquanto pudesse porque uma vez que é absorvido nada mais será como antes. A diferença está em como termina - ninguém sabe, mas uma coisa é certa: inesperado ou surpreendente.
Agora, remova todos os detalhes da cena – mãos, cabelos, sorriso, luz. Sim, exclua tudo e pinte de escuridão, o tipo zero enxergar qualquer coisa. Você estende os braços na esperança de sentir alguma coisa, de ter algo em que se apoiar naquela insanidade obscura, pode ser que durante um tempo tenha autocontrole para não gritar, mas conforme anda a procura de uma saída, o monstro se liberta no íntimo. Pode ouvir o seu rosnado, sentir o cheiro, os passos rastejando no solo do seu coração e quando menos esperar você grita.
Isso tudo foi para que entendesse a realidade, a minha. Eu era um moleque como outro qualquer aos catorze anos, queria ser piloto, até que não jogava mal futebol e estava já com dilemas da puberdade, até que uma doença degenerativa que até então ninguém nunca tinha ouvido falar apagou tudo, mais especificamente, queimou meu globo ocular de dentro para fora. Houve outros casos semelhantes e descobriram depois que foi uma bactéria mutante resultado fracassado de uma experiência biotecnológica.
O lado bom é que o tempo passou, aprendi a lidar com a tragédia e a medicina evoluiu astronomicamente de forma que hoje anomalias irreversíveis são – como diz o clichê- coisas do passado. Levou cerca de dois anos para que eu fosse contemplado pelo programa Restaur-1, o que nem me pareceu tanto tempo. Para não cansar ninguém com detalhes, de forma bem sucinta, o Restaur-1 é uma iniciativa conjunta de corporações e fundações científicas que desenvolveram as bio próteses, órgãos e membros do corpo humano capazes de substituir perfeitamente os originais.
Meu primeiro dia no programa precisava ter um pouco de complicação porque as coisas nunca são muito perfeitinhas na minha vida. Na noite anterior, sai com amigos para comemorar, algo mais do que natural para acontecer já que estávamos sempre procurando um pretexto para entornar bebidas, dançar e, bom, com alguma sorte acordar no dia seguinte com uma beldade. No meu caso era um tanto complicado ter essa certeza e não podia contar muito com o estado zero sóbrio dos meus amigos. Fato é que não acordei com ninguém ao meu lado, apenas uma dor de cabeça que me fez pensar se teria de incluir como parte do programa.
Meia hora de atraso e uma leve suspeita de errado em minha roupa chego ao prédio onde seria realizado o procedimento. Sou conduzido a uma sala com um leve aroma de baunilha acomodado em uma cadeira com estofamento de gel do tipo que abraça o corpo e avisado para aguardar. Os atrasados são uma classe de pessoas condenadas a mesma categoria dos fraudadores, embora a maioria dos que esperam demonstre compreensão depois de meia dúzia de desculpas razoáveis. De qualquer forma não se engane, você perdeu quase todos os direitos, entre eles reclamar da demora em ser atendido, café ruim ou água quente. Abaixe a cabeça e aceite com um sorriso.
Estava resignado com minha sentença, suportaria horas de silêncio com baunilha. O que era aquilo diante da possibilidade de enxergar novamente? Estava pensando nisso quando ouvi um estalar de línguas juntamente com menta, canela e alecrim. Como não percebi antes que tinha mais alguém na sala? Entre a saída do sujeito que me conduzira até ali e a percepção, houve um lapso de uns três minutos, o que já era muito para quem estava acostumado a notar um alfinete caindo no chão.
- Que palavra teria 11 letras e tem a ver com explicar parcialmente? – a pergunta não me surpreende tanto quanto a voz.Quase não me dou conta das palavras, absorvido por ela como se mergulhasse dois segundos em um mar de devaneios, perdido, flutuante. Era como uma caricia interior.
-Alô? Será que poderia me dar uma dica? – ela insiste porque eu levo tempo demais no limiar do encanto e da realidade.
-Desculpe...é que estou pensativo demais.
-Huuum, ótimo, então pode me ajudar.
- Palavras cruzadas? Achei que ninguém mais fizesse isso.
Seria demais comparar um breve riso ao calor do sol pela manhã? É tudo o que pude pensar e ainda assim talvez seja menos do que realmente era.
- Palavras cruzadas é o tipo de coisa que jamais deveria acabar e esse aplicativo é simplesmente fantástico com milhões de variáveis, níveis e... – ela suspira- Calma, Adna. Desculpa, é que eu me empolgo as vezes.
-Ei, tudo bem, eu também acho incrível palavras cruzadas, embora eu não jogue faz um tempo. Mas vamos ver se posso te ajudar. Então, temos 11 letras e a informação. Já conseguiu alguma letra?
- Duas até agora: u e t
- U e T, explicação parcial...qual a posição das letras que achou?
- Bom, U segunda letra e o T, deixa eu ver, huuum, sexta posição.
Nada me vem à mente. Um bloqueio como um grande muro de concreto levantado na hora. Talvez a ânsia em tentar ajudar aquela voz e ter como recompensa ouvi-la por mais tempo. Poderia ser tanta coisa e de repente aquilo assumiu uma importância maior que o mundo. Cogito até mesmo em trapacear usando uma consulta mental na web, ela não teria como saber, mas isso seria banalizar o momento e o jogo.
- Uma explicação parcial é algo incompleto, uma meia informação – digo, procurando criar uma linha de raciocínio – Aquilo que não é expresso claramente pode ser...
- Subentendido! – ela solta um grito sem qualquer constrangimento, o que me traz uma sensação de leveza – Mas 11 letras, então só pode ser subentender. Isso!
Som de bolhas pipocam. Ela está digitando ao invés de usar comando vocal. Intrigante em tempos de praticidades preguiçosas.
- Como se chama? – Pergunta
- Roberto.
- Muito prazer, Roberto, eu sou a Adna. Obrigado pela ajuda. É o seu primeiro dia aqui?
Eu me remexo na cadeira.
- Sim, é. Só estou um pouco atrasado.
-Huum, isso complica as coisas se considerar que a doutora Estelle é meio britânica com essa coisa de horário. – Quase certeza que ela gesticulou aspas enfatizando "britânica" mesmo ciente de que não faria diferença.
- Está sugerindo que ela vai me dar uma lição para não chegar atrasado?
- Ah, não, não. Estou só alertando que provavelmente ela vai fazer questão de jogar indiretas sobre seu atraso. Mas não esquenta que no fundo ela é super.
Tento abrir o melhor sorriso. Tento. Adna deve ter notado que expressei um algo amarelo e temeroso.
- Olha, se você quiser pode passar a minha frente, assim eu consigo fechar o jogo aqui.
- Não, por favor, isso seria até abuso da minha parte. Culpa minha ter me atrasado, sabe, inventei de comemorar com uns amigos e bom, acabei perdendo a hora.
Um breve silêncio. Falei alguma coisa errada? Falei demais? Começo a sentir uma alfinetada no peito. Antes que eu jogue a infame pergunta, ela me salva:
- Você fez mais do que certo. É uma mudança radical em sua vida. Merece comemorar.
- É, vai ser bem radical mesmo. Sinceramente, nem sei como vou lidar com isso.
- Da melhor maneira, Roberto. É um privilégio e deve aproveitar o melhor que puder.
- Obrigado. Acho que só estou um pouco nervoso.
- Sei como é. Também estava apavorada e ao mesmo tempo ansiosa com essa nova possibilidade. Mas sabe o que é legal? A gente se acostuma mais rápido do que a perda.
Saltos finos estalam no piso. Citrico e intimidador, o perfume rebate em minhas narinas desnorteando-me do momento onírico que experimentava ouvindo Adna. Uma voz áspera como lixa de madeira raspa o ar:
- Adna Velasques, por gentileza.
Adna se levanta, não sem antes me presentear mais uma vez:
- Já que você me ajudou, o que acha de eu esperar sua consulta?
O instante da cena slow motion da garota no sol em modo looping. Ouviria mil vezes aquela frase, inspiraria todo o aroma adocicado dela e jamais enjoaria. Como dizer não?
Daria tudo para ver o seu sorriso com minha afirmação. Não sei se realmente ela sorri, mas a julgar pelo jeito efusivo, deduzo que sim. Uma despedida breve e estou sozinho de fato na sala de espera.
Uma hora e meia depois sou chamado. Adna confirma que vai esperar e consigo devolver um sorriso sincero. O consultório, assim como tudo na maior parte do prédio tinha o cheiro do novo, do imaculado. Uma música instrumental sibilava ao redor. Não era a doutora Estelle quem tinha cordas vocais de lixa e sim sua assistente. Estelle tem um misto de agudo, coisas esterilizadas e vida contra o relógio, não como a maioria e sim de uma maneira obsessiva.
Enquanto explica as formalidades do procedimento de A a Z, me perco pensando o que teria levado Adna àquele lugar e em qual estágio do tratamento estaria. Não tivemos tempo para papos hospitalares, mas iria acontecer de um jeito ou de outro.
Se a doutora Estelle arremessou indiretas sobre meu atraso, não percebi. Na verdade, se ela me perguntasse se entendi tudo o que dissera, não poderia responder mais do que dez por cento. O essencial eu sabia por tudo que pesquisei, logo não creio que tenha perdido tanta informação.
Logo após, Adna sugere tomarmos um café e a conversa hospitalar se torna uma possibilidade distante ou inadequada para aquele dia. Evito falar tanto apenas para ouvir e ouvi-la. É uma voz transcendental - a entonação, o ritmo, quase uma música que nos segura pelas mãos, nos convida a saltar além dos limites da existência, nos desprender de todo tipo de mediocridade. A tarde se vai, emendamos a noite com tantos assuntos que eu sequer imaginava ser capaz de ter. Lá pelas sete e meia, resolvemos nos despedir mas com a perspectiva de não perder o contato. Ela demonstra expectativa sincera e não uma gentileza barata. Chamamos ao mesmo tempo o transporte e só não vamos juntos porque moramos em partes opostas da cidade. No último segundo, antes dela entrar no carro, pergunto:
- Estou curioso com uma coisa: O que foi restaurar?
Um riso gracioso. Ela responde:
- É o que está ouvindo.
No sentido mais visceral nossas vidas se conectaram. Destino, astros, conspirações do universo, plano divino, o que quer que fosse, no primeiro momento que ouvi Adna fui tragado para a dimensão a qual estaria exposto a todos os tipos de riscos. Vulnerável, incerto, vagando submerso em emoções que pensava estarem adormecidas.
Sua história não tinha proporções como a minha, porém não menos trágica. Muda desde o nascimento devido a uma deformação nas cordas vocais, nunca teve noção do que seria ouvir a si mesma. A vida era uma imersão silenciosa e por mais que a tecnologia dos tradutores digitais ajudasse transmitindo seus pensamentos era de um modo rudimentar demais comparada a fala humana. O Restaur-1 praticamente gestou a sua voz e de uma forma que nem mesmo ela tinha noção de quão intensa e poderosa era.
Quanto ao meu tratamento, ainda levaria cerca de dois meses até conseguir enxergar totalmente.
Percebemos rápido demais que o que sentíamos um pelo outro era maior do que nós mesmos. Era fome, sede, ar. Fogo em noite fria, chuva em calor desértico. Planos eram evitados, exceto a próxima musica, o próximo passeio, a próxima vez na cama. Eu morria e renascia ouvindo-a e sentindo seu cheiro. Alimentava cada vez mais o desejo de ver o seu rosto, olhos, corpo. Porém, toda vez que mencionava isso, demonstrava um certo desconforto. Ficava distante, apagada. E quanto mais se aproximava as etapas mais avançadas do tratamento na qual meus novos olhos começariam a discernir formas, ela se empalidecia em uma personalidade insegura.
Uma noite, a dois dias da cirurgia, deitados no chão de uma casa de praia, abraçados e desnudos, ela atira uma pergunta:
- E se depois que você enxergar não me achar bonita?
Nesse momento tento acariciar o seu rosto, mas ela segura minha mão, como sempre fazia diante desse meu gesto e me conduz para os cabelos. Jamais questionei isso e ela nunca se preocupou em explicar, era um acordo silencioso que ficou subentendido entre nós. Mas aquele questionamento provoca uma ruptura. O muro racha e não hesito em tentar abrir mais.
- Por que está perguntando isso? Por que nunca deixa eu tocar seu rosto?
Silêncio. Se havia algo que mais me angustiava era o silêncio dela. Eu não imaginava a vida sem aquela voz senão em uma existência corrompida e triste. Tinha a noção reservada de razões que a motivavam a agir daquele jeito, todavia ignorava porque já estava apaixonado o suficiente.
Adna senta, acaricia meu peito com um dedo.
- Seria egoísta demais se eu dissesse que não estou empolgada com seu tratamento?
Hesito em responder. Meu peito se comprime como uma esponja, mãos de ferro espremendo. Como ela podia pensar uma coisa daquelas? Logo ela? Sim, estaria sendo egoísta e não só isso como também cruel, tenho vontade de dizer. Inspiro fundo, peso as respostas que deveria ou poderia dar e só consigo expressar uma coisa:
- Você me ama?
- Por amar tanto você é que sou egoísta e também entusiasmada com a ideia de que possa voltar a enxergar. Quer dizer, estamos bem desse jeito e fomos unidos pelo programa, mas o meu maior medo é que o que ele pode mudar entre a gente.
-Adna, você mesma disse que nos acostumamos mais rápido do que a perda. Eu não posso ver a cor dos seus olhos, o formato da sua boca, as linhas do seu corpo. Pode parecer até supérfluo porque posso sentir você de outras maneiras sem precisar dos olhos, mas quero poder ver fotos nossas, quero saber como é seu sorriso. Como ele é? Quero saber como você fica usando uma roupa que lhe dei de presente ou um cordão. Adna, quero ver você com meus próprios olhos.
Sei que ela luta contra o choro, sua respiração entrecortada denuncia aflição. Ela se obscurece naquele silêncio que me congela. Então pega minha mão direita e deixa deslizar pelo rosto seguindo da tempora até pouco abaixo do queixo. Sinto uma suave protuberância sob os dedos nesse trajeto, como uma linha em formato de lua. Em seguida segura minha mão nas suas.
- Meu pai reformava carros a combustão para colecionadores. Quando completei dezenove anos ele me deu de presente um Camaro 78 vermelho, lindo. Naquela época ainda não havia tanta restrição a carros conduzidos manualmente, mas eram poucos os lugares onde era permitido rodar. A leste da cidade havia um velho autódromo onde aconteciam corridas ilegais. Eu não imaginava que meu pai conhecesse esse tipo de lugar, muito menos as pessoas que participavam daquilo. Uma noite ele me levou para correr. Eu estava mega apavorada e super animada. O máximo que havia dirigido foi em ruas de bairro no máximo a sessenta por hora, o que já podia render uma multa. Bom, mas ali simplesmente não havia regras além de acelerar e curtir, era uma versão do mundo que não conhecia, o tempo do meu pai. Estávamos felizes e curtimos cada minuto juntos, mas em uma ultima volta da corrida eu perdi o controle do carro. Foi como se o volante tivesse ganhado vida e girou de um jeito que nos fez capotar. Não lembro de quase nada do que aconteceu depois, só o cheiro de ferro, gasolina, sangue. Lembro de gritos e uma sensação desesperada também de gritar. Acho que foi o que mais me angustiou, não poder chamar pelo meu pai. Três dias depois do acidente, soube que ele não sobrevivera. Minha cara não estava melhor do que o Camaro, mas fizeram o melhor que podiam na ocasião. Só ficou essa cicatriz. Decidi mantê-la para que toda vez que olhasse no espelho lembrasse do melhor e pior momento com meu pai.
Puxo Adna para mim, seu corpo com aquele calor brando e cheiro inebriante. Ela deita a cabeça em meu ombro e o toque dos seus cabelos na pele me arrepiam.
- Nada vai mudar entre a gente, Adna.- sussurro, contendo com todas as forças receios de que não era exatamente verdade.
No dia da cirurgia ela demonstra o entusiasmo de uma torcedora na final de um campeonato. Toda aquela angustia e medo havia partido para algum lugar distante e trouxera de volta a garota da sala de espera que me deixara prostrado com sua voz.
O procedimento leva doze horas sem complicações. Ainda não consigo enxergar, mas não havia escuridão e sim um cinza pálido. Adna diz que meus olhos novos são de um verde intenso lindo, cor que eu deixara ela escolher quando me deram as opções. Minha ideia inicial era um azul claro quase celeste, mas ela contestou alegando que verde combinava mais com minha pele. Que loucura escolher olhos como se fossem um par de sapatos para harmonizar com as calças. Confesso que ainda encaro com certa estranheza os avanços de hoje.
Os meses passam. Começo a discernir contornos, silhuetas, movimentos em uma tela esbranquiçada. As cores surgem depois em tons pastéis a principio. O verde de folhas, o marrom de terra, prata da lataria de carros, amarelo de um vestido de Adna. Quando as imagens ganham tons mais vivos, as formas se tornam um pouco mais definidas, porém ainda com um esfumaçado. Posso ver o formato do rosto dela, nariz, boca, olhos como se estivesse atrás de um vidro opaco.
Nesse meio tempo decidimos morar juntos em meu apartamento e era como se cada dia a vida fosse temperada com sabores diferentes. Eu me embriagava sempre com a voz de Adna e me encantava com suas formas e a cor de cobre dos seus cabelos gigantes. Era um feliz para sempre inconsequente, sem protocolos.
Até que em uma manhã de domingo eu a vejo pelo espelho. Ela está escovando os dentes, usa apenas uma camisa minha que mal cobre as pernas e é uma visão enlouquecedora. Existe uma diferença entre saber que se está com um mulherão e ter consciência real disso. Foi um choque e por alguns segundos fui tomado por um sentimento de indignidade. O que ela viu em mim? Estava nítida como uma imagem de alta definição. O corpo esguio enfiado em uma camisa branca, pernas torneadas como escultura em bronze suave e por fim, o rosto – Oval, o nariz fino com uma pequena arrebitada, os lábios com o superior marcado em um V, olhos grandes em uma explosão cor de mel clara. No lado esquerdo aflorava uma linha grossa e irregular como uma raiz sugerindo o teor pesado da violência do acidente.
Os olhos de Adna estremecem quando entendem que a vejo. A escova de dentes estala na pia de vidro, uma das mãos procura encobrir a cicatriz.
- Não olha pra mim- ela grita.
- O que? Ei, para com isso.
- Roberto, fica ai.
- Pra que isso?Não tem necessidade. Você só é mais linda do que eu pensava.
- Se chegar perto eu vou embora!
Levanto com as mãos voltadas para ela.
-Querida, vamos manter a calma. Eu preciso que você confie em mim. Você confia?
Adna corre do banheiro para a sala, escondendo o rosto.
-Não olha pra mim, Roberto, não olha!- ela grita com uma angustia dolorosa.
Tento me aproximar lentamente, lutando para não me distrair com todo o cenário que se desdobrava ao redor.
- Por que você agindo assim? Sou eu, somos nós. Nada mudou.
- Cala a boca, cala a boca!
Ela anda de costas até a varanda, sobe em um sofá próximo ao guarda-corpo. O vento brinca com seus cabelos dando-lhe uma aparência desesperada. Um mal estar me deixa tonto. Um passo, uma leve inclinada para trás e Adna poderia despencar vinte andares abaixo. Minha cabeça esta prestes a explodir, meus tímpanos parecem cheios de algodão.
Fico travado há cinco passos de onde ela está. É como se um gatilho tivesse sido acionado e uma bomba de emoções reprimidas explodisse.
- Adna, vamos conversar. Não está raciocinando direito.
Ela me lança uma expressão vazia, seu rosto parece empalidecer.
-Eu já disse para não olhar pra mim.
- Eu não me importo com sua cicatriz! – gritei com fúria, com amor.
- Você não entende!
- O que quer que eu entenda? Que porque agora posso ver você não vou amá-la mais? Isso...isso é uma estupidez, eu não sou esse tipo de pessoa que está pensando. Nada muda entre a gente.
Adna soluça, move a cabeça de um lado para o outro. Seu calcanhar está no ar. Não penso em mais nada. A garota e seus cabelos voando em câmera lenta. Levanta o rosto e uma tristeza.
- Eles me deixaram perfeita e meu pai estava morto por minha causa. Eu não podia conviver com aquilo, por isso...eu...eu...- passou um dedo pela cicatriz, uma mensagem horrivelmente silenciosa.
Uma aeronave roncou no céu como que rompendo a barreira do som. O céu está tingido de rosa e laranja. De algum lugar flutua um jazz borbulhante. Vida e desespero. A luz vocal de Adna se dissolvendo em lamento.
- Você vai me deixar, Roberto, eu sei, sempre soube. Eu só não queria aceitar, queria acreditar que não faria diferença, que éramos tão ligados que não importava o que fosse acontecer.
- Mas é assim mesmo. Por que insiste nessa ideia maluca de que vou te deixar? Já disse que não me importo, que amo você de qualquer jeito desde a primeira vez que te ouvi.
A vida se equilibra e desequilibra por conta de decisões. Dificilmente se sabe o peso que será definido na balança. Eu não podia esperar mais que Adna concordasse comigo, que simplesmente viesse ao meu encontro e resolvêssemos aquilo de uma vez por todas. Corro em sua direção, estendo o braço. Não sei se por conta da minha reação repentina ela se desequilibra. Um pé sobe, outro vai para trás. As mãos tentam agarrar-se a qualquer coisa no ar, seu olhar se ancora ao meu falando coisas angustiadas demais para serem ditas em palavras. Ela sempre falava que era uma mentirosa quando dizia não ter medo da morte. A morte é a piada sem graça da vida que muitos riem até saber que são o motivo dela. A câmera lenta acompanha o meu salto, penso que mesmo que consiga segura-la pelo braço, talvez não tivesse força o suficiente para puxar no tempo certo. Um joelho bate em alguma coisa incendiando uma dor aguda. Fecho os olhos instintivamente, prendo a respiração. Aguardo o pior e essa expectativa sempre é do tamanho da eternidade.
O pior de mim emerge do lamaçal, invoca futuras lembranças fúnebres nos poucos segundos antes de eu me dar conta. A mão de Adna envolvendo meu pulso, as pernas espanando no ar. Estico o outro braço, forço e rolamos pelo sofá até o chão onde por cima dela posso ver sua face mais de perto. Ela está soluçando, gemendo desculpas. Puxo sua cabeça para perto do meu peito, digo que está tudo bem, ela se entrega.
Vejo a garota. Ela mexe os cabelos ondulados, sorri, sugere com um movimento do corpo uma dança. Uma luz dourada metaliza sua pele. Ela sabe que a vejo, sabe que assisto cada detalhe como se me alimentasse daquela visão. Já não há mais cicatriz em seu rosto nem na alma. Quando ela começa a cantar eu fecho os olhos, sou levado para o mais fundo de um êxtase que começou em uma sala de espera e deixo-me perder, me desprender da realidade, dos medos, do futuro. Tudo o que quero agora é continuar abraçado àquela voz que me fez enxergar mais do que podia.
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