03. o problema das heranças
6 MESES DEPOIS
SÃO PAULO, 1910
Na estufa de sua propriedade em São Paulo, Benjamin regou as orquídeas do lado direito, tocando o substrato com a ponta dos dedos para verificar o estado da muda. Sim, precisa de mais água. Ele suspirou, ignorando os passos nervosos de Antônio na fileira de rosas.
— Um pouco mais e você abrirá um buraco no chão — comentou Benjamin, observando o crescimento das orquídeas com a atenção de um monge. O marquês de Rio Verde pôs as mãos na cintura, parando de repente. — O que há?
— O que há? — Antônio apertou os olhos. — Vindo de você, essa frase é muito curiosa. Principalmente quando tem duas semanas para se casar.
Benjamin Machado de Andrade comprimiu os lábios numa linha fina, mas não se abalou. Continuou dando atenção às orquídeas e rosas, verificando o estado da terra e a luz do sol que os vidros da estufa deixavam passar. Fazia um dia abafado em São Paulo. Um dia perfeito para cuidar das roseiras externas. Ou plantar lírios orientais. Enviaria uma carta à Julieta Ávila do Carmo pedindo algumas sementes. A Sociedade Real de Botânica nunca o decepcionava.
— Você me ouviu, Benjamin?
— Ouvi, mas não sei o que você espera de mim.
— É mais do que natural esperar reação de um homem cuja fortuna esteja prestes a se esvair. — O marquês deu a volta na bancada e encarou Benjamin. — Você conversou com sua irmã sobre isso?
Luísa não fazia a menor ideia de que estavam muito próximos de perder tudo para o asqueroso primo Percival porque seu irmão mais velho recusava se casar. Ou mesmo se esforçar para ir atrás de uma esposa. Em sua última visita à irmã, na tarde seguinte ao baile da baronesa, Benjamin fora incapaz de dar a notícia a ela. É bom ela ficar no Rio de Janeiro até tudo isso acabar, pensou ele, ainda de olho nas orquídeas. Evitaria o sofrimento da irmã até ser impossível de esconder a verdade.
— Desde que meu pai fez esse testamento, ele arruinou a mim e Luísa de uma só vez — disse Benjamin, sem se alterar. — Ele sabia que eu jamais me casaria após o ocorrido com Inês.
O marquês de Rio Verde passou a mão sobre o bigode bem aparado.
— Não há nada que eu...
— Já aceitei meu destino — disse Benjamin. Sem graça, completou: — Apenas, se possível, não deixe... não deixe minha irmã desamparada quando o pior acontecer.
O marquês assentiu.
— Você sabe que pode contar comigo, Benjamin. Apenas... diabos.
— O quê?
— Seu pai nunca ordenou que você se casasse por amor.
O jovem duque franziu o cenho para o melhor amigo. Caso viesse a se casar, o pai estipulara que o advogado da família, o velho Sr. Fonseca, deveria passar três meses com Benjamin e sua então esposa para validar o arranjo. Caso fosse descoberta qualquer irregularidade na união, a fortuna e, mais especificamente, a herança de Benjamin e o dote de Luísa, seriam entregues ao primo Percival na mesma hora.
A dúvida não demorou a tomar conta de Benjamin. O duque esfregou as mãos sujas de terra no avental amarelo surrado, seu companheiro há anos, e fez o que fazia de melhor: procurou sabotar a primeira ideia viável para resolver um problema impossível.
— Isso é loucura. Qual mulher aceitaria se casar assim?
— Alguma tão desesperada quanto você.
O duque revirou os olhos. O marquês era espirituoso demais para o próprio bem.
— Você tem duas semanas — prosseguiu Antônio. Ele pousou a mão sobre o ombro de Benjamin e continuou: — Podemos encontrar alguém. Não desista assim, meu amigo.
— Já perdi as esperanças, mas agradeço o empenho. — Benjamin ameaçou sorrir, porém desistiu. Tirou o avental, pendurou-o num gancho e disse: — Eu o acompanho até a porta.
Tão logo o amigo partira, o duque voltara à biblioteca para ler sua correspondência. Após a conversa com o marquês, sua disposição tornou-se animada e por pouco ele não assoviou enquanto abria as cartas trazidas por Petúnia, a governanta. O sol deixava a biblioteca com um ar vivo, quase dourado de tão pulsante. E por ser o cômodo mais fresco da casa, Benjamin permitiu-se dobrar as mangas da camisa, sentar-se à escrivaninha de mogno francês do século passado e ser abraçado pelo silêncio austero da casa. Aquilo sim, de fato, era felicidade.
Semanários sobre astronomia, mensagens de seus colegas na Sociedade Real Brasileira de Botânica, uma infinidade de convites para bailes e soirées e até a última carta da Dra. Masher, sua correspondente mais ativa, foram deixados de lado ao ver O Paulistano dobrado ao meio. Passou por inúmeros boletins pouco interessantes sobre economia, sobre mostras artísticas e sobre os primeiros meses de governo de Hermes da Fonseca. Leu com atenção a coluna de José Joaquim Castro, uma das poucas que se salvava do jornal e, justo quando estava prestes a fechar o periódico, uma fotografia chamou sua atenção.
O quadrado preto e branco retratava uma mulher rechonchuda, com um sorrisinho misterioso e um chapéu floral extravagante. Logo abaixo da fotografia, em letras garrafais, dizia: "COLUNA SOCIAL, Por Maria Quitéria". Movido por sabe-se lá qual das curiosidades, leu o primeiro parágrafo da coluna semanal da fofoqueira que assombrava a elite paulistana.
Seus olhos se arregalaram à medida que os parágrafos passavam, e seu primeiro pensamento foi como o estouro de fogos de artifício. A noite vivenciada há quase seis meses na casa da baronesa de Santa Cruz voltou com clareza assustadora. Benjamin leu mais uma vez a coluna da fofoqueira.
Eu preciso de você, Edmundo. O vinho branco, a dama, as confissões sussurradas, dois amantes que jamais seriam nada além de lembrança. A resposta estava ali, límpida feito as águas de uma nascente ainda desconhecida. Ele precisava apenas agir. Benjamin arrancou a coluna de Maria Quitéria do jornal, meteu-a no bolso e saiu.
Somente o marquês poderia ajudá-lo.
•••
Cecília esticou a corda do arco, sentindo a tensão crescer em cada músculo do braço direito. Gostava da sensação progressiva de dificuldade, do silêncio ao seu redor quando a flecha estava encaixada, pronta para encontrar seu caminho. Ela ergueu os olhos para o alvo montado no jardim e disparou. Sorriu com amargura ao ouvir a ponta da flecha perfurar a pequena coluna de Maria Quitéria. Uma pena não ser você ali, sua fofoqueira maldita, pensou ela.
No dia ensolarado da cidade, propício a alegrias que Cecília não sentia, ela puxou outra flecha da aljava presa ao cinto do vestido. Ajustou a mira, esvaziou os pulmões, mas não disparou. Seu pensamento, que desde então transitava entre tristeza profunda e raiva absoluta, vacilou. A figura de Edmundo surgiu diante de si, lindo e sorridente em seu uniforme de gala, e a garganta de Cecília fechou. As lágrimas turvaram sua mira certeira. Ela respirou fundo e ajeitou a postura, mas foi impossível disparar.
Há seis meses chorava a morte de seu amado Edmundo, mas o que antes era luto profundo, cortinas cerradas e sessões de choro intermináveis agora era fúria que transbordava. Como você pôde me deixar assim?
Naquela noite, Cecília esperara por ele sedenta como nunca antes. Em breve estaria nos braços de seu aguardado futuro e nada mais importaria. Mas as horas, implacáveis, passaram, e seu cavaleiro de sorriso faceiro não aparecera, não mandara uma mensagem. O pior fora a manhã seguinte, quando ela descera e vira a família reunida. Seu pai, de carta na mão e cenho franzido, dissera cinco palavras que jamais deixariam as lembranças de Cecília: "Você precisa ser forte, querida". Então, seguiram-se os piores momentos da vida dela.
Ela ajeitou a postura e respirou fundo, mirando na coluna odiosa de Maria Quitéria presa ao alvo de palha e atravessada por uma de suas flechas. Aquela fora a última coluna que lera da mulher mesquinha, que comentava em tom de tristeza a morte de seu adorado Edmundo.
Sua falta será sentida nos bailes e saraus, caro Sr. Edmundo Monteiro, mas ninguém sentirá mais do que sua adorada Cecília. Quem tomará o seu lugar como noivo dessa beldade, meu querido? As apostas já estão altas.
Tomada de fúria porque pessoas como Maria Quitéria estavam vivas e outras, como Edmundo, estavam mortas, Cecília ajeitou a postura e disparou. Novamente, deixou as ações guiarem seu pensamento e encaixou outra flecha. Disparou. De novo, encaixou e disparou. Acertava todas as flechas no alvo, direto nas palavras daquela mulher mesquinha que se alimentava da dor dos outros. Disparou mais uma vez. E mais outra. Quis encaixar mais uma flecha no arco, porém seus dedos ávidos encontraram a aljava vazia.
Cecília ofegou pelo esforço. Queria chorar, beijar Edmundo só mais uma vez e sumir. Encarou as flechas cravadas no alvo de palha e se sentiu amarga, infeliz com as possibilidades que a aguardavam sem a presença do ser amado.
Gostaria de ter sofrido o acidente com Edmundo, de ter morrido naquela noite. Melhor morrer de uma vez do que assim, aos poucos e sempre.
— Atrapalho?
Abriu os olhos e viu Henrique diante de si. O irmão tinha as mãos atrás das costas, a gravata torta e os cabelos castanhos revoltos.
— Eu estava praticando — disse ela.
O irmão assentiu e olhou para o alvo de palha, distante a cinco metros deles. E sorriu.
— E sua pontaria, como sempre, é impecável.
— Sempre é possível melhorar.
Henrique ficou em silêncio, observando as reações da irmã mais nova como se estivesse numa mesa de pife. Ele pigarreou, descansou as mãos na cintura, e disse:
— O dia está quente hoje.
— O que você quer, Henrique?
— Sou tão horrível assim em disfarçar?
— Sim. — Ela sorriu. — Edmundo sempre dizia que você...
Cecília se calou. Até quando pensaria nele? Henrique descansou uma das mãos sobre o ombro dela. O contato com o irmão, quente e reconfortador, foi um bálsamo. Ele apertou de leve o ombro de Cecília e sorriu.
— Tenho uma boa notícia para você. — Henrique puxou um envelope do bolso interno do colete, estendendo-o a ela. — Leia.
Cecília não reagiu. Cartas, desde a morte de Edmundo, eram abutres que traziam apenas desgraças. Henrique entendeu e, sorrindo, abriu ele mesmo o envelope.
— Estimada Srta. Cecília Sampaio — leu o irmão, adquirindo um tom pomposo — a Sociedade Real de Arqueirismo agradece a inscrição em nosso concurso a ser realizado em...
Cecília tomou a carta das mãos dele. Tão logo concluiu a leitura, ergueu a cabeça.
— Foi você quem...
— Foi Edmundo. — O irmão enfiou as mãos para trás e sorriu. Cecília franziu o cenho. — A competição terá a primeira edição mista e, ao que parece, ele inscreveu você antes de morrer. Uma tia dele, Dona Maria Marta, passou aqui ainda de madrugada e deixou a carta com os criados antes de ir para o porto. Há algumas outras cartas dele para você.
Cecília ainda lia, sem acreditar que fora aceita numa competição para fazer o que mais adorava desde muito jovem: disparar flechas com seu arco. Após presenciar as habilidades de um arqueiro num circo que passava pelo Vale do Café, a pequena Cecília caíra de amores pelo arco e implorara ao pai por um instrutor quando voltassem a São Paulo. Dos três irmãos, fora a única que perseverara nos treinos com o velho e monótono Sr. Raul de Alcântara.
Ela leu a carta mais uma vez, vendo em cada linha um motivo para seguir em frente. O concurso fora adiado diversas vezes e, agora, tinha nova data para acontecer. Dali a três meses, venceria o tal concurso e dedicaria a vitória a Edmundo. A felicidade dela mal se continha quando ele sorria e a chamava de Minha Pequena Ártemis. Ele era seu maior incentivador, quem vivia dizendo para ela se inscrever em concursos quando fossem a Paris, à Inglaterra. Vencer, agora, era questão de honra. Devia isso a Edmundo.
Cecília sorriu, o ânimo renovado. Você vai ver, meu amor, pensou ela. Você vai sentir muito orgulho de mim. Ela se virou para o irmão e franziu o cenho ao não encontrar eco para sua felicidade no rosto dele.
— Mas isso não é tudo, é? — perguntou ela.
— Eu gostaria de dizer que sim, mas...
O silêncio encabulado e o cenho franzido de Henrique só podiam significar uma coisa. Não. Por favor, de novo, não. Ele ergueu o rosto e disse a única frase que Cecília não queria ouvir:
— Você tem uma visita, minha irmã.
— Eu não vou. — Ela apertou o arco. — Chega disso.
— Eu sei que...
— Não, você não sabe.
Pisando firme, ela foi até o alvo. Puxou cada uma das flechas com violência, enfiando-as na aljava do cinto com as mãos trêmulas. A coluna de Maria Quitéria, ou o que sobrara dela, foi ao chão. Cecília grunhiu, abaixando-se para pegar o maldito texto da fofoqueira. Mesmo despedaçada, seria seu principal alvo até a raiva passar.
Há duas semanas, quando a morte de Edmundo completara seis meses e Cecília trocara seus vestidos negros pelos tons escuros que tanto adorava, os pretendentes reapareceram, solicitando entrevistas privadas com ela. Barões, marqueses e filhos que herdariam títulos e fortunas em futuros longínquos entravam no solar dos Sampaio como se a noiva estivesse esperando por eles. Como se fosse uma honra ser cortejada por um homem medíocre com ideias tão antigas quanto o próprio tempo.
Cecília era fria e, quando o pedido de casamento vinha, negava polidamente. Espero que o senhor entenda e respeite a memória de meu amado noivo. Os homens saíam cabisbaixos, carregando as flores e presentes como soldados derrotados carregavam seus estandartes. Cecília, que até então aturara cada visitinha com a paciência dos santos, começava a ficar irritável.
Jamais, enquanto vivesse, pertenceria a outro homem. Com a partida de Edmundo, decidira pertencer a si mesma em todas as definições da palavra. E assim o faria.
— Mas agora é diferente — disse Henrique. Cecília deu uma risada debochada. — O duque de Monte Claro está ansioso para falar com você.
Ela encarou o irmão. O tal jovem duque misterioso que fora assunto durante semanas no Vale do Café agora dava as caras. E o pior: para pedi-la em casamento. Aquilo se parecia demais com uma ópera ruim. Não pretendia pertencer a outro homem, muito menos a um cujo título suplicava por subserviência.
— Diga a ele que perdeu tempo — retrucou ela. — Isso é uma afronta a Edmundo.
— Eu sei, mas papai, mamãe e Deise já estão tomando café com ele. — Henrique riu e se aproximou. — Além disso, o duque requisitou uma audiência privada com você. E você pode imaginar o quão ansiosa Dona Salomé está para ter um duque na família.
Cecília fez um muxoxo malcriado. Ela puxou a última flecha do alvo e resmungou:
— Pelo amor de Deus, esse tormento nunca tem fim?
— Você só precisa ir até lá e recusar a proposta do homem. — Henrique deu de ombros e riu. — O que, nos últimos tempos, parece ser a sua especialidade.
— Se eu for, serei mal-educada.
Henrique ergueu as mãos em sinal de rendição e disse:
— Se você fizer o duque chorar, prometo lhe dar uma caixa de bombons. Outra.
— Daqueles franceses?
— Daqueles franceses.
Cecília sorriu e entregou o arco e aljava ao irmão antes de ir ajeitar a toalete.
Mal podia esperar para receber seus bombons.
•••
Com a toalete apresentável, Cecília desceu as escadas em direção à sala de música. Berta, a velha e bondosa governanta, interceptou-a no corredor. Seus olhos castanhos brilharam quando ela apertou as mãos e disse:
— Um duque, senhorita! Um duque! O que a senhorita dirá?
— Direi a ele o que disse a todos os outros.
— Oh, senhorita! — lastimou-se a governanta, apertando os dedos gorduchos. — Ele me parece ser um homem tão, tão, tão bom!
— Esse é o grande problema — resmungou Cecília. — Eles sempre parecem.
Ela abriu as portas da sala de música e entrou. A mãe e a irmã caçula permaneceram sentadas com as xícaras nas mãos. O pai, cuja careca começava a aparecer e cujo bigode tinha as pontas retorcidas, ergueu-se da poltrona. Um homem alto, loiro, deixou a xícara sobre a mesinha de centro e se levantou do sofá. Cecília enrijeceu ao ver, diante de si, o parvo que derramara vinho branco em seu vestido no baile da baronesa de Santa Cruz.
Mas ele não deveria ser o duque de...?
— Aí está minha filha do meio, Srta. Cecília Sampaio. — O pai sorriu. — Sua Graça, Benjamin Machado de Andrade, sétimo duque de Monte Claro.
O parvo abaixou a cabeça em sinal de respeito.
Cecília tentou sorrir, porém não conseguiu. Seus bombons estavam perdidos.
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