OVUM PUER AETERNAM
É justo um homem cercado por uma multidão sedenta pela sua cabeça? Creio que qualquer um em tal situação não acharia. Ali estava quase toda população de Águafria, gente mal-educada, não muito inteligente, mas sabia fazer a melhor cerveja de toda Terraopala. Não à toa fui motivado a apreciar incontidas vezes a iguaria e no júbilo etílico prometer canecos transbordantes para todos os na Taverna Peixe Gato Dourado. Sim, fui o responsável pela festa bárbara que explodiu. Mas em um lapso de sobriedade percebi o que fizera e procurei sair tão discreto quanto rápido. Acontece que o povo de Águafria tem o faro apurado para caloteiros e ladrões. Minha fuga não foi além de alguns metros da porta. Em cada rosto havia uma mensagem: você será desmembrado.
Havia uma lei no vilarejo (estúpida, devo ressaltar na condição de vítima) na qual ladrões, trapaceiros e devedores eram esquartejados e seus corpos expostos na praça como um aviso.Fato é que quem tinha espada fizera questão de ostentar o brilho da lâmina e quem não tinha mostrou punhos.
Teria uma morte indigna sob a alcunha de embusteiro. Mas eis que o destino arremessou os dados concedendo-me graça pois que uma voz se elevou acima da turba:
- O que está havendo?
Todos se voltaram, a princípio, tomados de surpresa, mas logo sucedeu-se a estupefação, o desacreditar dos próprios olhos e sanidade. Não poderia ser menos que isso, afinal fora um unicórnio quem falara e um cujo pelo e crina esverdeados brilhavam como esmeralda. Os olhos violáceos, transpassavam a alma e quem quer que os encarasse sentia-se como que dilacerado.
Prontifiquei-me a desfrutar da benesse e de braços abertos respondi à criatura:
-Ah, meu estimado Selunar! Quão oportuna sua presença!
Um murmúrio ondulou pelo povo. Gestos nervosos, arrastar de passos, mover de cabeças.
O unicórnio relinchou, arranhou o chão com os cascos, ergueu o magnifico chifre perolado.
-Problemas, sir Asteron Caneladeferro?
Pude ouvir eles engolindo em seco, sentir o odor suado de seus temores, até mesmo ver sua justiça homicida fenecer como brasas se apagando. Ora, quem não ouvira falar de Asteron Caneladeferro que atravessou o hediondo Desfiladeiro das Sombras Famintas? Que cortou a cabeça do maligno e verruguento gigante Grumbar libertando o povo de Cascatapetrea? Que sobreviveu quarenta dias no Deserto da Melancolia Cinzenta sem enlouquecer? Sim, sua fama o precedia por todo reino de Terraopala. Quem poderia imaginar que eu, velho, barbado e esquálido seria o lendário cavaleiro? Contudo, não havia palavra mais sagrada que de um unicórnio de jade, embora há muitos anos tenham desaparecido e se ele atestava meu título, não havia lugar para suspeição.
Imbuído de um estado de alívio, acendeu-me o arrojo de propor a todos que voltássemos à taverna onde compartilharia uma de minhas aventuras como compensação pela minha falta. Com urros jubilosos, conduziram-me ao Peixe Gato Dourado, ofereceram um caneco de cerveja e olhares atentos. Depois do primeiro gole dei início à história:
Tempos atrás, os quais talvez a maioria aqui ainda nem fosse nascida ou andasse com as próprias pernas, no reinado de Arture Pédecouro segundo, a rainha Verena Olhodepeixe encontrava-se em grande tormento. Normalmente nesse estado, mulheres expressam-se através de palavras ferinas e incontroláveis ou silêncios gélidos. Mas Verena era uma rainha e seu gênio extravagante a levava a manifestar sua raiva através de decapitações, empalações e todo tipo de tortura possível .Foi uma época em que os escribas preferiram enterrar nas entranhas mais profundas do esquecimento conhecida como a Era Histérica.
O rei estava desesperado, as princesas gêmeas estavam desesperadas, o povo mais ainda desesperado com a crise da rainha. O pior de tudo? Não, não pensem que não havia um porquê. Havia e isso era o mais angustiante porque Verena Olhodepeixe não se conformava com o peso de sua idade. Ela odiava as rugas em volta dos olhos, da boca, que não sumiam depois de sorrir. Odiava as manchas senis que se espalhavam como uma doença pelas suas mãos e braços, odiava seu busto pendente como folhas de um salgueiro chorão. A velhice era sua nêmeses, a sombra encarquilhada e zombeteira que a afligia.
O rei chegara a cogitar que todos os espelhos do palácio fossem removidos e se necessário de toda Terraopala, mas a rainha refutou tal ideia por considerar idiota, afinal ela continuaria velha, mesmo não podendo ver seu reflexo. É certo que o número de criminosos decaiu na proporção que aumentaram os cadáveres, mas chegou um tempo em que bastava a rainha cismar com o cabelo de uma mulher para essa servir de cobaia para experimentos de torturas. A crise ganhou tamanho vulto que chamou a atenção de outros reinos. Terramarilo, Terradiamante, Terrafoccacia entre outros pressionaram o rei a tomar uma atitude e conter a loucura de sua espoda. O problema é que Arture tinha fibra para encarar guerras, dragões e até demônios, mas estremecia só com o levantar das sobrancelhas de Verena.
Terraopala definhava como o corpo da rainha. Acabaram-se as festas das colheitas, de final dos ciclos da lua, da fecundidade e de tudo que fosse lá motivo para se comemorar. As mulheres mal saiam de suas casas e se saíam cobriam-se dos pés à cabeça.
Até que um velho ferreiro-astrólogo, antes de ter o corpo distendido por uma máquina de tortura, revelou que ao sul das terras dos Uivos Causticantes havia um feiticeiro possuidor de ovos de um dragão de cristal. Quem comesse ficaria dez anos mais jovem e envelheceria mais lentamente. Mas muitos tentaram barganhar, atacar, roubar e jamais conseguiram. Acreditava-se que o feiticeiro tinha o dragão de cristal sob seu domínio e era quem destroçava os desafortunados. Mesmo achando aquela história ridícula, o verdugo, também enfastiado da crise de Olhodepeixe, considerou por bem notificar o rei.
Reunido com seu conselho, as filhas gêmeas e a rainha no Salão das Reuniões Extensas, Arture questionou a história do ferreiro astrólogo.
-Como eu nunca ouvi falar desses ovos?
Urzo Denteduro, um de seus conselheiros mais velhos, cego de um olho e profundamente cansado daquela crise, se pronunciou:
- Majestade, Gottolf Fogoagil é o feiticeiro das terras dos Uivos Causticantes. De fato ele tem muitos artigos exóticos e que muitos perderam a vida tentando obter.
- Não interessa! - Gritou a rainha- Amanhã mesmo mandarei um exército para saber se isso é verdade ou não e se esse bruxo velho se recusar vou querer a pele dele hasteada em uma bandeira.
As gêmeas torceram o nariz, o rei abaixou a cabeça com a mão no rosto, Urzo Denteduro tossiu até quase expelir os pulmões.
- Não vamos mobilizar um exército por causa de um boato. Isso é.... idiotice- disse a princesa Amalyn Corderosa.
- Está me questionando? - Rosnou Olhodepeixe.
A princesa inspirou fundo e girou os olhos.
-Mãe, ninguém mais aguenta sua loucura. Todo mundo fica velho, é assim que é. Conforme-se!
Dizem que o salão pareceu ficar mais frio, os olhos da rainha maiores do que já eram e sua ira se substanciara como uma entidade viva. Então ela sorriu e foi a coisa mais desagradável que presenciaram.
- Vamos fazer o seguinte. Anunciarei por todo o reino que darei ouro, joias, uma ilha com muitos servos e isenção vitalícia de impostos para quem me trouxer os ovos. E mais...a mão da princesa Amalyn Corderosa.
-O que? Mas eu já sou casada!
- Frederico Ventoquente nunca foi digno, estou lhe fazendo um favor na verdade.
A princesa recorreu ao pai. O rei fez um gesto para se acalmasse.
- Olha, juro que prometi a mim mesma não entrar na conversa- começou a princesa Berthilda Cordeabóbora- só que já deu. Será que todo mundo enlouqueceu? Terraopala está afundando, o povo está com medo. Tem gente procurando asilo em outros reinos. Terrabranca desistiu de manter negócios conosco. Mãe, acorda! Seu problema não é velhice.
O velho Urzo recuou. Uma sombra pairou no rosto da rainha como asas de um corvo; se aproximou de Berthilda, tocou em seus cachos ruivos, em seguida puxou o suficiente para curvar a cabeça. Enquanto a menina gritava, disse:
- Eu declaro também que a mão da princesa Berthilda Cordeabobora será concedida. - A rainha soltou a filha, baixou o tom de voz- E querida, não se preocupe com seu marido, hoje mesmo estará viúva.
- Majestade, se me permite- interveio Urzo - O casamento das princesas simboliza a paz com Terradiamante e Terraouro. Esse tipo de oferta pode motivar futuros conflitos. Uma ilha e riquezas já constitui uma premiação mais do que suficiente.
A risada de Olhodepeixe foi como um ranger de portas.
- Enquanto enchermos de vinho os tonéis deles não haverá razões para guerra. Agora, faça alguma coisa útil e anuncie de norte a sul a minha oferta.
Conforme o desejo da rainha, convocou-se em todo reino quem se dispusessem a trazer os ovos de dragão. Mas por temor aos perigos da empreitada ou a frustração de Verena diante um possível fracasso, ninguém se apresentou por um bom tempo.
Todavia, durante o café da manhã real, um servo achegou-se às pressas.
-Majestade, um cavaleiro...ele diz que trará os ovos.
O rei se levantou limpando a barba com o dorso da mão.
-Um cavaleiro? Quem?
- Ele diz ser Asteron Caneladeferro
Arture se engasgou.
-Pelos céus! Mande que entre, homem!
Ninguém esperava que um magnífico unicórnio verde adentrasse o pátio real. A criatura de uma beleza mística provocava um embevecimento tal que quase não se notava o cavaleiro que o montava. Diante do rei, ele prontamente desmontou da sela e se curvou.
- Bem-vindo, Asteron Caneladeferro! -Saudou Pédecouro.
-É uma honra, majestade.
- Não poderia ser melhor- disse a rainha oferecendo um sorriso- O maior cavaleiro aceita minha convocação.
- Certamente, minha rainha e pretendo superar suas expectativas.
Um pigarro. Berthilda apontou o dedo para o unicórnio.
- Posso? - Perguntou
Antes que o cavaleiro respondesse, a criatura falou:
-Mas é claro, princesa Cordeabóbora.
Olhos se arregalaram, queixos caíram.
Berthilda acariciou o pescoço do animal. Era como tocar em seda quente e viva. Tocou o chifre, sentiu como se fosse de porcelana.
-Como se chama? - Ela perguntou.
- Selunar, alteza- sua voz era grave e metálica.
-Quando pretendem partir?
-Nos primórdios de amanhã.
Houve um suntuoso jantar com as melhores iguarias do reino e antes que toda corte se entregasse à alegria etílica, o cavaleiro recolheu-se aos aposentos. Da janela, viu inúmeras luzes nos povoados, velas e rogos aos céus para que ele prosperasse na empreitada.
Antes mesmo que o sol iluminasse os campos de Terraopala, o cavaleiro rumou para o sul .Levava não apenas coragem, como também o rubi Pupila de Sangue que há centenas de anos pertencia à casa Pédecouro representando seu poder .
Após um longo tempo de viagem, adentraram na Floresta Espelunca e sob a sombra das árvores retorcidas e cinzentas o cavaleiro decidiu descansar. Repentinamente, sentiu uma ardência no pescoço. Com sua mão direita estapeou o local e quando viu, sua respiração ficou suspensa. Sim, senhores, pois quão terrível é ser picado por um mosquito-rancor, aquele cuja doença pode apodrecer o corpo de um homem em dias até se tornar cinzas. Tão horrenda é a enfermidade que seus sintomas se manifestam imediatamente e a menos que a vítima beba um pouco de néctar de flor de ossos, ele estará condenado.
Consciente da gravidade da situação, Salunar deliberou-se a correr rumo ao refúgio dos duendes não mais que alguns instantes dali onde encontraria o remédio. Todavia, uma carroça bloqueou o caminho e eis que um gordo e baixo homem o encarou sem o deslumbre que normalmente despertava.
-Deixe-me passar, homem, pois que o cavaleiro bate nos portões da morte.
O homem inclinou a cabeça.
- O que ele tem?
O unicórnio bufou impaciente.
-Não pode fazer nada por ele. Que importa?
-Por que me julga, unicórnio? Pois bem saiba que tenho tudo que todos precisam.
-Por acaso é bruxo?
O homem riu.
-Não, não. Mas tenho algo tão poderoso quanto magia.
-E o que tem para combater a doença do mosquito-rancor?
Á menção do inseto, o homem empalideceu, inspirou fundo e correu para o interior da carroça. Em seguida voltou com um pequeno frasco entre os dedos contendo um liquido âmbar.
- Se o cavaleiro tomar isso, ficará curado.
Salunar apontou o chifre para o pescoço do homem.
- Não tente me ludibriar, humano, posso destroça-lo.
-Creio que será desnecessário.
O homem ajudou Asteron a ingerir o medicamento e disse:
-Aguardemos. A propósito, meu nome é Valneir Trescobres, um humilde mercador .Quem é o cavaleiro e para onde vão, se me permitem saber?
- O cavaleiro é sir Asteron Caneladeferro, o maior herói do reino e rumamos às terras dos Uivos Causticantes.
Se Salunar esperava que o mercador se impressionasse não conseguiu o devido efeito pois que este apenas arregalou os sobrolhos acompanhado de um monótono movimento de cabeça. O unicórnio arrastou as pastas dianteiras em fúria.
-Por mil demônios? Ignora quem seja ou não se importa?
-Desculpe, mas é que já ouvi falar de tantos heróis em Terraopala que é difícil saber quem é quem.
-Blasfemo! Não há herói como Asteron Caneladeferro filho de Tebas Caneladeferro, o implacável esmagador de gigantes e dragões.
-Não duvido, mas perdoe-me a ignorância.
-Não se deve mesmo duvidar de um unicórnio de jade.
De súbito, o cavaleiro estremeceu. De sua boca emitiu-se um som semelhante a pedras sendo raspadas. Ergueu o tronco, empurrou os cabelos negros de sobre o rosto, suspirou.
-Ah! Como disse. - Animou-se Valneir.
-O que aconteceu? -Asteron perguntou.
- Foi atacado por um mosquito-rancor, milorde. – Disse o unicórnio – Este mercador lhe deu um medicamento milagroso que nem mesmo a seiva de flor de osso é capaz de tal efeito imediato.
Asteron sorriu.
- Obrigado, nobre homem. Como posso recompensá-lo? Ouro, prata?
- Em troca, milorde, gostaria de acompanha-los na jornada. Acredito que poderei ser muito útil, pois acredito que pretendem negociar com o velho Fogoágil e ninguém de Terraopala à Terraouro tem tamanha habilidade de negócios quanto Valdeir Trescobres. E eu sei que muitos já tentaram e foram mal-aventurados.
- Como sabe de Gottolf Fogoágil? – Indagou Asteron
-Milorde, conheço muita gente e com elas tanto já conversei que não poderia saber do mago.
-Ainda assim é ignorante quanto ao maior cavaleiro do reino. - protestou Salunar.- Já cumpriu seu propósito, mercador. Contente-se com ouro e honra.
O cavaleiro interrompeu.
-Eu lhe devo a minha vida, não posso fazer menos do que me pediu. Mas entenda que vamos passar por caminhos perigosos. Não sei se posso garantir sua segurança.
Valneir Trescobres fez uma mesura.
- Mesmo ignorando sua pessoa, sir Asteron Caneladeferro, vejo que realmente é um grande e honrado cavaleiro. Não lhe serei pesado, garanto.
-Que assim seja, Valneir Trescobres, vamos às terras dos Uivos Causticantes.
Ao pôr do sol, chegaram a um lago de águas brancas. Ás suas margens havia uma embarcação e um ogro com vestes escuras esfarrapadas. Salunar estacou.
-O Lago das Ilusões Dolorosas, milorde.
-Onde os medos mais obscuros são perscrutados e aqueles que cederem a eles serão tragados para suas profundezas. - Completou o mercador.
Salunar bufou.
-Aquele é Agram, o barqueiro amaldiçoado.
O ogro expôs os dentes imensos e retorcidos, o que seria o mais próximo de um sorriso se ogros fossem ao menos simpáticos.
- Venham, venham. Duas moedas de ouro e Agram os levará para o outro lado.
O mercador sussurrou ao cavaleiro:
- Temos que estar preparados, milorde. Não sabemos o que nos aguarda.
-O que sugere, Valneir Trescobres? - Questionou Salunar com ácido na voz.
- Tudo o que sei é um verso que diz: no Lagos das Dolorosas Ilusões os descrentes não se vão, um pouco de crença para perdição.
-Isso é ridículo. Nem o nome do lago está correto.
- Foi assim que ouvi.
- Faz sentido- pronunciou Asteron – Se o lago provoca ilusões segundo o coração, temos que atravessá-lo descrendo de tudo que vermos.
Salunar relinhou balançando a longa crina.
-Se fosse simples assim ninguém se afogaria no lago.
-Não temos escolha, temos?- Rebateu o cavaleiro.
Uma neblina gélida desceu assim que o barco os levou para o meio do lago. Agram murmurava palavras ininteligíveis ou grunhia enquanto remava. O mercador alertou para que ficassem atentos e vigiassem um ao outro. Asteron se instalou em um banco e desembainhou a espada no colo. A lâmina polida refletia o céu dos seus olhos e mais um par de pupilas amarelas. Um arrepio percorreu a sua espinha. Não havia nada às suas costas. Pressionou o cabo da espada. Ilusão ou não, estaria preparado. Movimentos rápidos à esquerda e direita, vultos se aproximando e desaparecendo na neblina. Risadas. Salunar e o mercador, onde estavam? Alguém ou alguma coisa o chamava. A voz, aquela voz como a consistência do mel balbuciava lembranças amargas. Um rosto pálido, pequeno, Zina. A vida tão breve quanto uma rosa. Sempre prometeu que ia protege-la, mas não pode. Uma doença se alimentou dela. Agora o encarava, as faces cadavéricas, os dedos descarnados esticando-se até sua garganta. O cavaleiro deu um pulo, a espada em posição de ataque.
- Para trás aberração!
O cadáver de sua irmã inclinou a cabeça para um lado e para outro. Arrastou-se para frente. Ruído de ossos arranhando a madeira do convéns. O cavaleiro cerrou as pálpebras. Respirando lentamente, sentou outra vez. Quando abriu os olhos viu Salunar batendo os cascos, escoiceando, correndo em círculos.
- Maldição!
O mercador estava encolhido em um canto, alvo como o luar.
Asteron correu em socorro do unicórnio, mas não pode se aproximar muito. Voltou-se para Valneir, sacudiu-o pelos ombros, estapeou-o.
- Recomponha-se, mercador. Lembre-se do que nos disse.
- Ratos de fogo...queimam...subindo...- gemeu o mercador.
Agram, o ogro, ria na expectativa de unicórnio e mercador serem devorados pelas águas do lago.
Mas o cavaleiro não desistiria tão facilmente. O que lhe ocorreu, mais por impulso do que por iluminação, foi desacordar o mercador com o cabo da espada na cabeça e o unicórnio com um toque da lâmina no chifre (por alguma razão essas criaturas perdiam os sentidos com isso).
O ogro urrou e não fosse estar condenado à função de barqueiro teria esmigalhado Asteron com as próprias mãos.
Em terra firme e despertados Valneir e Salunar, seguiram caminho até uma floresta de árvores avermelhadas onde se ouvia música, gritos e passos. Pesssoas dançavam ao som da canção de uma elfa. Sua voz era como tempestade e brisa. No solo espalhavam-se cadáveres com os pés esfolados até os ossos.
-A Floresta da Dança – murmurou Valneir-Temos que sair daqui. Não podemos escutar a elfa.
Com uma máscara de desespero, Asteron o encarou. Já se encontravam os pés a mover-se contra sua vontade, o mesmo sucedia com Salunar que não só agitava as patas como o chifre.
-Maldita seja, elfa!- Gritou Trescobres sentindo o corpo sendo tomado.
Lutando contra o poder da música, apanhou na carroça um chumaço de algodão de estrelas e enfiou nos ouvidos absorvendo-se em silêncio. Imediatamente fez o mesmo com os outros, libertando-os.
O cavaleiro apontou para o próprio ouvido, depois para as pessoas que dançavam. Valneir concordou com a cabeça, pegou mais algodão e distribuiu entre os dançarinos assinalando como usarem. Conforme deixavam de ouvir a canção, cessavam os passos, até que não restou ninguém sob a maldição. A elfa, tomada de fúria, cantou mais alto, as veias de seu pescoço se dilatavam, mas todos permaneciam parados. Ela cantou mais alto, cada vez mais, até sua voz desaparecer.
Antes de saírem da floresta, os três ainda viram o povo espancar a elfa.
Era noite quando chegaram no ultimo desafio antes das terras dos Uivos Causticantes, o Labirinto das Mágoas. Quem ali entrasse,sucumbiria ao rancor que carregava tendo seus corpos transformados em pedra. Não me deterei muito aqui, meus amigos.Já lhes tomei muito tempo. Saibam que por pouco nossos heróis escaparam das entranhas do labirinto e não fosse a astúcia do mercador, lá estariam até hoje.
O importante é que logo depois chegaram aos portões do castelo de Fogoágil onde foram surpreendidos pelo dragão de cristal. Seu corpo era como que coberto de sóis, os dentes do tamanho de cavalos, garras afiadas como navalhas. Ele veio cuspindo chamas terríveis.
Asteron impeliu Salunar com gritos de fúria, brandindo a espada, erguendo seu escudo feito do metal das terras de Rugido Alto capaz de repelir o fogo. O dragão mergulhava e subia movendo suas asas poderosas. O cavaleiro galopava em círculos, se esquivava, defendia.
Enquanto isso o mercador considerou que o feiticeiro a tudo assistia, de forma que pensou em atrair sua atenção e não havia nada que despertasse maior cobiça do que o Pupila de Sangue.
- Cavaleiro, mostre o rubi! - gritou.
Mas os rugidos do dragão, os gritos de Asteron e os relinchos de Salunar, abafaram o mercador. Ele se viu obrigado a tomar uma atitude arriscada e não muito honrosa. Correu para perto do unicórnio e após pegar o rubi de um alforje, o ergueu acima da cabeça.
Repentinamente, o dragão parou sentado sobre as patas traseiras como um cão.
Os portões do castelo se abriram, um homem alto com uma longa barba, trajes da cor da madeira de carvalho saiu.
-O Pupila de Sangue? O que desejam de tão precioso ao ponto de ofertarem a maior jóia de Terraopala?- Ele indagou.
-Eu, Asteron Caneladeferro, em nome da rainha Verena Olhodepeixe venho negociar os ovos de dragão que conservam a essência da juventude.
-Ah! Os Ovum Puer Aeternam. Tão cobiçados! Principalmente por velhas rainhas. Mas Olhodepeixe demonstra um interesse ainda mais inflamado do que todos. Bom, não vou decepcioná-la.
Com um gesto, um ovo do tamanho da perna de um homem apareceu aos pés do cavaleiro.
-Como espera levar isso? - Perguntou Salunar pesaroso.
-Use minha carroça- sugeriu Valneir que em seguida voltou-se para o feiticeiro- Glorioso Fogoágil, sou um simples mercador com o desejo de ser seu aprendiz. Por muitos anos ansiei a magia, mas a vida nunca me foi favorável.
-Veio conosco porque pretendia se tornar bruxo? - Reclamou Salunar – É um ardiloso.
- Não o condene, Salunar.-disse Asteron- Não vejo mal algum nas ambições de Trescobres. Rogo que atenda ao mercador, ó grande Fogoágil, pois demonstrou não apenas coragem como sabedoria em nossa jornada.
O feiticeiro ficou em silêncio. Seus olhos cinzentos encaravam Trescobres. De súbito, uma voz feminina e possante ribombou:
- Será benéfico entreter-se com ensinamentos, Gotholf.
O dragão, meus amigos. Sim, ele falava e era fêmea, uma bela e magnífica.
- Nunca me arrependi de ouvi-la, Zovra – disse o feiticeiro- E embora não me veja como um mestre, pode ser que valha a pena gastar o tempo compartilhando conhecimento.
E assim, o mercador passou a ser um aprendiz do lendário Fogoágil . Asteron Caneladeferro levou o Ovum para a rainha, a qual rejuvenesceu dez anos, conforme se dizia.O povo de Terraopala teve paz. O cavaleiro viveu por algum tempo em sua ilha com as princesas, mas a vida caseira o entediava, de forma que as deixou com toda a riqueza para retornar às aventuras.
Houve um silêncio que não distingui ser espanto ou incredulidade. Evitei encará-los por receio de encontrar alguma sombra de intenções violentas. Foi quando ouvi um estalo de palmas, depois à esquerda mais um, depois outro e sucessivamente até a taverna chover em aplausos.Levantei e acenei com as mãos por um instante de silêncio.
-Senhores, agora sou velho, não posso mais me aventurar pelo mundo.Vivo agora como meu saudoso amigo Trescobres vendendo de tudo um pouco e tenho comigo uma solução que aprendi a fazer estudando o Ovum quando tive uma só oportunidade, antes da rainha consumi-lo. Não esperem que tenha o mesmo efeito, mas certamente vão notar como alivia o peso da idade. Basta passar um pouco pelo rosto antes de dormir e no dia seguinte verão os resultados.
A oferta provocou um rebuliço, o povo se atropelou para adquirir o produto. Em um dia o estoque se acabou. Tinha dinheiro e cerveja o suficiente para meses.
Quando parti, montado no unicórnio, Águafria aclamou meu nome.
Já distante e certo que olho algum de lá nos veria, paramos à sombra de um olmo.
-Estou cansada dessa forma- resmungou Salunar.
- Acho que estamos seguros - Respondi
O dorso do unicórnio se alongou até uma grande e pesada cauda, seu pescoço esticou-se à altura das árvores, o corpo cobriu-se de escamas verde oliva. Zovra sacudiu a cabeça e inspirou o ar.
-Pelos céus, odeio me transformar naquele unicórnio arrogante.
- Eu sei, mas não convém andar por aí como um dragão.
De repente, uma risada seguida de palmas. Dos arbustos uma mulher de cabelos alaranjados e curtos saltou.
-Mas é mesmo um pilantra, Valneir Trescobres.- Disse a princesa Berthilda Cordeabobora - E um rato difícil de achar, mas quando vi o unicórnio em Águafria percebi que os ventos estavam a meu favor.
Zovra rugiu baixo e girou os olhos âmbar. Eu esperava que fosse dizer algo ou assustar a princesa, mas nada fez.
- Como soube? - Perguntei.
Berthilda sorriu de lado.
-Uma noite lá na ilha eu vi você se transformar de um formoso cavaleiro em um homem gordo e baixo. A princípio pensei ter sonhado ou fosse o efeito da garrafa de vinho que tinha acabado de tomar, mas algumas atitudes suas também não condiziam com o perfil de um cavaleiro. E Salunar. Eu lembro que a primeira vez que toquei era como seda quente do jeito que contou. Mas lá na ilha seu corpo era frio como pedra. O abandono foi outra atitude que me deixou mais intrigada. Não fazia sentido sir Asteron deixar duas princesas para continuar suas aventuras. Ele era honrado demais para agir como um mancebo irresponsável. Eu já estava cansada também de ficar lá de forma que comprei um navio, tripulação e sai pelo mundo, principalmente para esclarecer o mistério. E agora, depois de tanto tempo e ouvindo a sua história, entendi em parte. Agora me diga. O que aconteceu com Asteron e Salunar? E o feiticeiro? E por que Zovra está com você?
A verdade foi arremessada como uma lança em brasa. Eu não podia mais me esconder. Da mesma forma que Zovra se transformou, voltei a ser o mercador, Valteir Trescobres.
- Está certo. Já que me encontrou, precisa saber a verdade. Sir Asteron de fato era um grande cavaleiro e sempre lhe serei grato, mas infelizmente ele não passou do Labirinto da Mágoa. Está lá como uma estátua petrificado por seu rancor. Salunar ficou inconsolável e me culpou por isso, mas decidiu acompanhar-me em memória do seu cavaleiro. Quando cheguei ao castelo de Fogoágil, Zovra estava na forma de um dragão de cristal realmente e até intentou nos atacar, mas eu sabia da cobiça dos dragões por ouro e joias, de forma que quando mostrei o Pupila de Sangue ela parou imediatamente. Gotholf se admirou com o fato de eu ter chegado ali e quando contei o objetivo do cavaleiro...bom, ele chorou de rir porque não havia um maldito Ovum há cem anos. Agora, princesa, tente imaginar como isso me foi pesado. Custou a vida de um nobre homem e manteria o povo de Terraopala sob o tormento de Olhodepeixe. Precisava fazer alguma coisa. Fogoágil se compadeceu da situação e teve uma ideia: tentaríamos fazer um Ovum. Durante o tempo antes de retornar a Terraopala aprendi muito com o feiticeiro e quando conseguimos, decidi partir o quanto antes. O problema é que havíamos testado apenas em cabras. Realmente ficaram mais jovens. Não sabíamos os efeitos em um humano. Mas houve outro infortúnio. Zovra devorou Salunar depois de se desentenderem. Eu poderia ter retornado na forma do cavaleiro com o encanto de transformação e dizer que o unicórnio morreu, mas Salunar era um símbolo poderoso de Caneladeferro. Então Zovra se dispôs a ir comigo na forma do unicórnio e assim completamos a missão do cavaleiro. È certo que Olhodepeixe rejuvenesceu, mas não durou muito tempo e creio que foi devido ao Ovum. Quatro anos depois e estávamos em seu funeral.
Eu não podia permanecer na ilha, Zovra precisava voltar, por isso arrumei a desculpa de enfadar-me de uma vida pacata. Além do que estava enlouquecendo com tantas brigas entre nós três. Quando voltamos ao castelo, Gothalf havia descoberto uma forma de viajar no tempo e já tinha voltado ao passado e ido ao futuro inúmeras vezes. Ele disse que se decepcionou com alguns anos além porque os homens desacreditavam na magia e até tinham um tipo de ditado ridículo que dizia " não é magia é tecnologia". Bom, de qualquer jeito, ele se apaixonou por uma mulher em uma época do futuro que não compreendi muito bem, mas tinha algo a ver com paz e amor livre ou algo assim. Então ele ficou por lá, vagando em algum lugar no tempo. Aquele castelo não tinha sentido sem ele e embora tivessem muitos artigos interessantes, não me animavam a viver ali para sempre. Zovra e eu decidimos sair pelos reinos se passando pelo cavaleiro e seu unicórnio, mantendo viva sua memória e claro, ganhando a vida vendendo a solução do Ovum, que nada mais é que um creme com suave poder rejuvenescedor.
A princesa gargalhou e voltou-se para o dragão.
-Você é tão magnifica quanto Salunar. E você, Trescobres, pode até ser um embusteiro, mas por um lado honrou o nome de um homem digno. Confesso que meu coração estava cheio de mágoa por ter nos deixado sozinhas naquela ilha, mesmo que o meu desejo não fosse casar com Asteron. Mas, eu entendo que certas coisas precisam acontecer.
- Que maravilha, princesa. Agora que já resolvemos tudo, seguimos cada um o seu caminho.
Foi assustador vê-la menear a cabeça.
-Não vai funcionar desse jeito. De agora em diante vou com vocês e ajudarei na versão da história.
-O que?E seu navio, e a tripulação?
- Eu já fiquei tempo demais em um barco.
Assim, seguimos nossa jornada. O mercador que se passava por um cavaleiro, um unicórnio que era um dragão e uma princesa que trocou a coroa por aventuras.
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