Arbítrio
Com parte da perna lacerada, o sangue seco como uma placa de acrílico na região da panturrilha e canela, os músculos do corpo moídos, a visão parcialmente obstruída devido a um corte no supercilio, não era para ter conseguido ir tão longe, quanto mais à noite em uma selva tropical durante uma tempestade com ventos de quilômetros por hora. Não fazia ideia do quanto se distanciara, mas acreditava ter ido muito além do que suas condições físicas lhe permitiriam.
As copas das árvores se curvavam em reverências ruidosas, gotas grossas explodiam por toda parte, relâmpagos incineravam os céus, trovões estremeciam a terra. Parecia o fim do mundo e ele tentava salvar a pele de algo mais terrível do que aquilo.
Depois de resistir por aproximadamente mais uma hora de caminhada, desabou de bruços próximo a um tronco fumegante. O odor molhado e cáustico da selva penetrou em suas narinas quando o rosto afundou na lama. Acimas da sinfonia da tempestade, ouviu o próprio coração debatendo-se na caixa torácica. Precisava continuar. Duvidava que fosse perseguido naquelas condições, mas não podia alimentar tanta esperança.
Durante a fuga, entre o emaranhado de pensamentos que revolviam-se na cabeça, havia um nome. Não tinha certeza se era seu ou de outra pessoa. Janvier? Não. Janvier era como a louca o chamava. Um frio escorreu por sua espinha, cerrou as mãos, gemeu baixo.
Olhos opacos em um rosto lívido e enrugado o encararam. Sentiu cada pelo do seu corpo eriçar com a lembrança do banheiro semi escuro e podre onde ficara confinado com três cadáveres de velhas senhoras. Não tinha ideia de quem eram, mas conforme o tempo foi passando e obedecendo a alguma logica subconsciente de não ceder à loucura batizou-as com nomes que lhe eram familiares. Amenizou um pouco hipoteticamente, mas o odor pútrido da decomposição mesclado ao de fezes e urina históricos do ambiente arrastaram-no ao limiar do desespero. Havia noites em que percebia estar gritando qualquer coisa, isso quando não alucinava com as velhas rastejando em sua direção com sorrisos disformes e sangue escorrendo pelas cavidades orbitais. Alucinações, certo? Então por que parecia que os cadáveres nunca estavam no mesmo lugar? A primeira vez que as vira, cada uma se amontoava em um canto e pela pouca luz que havia pode notar que foram dispostas sentadas, depois foram ficando cada vez mais próximas, até uma certa ocasião acordar com uma bem ao lado com a mandíbula rasgada, foi quando chorou como uma criança.
Depois de um tempo que jamais soube quanto, ouviu pela primeira vez uma voz através de uma velha caixa de som instalada em um canto do teto. Havia tanta estática que não dava para distinguir se era homem ou mulher.
- Espero que esteja se sentindo confortável, Janvier. E suas amigas? Estão cuidando bem de você? Sinto dizer que elas não vão poder mais desfrutar de sua companhia, então aproveite para se despedir.
Um estalo e o silêncio se solidificou. Ele esfregou os braços freneticamente, sorveu o ar tóxico, enganchou os dedos entre os cabelos, curvou o corpo para frente. A maior angústia era a mente fragmentada como milhares de cacos de vidro. Como foi parar naquele lugar? Qual era seu nome? Por que a voz o chamara de Janvier? Quem eram aquelas velhas?
- Socorro! – sua garganta queimou ao vibrar – Alguém ai? Isso é alguma brincadeira? O que estão fazendo?
Pensou ter ouvido um arquejo à sua direita, mas só podia ser seu medo agindo. Arrastou-se até a banheira suja de limo e sangue onde um cadáver tinha metade do tronco para fora. Um corte rebuscado em diagonal atravessava o pescoço onde vermes se contorciam. O cheiro nauseabundo espremeu seu estômago, uma mão de ferro torcendo as entranhas. Vomitou sua vida inteira no que pareceu uma eternidade, mergulhou em um poço inconsciente.
Um urro gutural eclodiu por perto. Assustado, ele tentou se levantar com o apoio de um dos braços. As pernas tinham o peso de aço e a ferida começava a queimar. Arrastou-se com os cotovelos abraçando folhas úmidas e lama. Respirava como um asmático, emitindo sons rascantes. Ainda não estava a salvo. Precisava continuar. Precisava encontrar uma saída daquele inferno. Um relâmpago iluminou o que parecia ser uma trilha a frente dobrando para a esquerda.
Ao mesmo tempo em que lutava para ficar de pé, uma musica se repetia em sua cabeça. Uma canção russa que o atormentaria pelo resto de sua vida se sobrevivesse. Era suave com uma densidade apaixonada, mas estava associada ao salão onde despertara após perder os sentidos no banheiro.
Era um ambiente amplo com um grande lustre empoeirado, cortinas vinho puídas que mal cobriam as janelas altas e piso de granito. A canção soava tingindo o local de um clima estranhamente romantico. Ele estava sentado, as mãos amarradas nos braços de uma cadeira de espaldar alto e madeira maciça. A uns dez metros a sua frente havia um homem de olhos vendados vestido apenas com uma bermuda, estava com as pernas dentro de um tipo bizarro de maquina, precisamente na altura dos joelhos entre duas barras de ferro fixadas por dois tirantes, sendo que na parte interna havia dentes pontiagudos enferrujados. Gotas de sangue pingavam do nariz com uma lentidão agonizante.
Janvier tentou puxar as mãos, mas eram tiras de couro grosso. Quem ele achou que fosse? Superman? Ou tinha a esperança que estivesse puído, talvez até mesmo nem tão fixo.
-Ei,ei- ele sussurrou para o homem.
O sujeito fez movimentos automatizados com a cabeça para um lado e para outro. Se estava tentando dizer não ou procurando de onde vinha a voz, era difícil dizer.
-Cara,você está com as mãos livres, consegue me tirar daqui?-Insistiu Janvier.
-Fica quieto.-Resfolegou o homem com um tom desesperado.
-Não tem ninguém aqui além da gente.Podemos tentar sair daqui juntos.
O sujeito moveu de novo a cabeça tão lentamente como da primeira vez.
-Ela ouve e vê tudo o que fazemos. Ela pensa em tudo o que já pensamos.
Janvier inclinou-se para frente.
-De que você está falando,homem?
-O demônio...ela é o demônio...o demônio.
-Não tem demônio nenhum,cara, podemos dar o fora daqui antes que percebam.
O pensamento apareceu como uma nuvem de concreto avolumando em sua caixa craniana: as pernas do cara estavam em condições?
Não havia nada o prendendo,nem mesmo aquele dispositivo bisonho.Bastava puxar as pernas para retirar dali. Na verdade até mesmo tirar as vendas ele podia.
Uma risada baixa subiu da garganta do sujeito como uma bolha emergindo de um lago de piche.
-Nós vamos morrer...vamos morrer da pior maneira possível. Nós nunca queremos morrer, vivemos lutando contra isso, o limite.
Javier apertou os punhos até os dedos ficarem brancos.
-Se ficar filosofando igual um lunático é o que vai acontecer. Você não está preso pode me soltar e vamos dar o fora daqui.
-Você não entendeu? Ninguém está livre aqui.
Passos ocos estalam no piso. Uma mulher com uma mascara kitsune, a mística raposa japonesa, vermelha e branca, cabelos negros esbarrando a cintura e um tipo de macacão inteiriço rubro escuro. Ela se aproximou por trás do homem e parou apoiando duas mãos pálidas com unhas manicuradas pretas e pontudas em seus ombros. Imediatamente, ele retesou as costas como se um choque atravessasse seus ossos.
-Querido, Javier ainda não entende as coisas, vamos dar um desconto.- ela disse e abaixou o rosto na altura da orelha do sujeito.- Mas logo,logo ele vai saber tanto quanto você, Samhain.
-O que você quer?O que está fazendo?- gritou Janvier lutando para puxar os braços-Isso é algum tipo de brincadeira?Quem me colocou naquele banheiro?Quem eram aquelas senhoras?
A mulher raposa mostrou os pulsos com dois símbolos geométricos em cada tatuados, abriu as mãos.
-Amor,o que você está vendo aqui?
-O que? Como assim?
-Tem alguma coisa nas minhas mãos?
-Mas que inferno! O que significa isso?
-O que tem nas minhas mãos?
-Use ela para me tirar daqui,sua maluca.
Foi um riso ou um guincho que ela emitiu? Talvez ele estivesse começando a delirar outra vez porque até mesmo os olhos da mulher pareciam faiscar.
-Sua agressividade me excita, querido. Mas se não consegue ver nada nas minhas mãos significa que ainda não está pronto. - ela se agachou perto do maquinário- Só uma questão de didática bem aplicada. Sabe o que é isso aqui? Então, foi muito usado na idade média, principalmente contra os hereges, não que nosso querido Samhain seja um. Eu particularmente acho o nome dessa maravilha ridículo: esmaga joelhos.
Ela segurou duas roscas na lateral e começou a girar. As placas se estreitaram entre os joelhos do homem,os dentes penetraram na carne lentamente. Sons animalescos sairam da boca de Samhain. Seu corpo estremecia, as mãos ríspidas arranhando em desespero o piso.
-O que está acontecendo nesse momento- dizia a mulher em tom alto- é que a dor se tornou o foco de Samhain. Seu cérebro está anulando tudo que não esteja relacionado com o local atingido.
Janvier jogava o corpo para um lado e para o outro, mas a cadeira mal se movia.
-Pare com isso sua vadia maluca.-gritou rangendo os dentes.
Um estalo agonizante lhe provocou ânsia de vômito.
A mulher girou as roscas ao contrário, afastando as placas. O estado das pernas do homem era algo próximo de uma lata de alumínio amassada, perfurada.Foi o máximo que passou pela cabeça de Janvier. Nunca vira uma perna daquele jeito. Os dentes da máquina estavam tingidos de escarlate, a boca escancarada de um predador que acabar de se alimentar.
A cabeça de Samhain estava dependurada para frente. Nem parecia estar respirando.
-Amor, ainda não acabamos. Sabe que precisa me satisfazer. - a mulher raposa acionou um teaser no peito da vítima fazendo com que ele recobrasse os sentidos em desespero.
-Por que tá fazendo isso sua doente?- vociferou Janvier
- E precisa de um porquê?Por que as zebras são brancas e pretas?Por que abacaxis são como são? Não seja ridículo, querido. Se precisar de um porquê vou lhe dar um.
Mais uma vez ela acionou o esmaga joelhos. Samhain gritou até a voz morrer em um agudo engasgado. Ele dobrou o corpo para a frente, as mãos cruzadas sobre o ventre.
-Eu gosto, Janvier.Esta bom pra você? Não fique procurando respostas logicas. Isso não vai ajudar em nada.
Ela chegou perto, levantou o pé enfiado em uma bota de salto fino e apoiou na cadeira no espaço entre as pernas dele.
-Tudo o que precisa entender é que não há controle. Nem você,nem eu temos controle de nada.Estamos apenas seguindo linhas pontilhadas.
Com um impulso, empurrou a cadeira poucos centímetros para trás,alisou o braço dele,andou de costas até Samhain. Em seguida se agachou por trás dele levantando uma faca de ponta curva. Encarou por dois segundos Janvier que movia a cabeça para os lados e cravou a lâmina entre as costelas do homem, torcendo-a ao retirar. Mais uma vez afundou um pouco mais abaixo, retirou e repetiu por cinco vezes o ataque, até desferir um final pelas costas na altura do coração. O corpo caiu de lado como um boneco inflável furado.
Havia um frenesi obsceno na atmosfera. Não seria demais achar que a mulher raposa estivesse sorrindo por debaixo da máscara.
Esperava que fizesse mais algum discurso alucinado ou cuspisse alguma frase clichê de vilão. Tudo o que fez foi limpar a lâmina na pele do morto e se retirou.
-Ei!E agora?Vai me deixar aqui sua doente?- seu grito não tinha qualquer traço de raiva real.Temia e tremia,lutava contra o desespero que mais uma vez levantava a cabeça verrugosa desejando levá-lo para a beira da loucura. Passou a noite naquela cadeira com o cadáver de Samhain e muitas incertezas.
Achava que podia andar novamente, não com a mesma disposição, não no mesmo ritmo. No início, a adrenalina da fuga, o instinto de sobrevivência fervilhavam nas veias. Agora,o corpo relaxado, os efeitos dos ferimentos tornavam tudo mais difícil.
A trilha fazia uma curva para leste onde despontava uma pedra alta. Só podia visualizar o caminho a cada clarão de relâmpago. A chuva ainda descia com força diluviana.
Era um risco ficar andando no meio daquela mata. As chances de pisar em solo escorregadio eram mais do que altas e todas as apostas apontavam para uma possível fratura ou uma passagem de ida para o além.
-Hoje não.- falou não por uma necessidade premente de lutar contra o desânimo e sim porque precisava ouvir a própria voz.Fazia com que se sentisse vivo e real enquanto não fazia ideia de quem era.
Por muitas vezes se perguntou porque a louca o chamara de Janvier e acreditava que aquele infeliz não era Samhain.
Não muito depois daquele dia, veio-lhe a memória um caso sobre doze pessoas desaparecidas nas mesmas circunstâncias. Uma por mês. Certo que todo dia no mundo inteiro alguém desaparece,mas aquelas doze seguiam um padrão sendo a característica mais marcante que familiares e amigos receberam pelos correios folhinhas de calendário do mês correspondente ao desaparecimento. Fora isso, não havia singularidade quanto ao tipo de vítima. Homens, mulheres, idosos, jovens de no mínimo 17 anos. Não havia crianças, pelo menos não dentro dessa lógica.
Samhain era um deles. Seu rosto estava em quase todo lugar, mas não com esse nome. Conseguia lembrar do caso, detalhes,mas nada de nomes. Nem o seu, nem de ninguém, como se o cérebro bloqueasse.
A pedra era maior do que pensava quando se aproximou. Devia ter mais de quinze metros inclinando-se para o céu como um cone.
A pulsação foi a um pico inesperado. Seria mais uma vez a mente sabotando ou tinha ouvido alguém falando?
Se contornasse a pedra pela direita poderia se esconder, mas teria que sair da trilha,arriscar enfiar-se no matagal,quem sabe cair em um buraco, ainda mais no escuro.
O impasse não levou mais que um segundo. Sentiu um movimento rápido a sua esquerda. Duas crianças. Não. Embora tivessem não mais que 1,50, seus rostos eram envelhecidos e os olhos âmbar com a densidade de anos. A maior peculiaridade sequer era a aparição e sim o fato de estarem de terno preto. Um tinha um queixo proeminente adornado por um cavanhaque vermelho de ponta trançada, enquanto o outro a face redonda, pálida que lembrava uma peça de queijo branco. Teria graça, não fossem as circunstâncias.
-Você não tem muito tempo.-disse o de cavanhaque.
Janvier piscou os olhos, cruzou as maos atrás da cabeça.
-E agora?Estou delirando de vez.
-Seria até melhor que tivesse. Mas estamos aqui e ela está atrás de você-disse o cara de queijo.
-O que ?Como?Quem são vocês?
-Você só tem uma chance e uma incógnita. - o de cavanhaque disse mais alto por conta de um trovão-Precisa decidir rápido.
-Mas também precisa lembrar agora.- completou o outro.
Janvier recuou um passo.
-Lembrar?Eu...eu não...minha cabeça está em pedaços. A droga...ela me deu alguma coisa,ela vinha me dando.
Os dois menearam a cabeça em sincronia.O de cavanhaque girou o pulso, puxou a manga do terno, expôs um tipo de tela projetada na pele.Estalou a lingua.
-Pouco tempo,pouco tempo.
Cara de queijo pareceu incomodado com as palavras do outro e mais ainda com o fato de estar parado na chuva.
- O que tá acontecendo aqui? Não estou entendendo nada. - reclamou Janvier.
-Como odeio essas amnésias- cara de queijo se virou para o companheiro-Vamos deixar ela com vantagens?
-Acho que ela já teve demais.- cavanhaque manipulou a tela do pulso com os dedos.- Isso deve ajudar.
Janvier sentiu uma pontada na base do crânio. Queimava, retorcia. Fechou os olhos, recostou-se à pedra.
Estava em uma quadra de basquete, o piso azul desbotado com um outro buraco, as cestas deterioradas. Nas arquibancadas, várias cadeiras vermelhas reviradas. Ao redor, formando um círculo medonho e irregular corpos empalados em estacas projetadas do chão,doze no total sendo um deles de Samhain.
Janvier estava de pé, livre, mas era como se movesse em um lago de piche. Os dedos de suas mãos mexiam em velocidade sonolenta.
Tentou avançar alguns passos. Era como se não se deslocasse dez centímetros.
Alguma coisa agarrou-se em suas costas e andou. Depois outra seguida de mais uma no ombro. Gelo no rascante no estômago. Sentia as coisas se movimentando, subindo. Suas mãos travaram.Não queria tocar naquilo, o que quer que fosse.
Pelo canto dos olhos se deparou com um pequeno rosto preto azulado como de uma criança maligna e disforme. Abriu a boca sem emitir som.
Criaturas com pouco mais de quinze centímetros, a cabeça grande com chifre cor branco leitoso de um lado só,tronco pequeno, braços compridos, mãos desproporcionais e pés ainda maiores espalhavam-se pelo chão, guinchando como ratos.
Agoniado, começou a estapear o corpo, derrubando vários ao chão. Era como tocar em papelão. Mas as criaturas não pareciam sofrer nada, imediatamente se levantaram e correram para agarrar-se em suas calças e subir por elas.
- Sai,sai- recuou naquela lentidão pegajosa. Algo fez "ploft" como uma fruta estourada. Sob seu sapato havia uma gosma laranja e pedaços de uma criatura esmagada a. Gosto azedo na garganta. Vontade de por para fora as entranhas. Começou a sacudir os braços onde alguns homúnculos se agarravam e mordiam. Chutou meia dúzia para um lado e mais dez para outro, dois explodiram com um bico mais forte, espirrando gosma na barra da calça.
Embora estivesse ocupando lidando com os demoninhos, teve a impressão de que os mortos abriram os olhos e observavam.
Os guinchos subiram a decibéis de agonia.
-Ei, está se divertindo sozinho?Mas que egoísta!
Ele não tinha como ter percebido a mulher raposa chegando, mal a ouviu, na verdade.
Os pequenos diabos multiplicavam-se ao redor,uma onda escura,convulsiva e guinchante avançado com fome,podia sentir seu peso, uma fúria bestial desejando despedaçá-lo. Caiu de costas, continuou chutando, se remexendo enquanto eles se replicavam.Seus sorrisos infernais expondo fileiras de dentes vermelhos.
A mulher raposa cruzou os braços.
-Vai demorar muito,Janvier?Estou ficando entediada.
Entediada?Aquela maluca não estava vendo a situação dele? Não devia se surpreender com as atitudes de alguém como ela. Se ao menos conseguisse ver o rosto talvez conseguisse interpretar algo.
Uma sombra escureceu sua visão. Ele gritou tentando puxar o monstro.
-Já chega!- disse a mulher. Diminuiu a distância entre eles, inclinou-se e desferiu um soco na tempora.
Um clarão explodiu diante dele seguido de um zumbido.
-Estamos seguindo nossos propósitos,amor. - disse a louca.
Uma formigação começou no pulso e irradiou-se como um líquido quente queimando seu antebraço. Percebeu na verdade que este estava sendo forçado para baixo do seu corpo.
- E aí?Está sentindo?Sente a realidade?- a voz abafada pela máscara soava extasiada.
As criaturas haviam desaparecido. Tentou se levantar, mas ela o conteve pressionando o braço.
-Você será premiado.Vamos, levanta.
Em um impulso, ela se colocou de pé.
Janvier massageou o braço, sentou, inspirou fundo. Ainda se sentia lento. As pernas vacilaram quando se ergueu. Notou que a mulher estava de bermuda de lycra e top pretos, os pés descalços. Pés pequenos e magros.
De súbito, ela o atingiu com chute na costela.
-A verdade,Janvier, é que você não tem escolha. Querem que acredite que tenha.
Ele gemeu baixo, tonteou para um lado.
Mais um chute na altura dos rins seguido de um gancho que o fez ver pontos brancos. Um gosto ferruginoso na boca.
-Aliás, vamos ser honestos.Você teve sim uma escolha e por isso está aqui. Você assim como todos eles.
Ela abriu os braços apresentando os corpos pendurados, em seguida girou o tronco e atingiu com o pé a cabeça dele.
Tudo ficou vermelho e preto, as pernas fraquejaram, ele tombou de joelhos.
-Não é hora de desistir,Janvier!
Com uma das mãos,segurou-o pelo cabelo e estatelou um murro em seu nariz. Ouviu-se um estalo, sangue começou a escorrer pelas narinas.
Janvier caiu para frente,mas conseguiu amparar a queda com as duas mãos.
-Issooooo.- a mulher saltitou, esticou a perna para mais um golpe mirando o estômago, porém ele jogou-se em uma queda de barriga para cima sentindo apenas o peito do pé resvalar.
Ela grunhiu, ameaçou uma pisada. Janvier conteve com as duas mãos, empurrou com o que tinha de força ganhando tempo e espaço para se levantar.
Havia tantas dores pelo corpo que mal conseguia focar.
-Assim está melhor,muito melhor. Lute pela sua vida, amor. É tudo o que tem agora.
-Quem eram?
Ela abaixou as mãos, mexeu a cabeça.
-O que?Quem era?
-Quem eram as senhoras no banheiro?Quem são essas pessoas que você matou?
- Como pode se preocupar com uma coisa dessas logo agora? Não me entendie.
-Você é uma vadia louca que não sabe o que tá fazendo.
Punhos cerrados, ela flexionou as pernas e disparou para cima. Janvier desviou para a direita evitando uma cotovelada, mas não previu a rasteira que atingiu sua canela. Sua queda lateral permitiu que ela enganchasse as pernas na cintura e aplicasse um mata leão.
-Sua mãe nunca te ensinou que não deve sair por aí chamando as mulheres de vadia,amor?
O teto da quadra oscilou. Seu coração bombeava sangue como uma máquina enlouquecida. Sentia-se como que sugado pouco a pouco.
Ia morrer assim? Segurou os braços dela, tentando puxar, mas eram como barras de ferro seladas em seu pescoço. Não ia durar muito tempo. Lembrou de Samhain e sua resignação. Talvez fosse mais fácil. Talvez sofresse menos. Fechou os olhos, relaxou.
Nesse instante, sentiu a pressão dos braços dela diminuírem e subitamente, se afastou rolando pelo chão, com a mão na cabeça. Janvier fez um ruído áspero ao buscar ar, tossiu sangue, cambaleou quando tentou ficar de pé.
A mulher estava em posição fetal, gritando.
Precisava aproveitar a chance. Procurou por alguma coisa ao redor, mas não havia nada. Cerrou os dentes, ensanguentados, inspirou fundo, começou a desferir chutes nas costas, cabeça, pernas, onde pudesse na mulher. Ela se encolhia, arrastava-se, rugindo, conseguiu ficar de joelhos,mas atingida no rosto, desabou.
Invadido pela exaustão, Janvier parou. Dobrou o corpo, as mãos no joelho.Ainda se sentia zonzo.
Precisava sair dali,antes que perdesse as forças. Na parte sudeste da quadra havia uma porta vermelha de ferro. Quando começou a ir em direção a ela, algo como que queimou sua panturrilha. Sangue tingiu os pés. A mulher expeliu uma risada sufocada. Na sua mão havia um punhal. Chegou se arrastando e ainda conseguiu acerta-lo. Janvier deu um grito, mas firmou a perna boa e continuou seguindo para a porta.
- Eu vou atrás de você,Janeiro. -foi a última coisa que ouviu ela dizer.
Seus olhos arregalados iam de um para outro daquela dupla excêntrica.
-Janeiro?Por que ela disse Janeiro?Meses... As pessoas. O que significa Samhain?O que significa? Vocês...vocês sabem. O que está acontecendo?
O de cavanhaque olhou para o alto. Seus cabelos negros escorridos pareciam algas implantadas no crânio.
- Não estamos aqui para dar explicações, mas pelo visto ela conseguiu apagar o seu cérebro. A boa notícia é que não sofreu nenhum trauma físico. Tudo o que precisa saber é que está aqui porque se voluntariou para um programa de pesquisa em troca de sair da Terra.
-O que? Sair da Terra?Como...como assim?Eu...eu não estou.
O outro sujeito assoviou perplexo.
O de cavanhaque prosseguiu.
-Seu nome é Hector e você precisa me escutar agora. Depois dessa pedra você vai encontrar um arbusto. Ali tem uma coisa que precisa usar ou não. Isso tudo faz parte do experimento.
-Aquelas pessoas. Elas...
O homem encolheu ombros.
-É o preço.As coisas ficaram muito complicadas lá embaixo. As pessoas aceitam qualquer coisa por uma chance de saírem...qualquer coisa.
-O dispositivo em seu cérebro informa que você já perdeu muito sangue e seu corpo pode entrar em colapso.-disse o cara de queijo.
Hector colocou a mão na nuca, passou os dedos atrás da orelha.
Ruídos de folhas e galhos se partindo. Uma forma escura se aproximava depressa e com algo na mão.
O homem de cavanhaque franziu a testa e sem se voltar disse:
-Precisa decidir agora.
Uma máscara branca emergiu das trevas, Hector passou pelos dois ganhando terreno. Viu um arbusto em destaque a cerca de seis metros. Apressou-se arrastando a outra perna. Podia ouvir os passos acelerados da mulher cada vez mais próximos, podia até mesmo sentir cheiro do seu corpo.
Evitou olhar para trás. O vento começou a soprar contra e com força. Folhas,galhos, terra arremetiam em seu rosto. Ele ergueu um braço a frente dos olhos.
Ouviu uma respiração próxima. Sabia que ela podia alcançar, sabia que ela não hesitaria em arrancar o coração dele. Aquela gente morreu por nada. Os dois sujeitos alegaram se tratar de um experimento, mas quem concordaria com uma crueldade daquelas?
Próximo ao pé do arbusto havia uma caixa prata. A mulher se aproximava. Os músculos da perna tensos impulsionados pela ira.
Hector se jogou no chão, abriu a caixa, retirou uma pistola e se virou apontando.
A mulher avançou com um grito e a faca de lâmina curta segura com as duas mãos pronta para enterrar na carne. Hector sabia que precisava fazer. Não conseguia imaginar que seria capaz, não queria que fosse necessário.
Esperava que ela parasse, que ao menos se sentisse intimidada vendo a arma, mas apenas gritava e seguia em frente.
A cerca de um metro, uma bala perfurou o estômago enquanto outra dilacerava o coração da raposa. Ela estacou, dobrou uma perna, soltou a faca e caiu.
O peito de Hector subia e descia em pânico. Jogou a pistola de lado, rastejou até a mulher, puxou a máscara. Seu rosto era fino,jovem, com traços nórdicos. Ela olhou para ele,deu um sorriso vermelho, gorgolejou as últimas palavras:
-Você não teve escolha...
Os dois homens se aproximaram. O cara de queijo mexeu os dedos no pulso. A chuva parou abruptamente, o céu rasgou-se em um manto de estrelas. O de cavanhaque, com as mãos para trás observou a mulher de alto a baixo.
- Íamos remover o tumor quando acabasse a experiência. -disse em um tom desolado.
- Não acho que isso faria alguma diferença. -disse o outro homem
- Mas que loucura é essa?Quem são vocês?O que é isso tudo?-gritou Hector.
- Meu amigo, será melhor você descansar agora. Vai ter bastante trabalho daqui pra frente. Mas sabe o que é bom?Acabou de conseguir uma ótima colocação. - disse o de cavanhaque que sinalizou para que o acompanhasse.- Vai receber todas as informações necessárias do programa. Você se saiu muito bem nos testes.
Hector ficou parado, os braços caidos, a mente girando.
-Por que não falam algo coerente?
Cara de queijo o encarou e entregou uma máscara preta.
-Vai precisar disso. E a propósito , Samhain significa novembro em irlandês e Janvier,janeiro em francês. Está claro pra você?Agora olhe a sua esquerda.
Quando Hector se virou a selva havia desaparecido, no lugar abria-se o vazio do espaço. Duas a três naves deslizaram proximo. Não muito distante ao fundo destacava-se a Terra,mas não estava totalmente azul, em uma parte acentuava-se um tom vermelho quase sanguíneo. Ele inspirou fundo, estendeu a mão em direção ao planeta em seguida seguiu os homens.
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