Chào các bạn! Vì nhiều lý do từ nay Truyen2U chính thức đổi tên là Truyen247.Pro. Mong các bạn tiếp tục ủng hộ truy cập tên miền mới này nhé! Mãi yêu... ♥

02. Ares, Afrodite e um Hefesto sem personalidade

"E aos pobres amigos distantes de São Paulo, um átimo de alegria: se realiza hoje à noite, no charmoso Vale do Café, o baile da excelentíssima baronesa de Santa Cruz, mas um passarinho me contou que as obras de arte dessa mui venerável dama não serão a única atração da festa. O filho do velho duque de Monte Claro está de volta ao Brasil para averiguar os negócios da família, porém não se alegrem, senhoritas. O rapaz em questão, diferentemente do pai, é tão sem personalidade que seu apelido por estas bandas é 'Duque Apagado'. Mas é como sempre digo, queridas: não há nada que uma boa fortuna e um delicioso título de duquesa não seja capaz de consertar."

– COLUNA SOCIAL DE MARIA QUITÉRIA, SÃO PAULO, 1910


Por Deus, a baronesa não tem um pingo de bom gosto, pensou Cecília tão logo colocara os olhos nas pinturas que adornavam o salão feito troféus de guerra. Cavalheiros e damas se espremiam para ver mulheres seminuas, deitadas em divãs suntuosos e com expressões entediadas. O pintor, um sujeito de bigodinho e terno branco, olhava para todos com o desdém comum dos artistas. Cecília revirou os olhos e se afastou da turba. Esperara mais das tais pinturas escandalosas da baronesa e das fofocas estrondosas. Maria Quitéria, a rechonchuda fofoqueira que tinha uma coluna n'O Paulistano, sabia como fazer um circo com qualquer mediocridade.

São Paulo em peso estava ali. E depois de tanto tempo sem os divertimentos da metrópole, era um tônico para Cecília ouvir as conversas e risadas no salão. Mesmo que as pinturas fossem suficiente para chocar apenas os fazendeiros de intelecto mediano da região, a música e os divertimentos eram bem-vindos.

Em outro salão, a música pairava sobre os convidados como um convite. Diversos casais se alinhavam na pista de dança, pequenos grupos de velhos senhores debatiam política e moças esperavam convites para a próxima valsa vindo de jovens cavalheiros insípidos. A noite abafada contribuía para o clima de expectativa, mas nada interessava à Cecília.

Onde você está, Edmundo?, pensou ela ao ver um militar sorridente se servir de mais um copo de ponche. Não via a hora de dançar com o noivo, contar-lhe sobre as pinturas escandalosas — que no final das contas nem eram tão disruptivas assim — e ouvir o som de sua voz. Procurava por Edmundo em cada farda, mas os rostos que lhe sorriam de volta em nada lhe interessavam.

Antes de retomar a procura, Deise pegou em seu braço e a puxou para o outro lado do salão lotado. As duas ainda riam quando chegaram num canto escuro e reservado, o local ideal para duas irmãs fofocarem sobre a festa.

— Você não vai acreditar no que acabou de acontecer — disse a irmã mais nova, as covinhas iluminando seu rosto afogueado. — Dê um palpite!

— Me parece que você viu um passarinho verde — disse Cecília, apertando os olhos para Deise. — Ou, quem sabe, um certo cavalheiro especial?

— O marquês e eu...

— Eu não falei nele, Deise.

A irmã corou de imediato. Desde que o tal marquês do Rio Verde chegara ao Vale do Café, era assunto na pequena casa de chá de Dona Ondina. Pouco sabiam sobre o homem, a não ser que visitava uma vez por semana o pequeno sebo do Sr. Menelau, que se formara médico no Rio de Janeiro, que muito em breve dividiria com o velho doutor da região os atendimentos locais e que era visto com frequência na casa de chá, acompanhado por um bom livro e uma fatia de torta.

— Ora, citei o marquês porque vim falar sobre ele — disse Deise, as bochechas coradas. Ela virou a cabeça tal qual uma corça. Seu nariz arrebitado, aliado aos cabelos loiros presos por duas trancinhas singelas, deixavam-na com aquele ar de boneca de porcelana. Deise sussurrou: — O marquês me pediu para ser sua parceira na próxima dança.

As matronas mais experientes do Vale do Café comentavam que o tal marquês tinha olhos apenas para seus livros e para a filha mais nova dos Sampaio. E não é que, pelo menos uma vez na vida, elas estavam certas? Cecília percebera a solicitude do marquês para com Deise, a maneira como seus olhos verdes sempre brilhavam ao avistá-la na rua ou na casa de chá, mas evitava comentar sobre isso com a irmã. Seus modos eram recatados em demasia para qualquer sugestão.

— Ora, isso é ótimo. Ele me parece um bom homem. — Cecília apertou as mãos da irmã antes de completar: — Seu único defeito é ter esse tal título que...

Deise riu e disse:

— Um dia descubro porque você é tão avessa a títulos de nobreza.

— Porque vivemos numa República, irmãzinha. — Cecília sorriu com o canto dos lábios e sussurrou a última parte: — Nenhum homem é melhor do que outro somente porque possui um papel qualquer assinado por um velho imperador.

— Por Deus, não deixe Dona Salomé ouvir você. — Deise riu. — Aliás, nossa mãe adoraria saber que a filha do meio envia artigos expressando ideias do gênero para O Paulistano.

— Fale baixo! — ralhou Cecília, olhando para os lados. Temia capturar a atenção de um daqueles velhotes monarquistas, mas ninguém as observava. — Você sabe que foi... necessário.

— Sei, José Joaquim Castro.

Deise tinha uma sobrancelha erguida. Cecília corou ao ouvir o pseudônimo. Falar sobre seus escritos inflamados para o jornal num baile onde a grande maioria ainda chorava a morte da monarquia e da escravidão era algo perigoso demais.

— Mas não falemos disso — disse ela. — Vá dançar com o seu marquês.

— Bem, não sei...

— Não sabe? — rebateu Cecília. Encolhidas no canto escuro da escadaria que dava para o segundo andar, viram quatro militares de casaca azul brilhante passarem por elas. Deise apertou as mãos enluvadas. — Qual é o problema? Ele parece um bom homem...

— Não é sobre isso, Ceci. — Ela pareceu incomodada. — É sobre a nossa mãe.

— O que Dona Salomé tem a ver com isso?

— Estou falando sobre o duque.

Cecília ergueu as sobrancelhas. De novo aquele lorde metido. Por Deus, o Vale do Café era tão tacanho, tão amante das convenções que quando situações do tipo deixavam tal faceta evidente, Cecília tinha vontade de tomar a primeira charrete de volta a São Paulo.

— O duque? — repetiu ela, confusa.

— Ora, mamãe quer que eu dance com ele.

— E desde quando você dá ouvidos às bobagens de Dona Salomé? — Cecília observou a irmã, que ainda não parecia convencida. — Olhe, nem sabemos se o tal lorde azedo está aqui. O salão inteiro pararia para vê-lo entrar.

— Você tem um ótimo ponto, Ceci, mas...

— Pare com isso e vá dançar com seu marquês. — Cecília beijou as mãos da irmã, mas antes de deixá-la ir, perguntou: — Você viu Henrique entre os convidados?

— Henrique estava comigo, mas sumiu tão logo viu Mariana. — Deise sorriu. — No fundo, você estava certa. Henrique está cosido às saias de sua melhor amiga.

Cecília riu. A paixonite do irmão por sua melhor amiga, potente desde a infância, dava o que falar na região. Os Pimentel eram uma das famílias mais ricas do Vale do Café, e grande parte da sociedade discutia, tanto ali quanto em São Paulo, quando Mariana se casaria. A outra parte, composta por famílias mais conservadoras, evitavam tanto o assunto quanto estar na presença dos Pimentel e de sua pele escura.

— E Edmundo? — perguntou Deise. — Algum sinal dele?

— Nada ainda — resmungou Cecília, esticando o pescoço para fora do vão da escada. Por um momento, esqueceu-se da presença da irmã e disse para si: — Espero que ele já esteja aqui.

— Saberíamos se ele estivesse. — Deise sorriu. — Não é somente nosso irmão que possui a curiosa mania de andar cosido às saias de uma certa dama.

— Edmundo é meu noivo. É natural estarmos...

Porém Cecília deixou a frase no ar. Sobre a cabeça de Deise, entre os convidados que riam e conversavam em círculos pelos salões, ela viu a figura imponente do marquês de Rio Verde procurar por alguém, pedindo licença e perdões conforme pisava nos pés de algum desavisado.

— O cavalheiro está procurando por você. — Cecília apertou as mãos enluvadas de Deise. — Dance com ele e me conte tudo tão logo a noite terminar, sim?

Pálida, Deise assentiu. Cecília beijou o rosto da irmã e saiu do esconderijo.

Todos os salões do casarão estavam lotados. Cecília mal conseguia dar dois passos sem pedir perdão por pisar nos pés de algum cavalheiro insuportável ou tropeçar nas saias das senhoras. O calor da noite, aliado à concentração de convidados, deixava o clima espesso como os caldos feitos por Berta quando alguém na família Sampaio ficava doente. Tudo por causa de pinturas que nem são tudo isso, pensou Cecília, espremendo-se entre os convidados.

Ela olhou para o lado, ainda à procura de Edmundo, quando o pior ocorreu: deu um encontrão em alguém. E como se o fato não fosse ruim o suficiente, Cecília sentiu um líquido escorrer do colo ao abdômen, por dentro do vestido, feito uma serpente.

A primeira reação foi agradecer por sua preferência em vestidos escuros, a segunda foi erguer a cabeça para saber quem era o destrambelhado que derrubara uma taça inteira de vinho branco em seu colo.

O cavalheiro era alto e tinha no rosto alongado e sem um traço de bigodes, olhos azuis pálidos e uma expressão aparvalhada irritante. Seus cabelos eram grossos, revoltos e cor de areia. Pelo olhar assustado e arregalado dele, parecia ser a primeira vez que o cavalheiro em questão via uma mulher de carne e osso diante de si.

Cecília ficou parada, furiosa entre a massa de convidados e o imbecil que a olhava com a taça de vinho, agora vazia, frouxa na mão.

— Me... me perdoe, senhorita — começou ele, piscando os imensos olhos azuis. — Não tive a intenção de... me... eu...

A sorte dele era estarem na casa de uma das damas mais educadas da sociedade, caso contrário, Cecília não teria segurado a língua. Ela sorriu a contragosto, inundada em vinho, e respondeu:

— Sempre acreditei que refrescos são essenciais em noites quentes. — Cecília fez uma pausa. — Mas prefiro quando eles ficam do lado de fora do meu vestido.

Ele ficou rubro.

— Sinto muito. Deixe-me acompanhá-la ao...

— De maneira alguma — respondeu ela, rápido demais e com um gesto irritadiço das mãos. Não podia ficar ali, perdendo tempo com o tal aparvalhado. Precisava encontrar Edmundo. Ela deu um sorrisinho irônico e completou: — O senhor já fez muito por mim esta noite. Até mais.

Ele abriu a boca para se desculpar pela milésima vez, porém Cecília sumiu na multidão do salão lotado. O casarão não comportava o número de convidados e só de olhar para a massa compacta que teria de enfrentar para chegar ao toalete mais próximo, Cecília alterou seus planos. Subiria as escadas e, uma vez lá, teria paz para verificar o estado de seu vestido.

Quando enfim alcançou o calmo e silencioso segundo andar, ainda resmungando baixinho contra o imbecil que lhe fizera o favor de encharcar seu vestido, parou e encarou outra pintura de uma jovem nua com um sorriso travesso. Cecília balançou a cabeça. Nem no segundo andar, onde a presença dos convidados era vetada, a baronesa dera trégua às pinturas escandalosas.

Imaginava os comentários sobre as escolhas nada ortodoxas da baronesa tão logo retornasse aos saraus de São Paulo, quando a mão de um cavalheiro cobriu sua boca. Com um braço forte, foi envolvida pela cintura e imobilizada por trás. Refreou a vontade de pedir socorro porque ele sussurrou em seu ouvido:

— Se a senhorita gritar, todo o meu esforço para surpreendê-la terá sido em vão.

Aquela voz tinha apenas um dono. Cecília se virou de imediato, alegre como sempre acontecia quando ele estava envolvido, e confirmou as suspeitas. Seu Edmundo a encarava com o sorriso mais lindo do mundo.

Ela o enlaçou pelo pescoço, tamanha falta sentira do noivo naquele mês. Cecília fechou os olhos e respirou fundo.

Não havia nenhum outro lugar no mundo onde ela gostaria de estar.


•••


Se Benjamin Machado de Andrade pudesse escolher, ordenaria a um dos lacaios sem expressão para buscar sua carruagem imediatamente. A pequena reunião da baronesa de Santa Cruz, que se pavoneava com um belíssimo e jovem pintor francês pelo salão, atingira seu ápice de alegria e diversão. E quando isso acontece, está na hora de ir embora, pensou ele, encarando os convidados dançando uma mazurca saltitante. Subornara o corneteiro para não o anunciar, mas duvidava de que o anonimato durasse muito mais.

Discretamente, o jovem duque de Monte Claro puxou o relógio de ouro do bolso do colete. Amanhã visitaria a irmã em São Paulo para ver o estado de seus jardins e flores. Como sempre, Luísa não poderia se preocupar menos com as pobres orquídeas dele. Sorriu ao pensar nela, em seus cabelos loiros e olhos vivazes ao vê-lo. Mas o sorriso de Benjamin, como tudo o mais em sua personalidade, foi passageiro. Pouco mais de seis meses, pensou. Em pouco mais de seis meses ela estará arruinada por minha causa. O estômago dele se contorceu e, ansioso, enfiou o relógio de volta ao bolso do colete.

Apertou as mãos com força atrás das costas. O vinho derrubado na dama desconhecida deixara os dedos dele úmidos dentro das luvas. Por que havia de ser um desastre tão absurdo em eventos sociais? Desde a morte do pai, a presença do novo duque de Monte Claro era requerida em São Paulo e arredores para eventos que não poderiam lhe interessar menos. Benjamin, que antes raramente deixava suas estufas e roseiras no interior de Londres, agora vinha para o Brasil e era obrigado a conviver com danças terríveis, conversas enfadonhas e mães ansiosas para arranjar um casamento vantajoso para as filhas.

E justo quando ele pensava no terror que seria se casar com uma daquelas moças tão sem personalidade quanto ele próprio, viu a Sra. Brigantina Mourão vindo em sua direção com um sorriso largo no rosto redondo. Não, pensou ele, rígido ao perceber que a velha senhora trazia a filha, uma moça de olhos bovinos e bochechas coradas, pelo braço. Pelo amor de Deus, não. Ele fora obrigado a travar conhecimento com as duas — e com a vontade inabalável da mãe de arranjar um bom casamento para a filha — na casa de chá da cidadezinha do Vale do Café.

A mazurca terminou e os músicos iniciaram uma quadrilha capaz de levantar até os mortos. Cavalheiros e damas viraram as cabeças, deixaram taças e pedaços de bolo de lado e, num frenesi de alegria, preencheram a pista de dança. Benjamin aproveitou a oportunidade para sumir em direção às escadas, ao tranquilo segundo andar. Apesar da estatura, embrenhou-se entre os convidados que convergiam à pista de dança, subindo os degraus de dois em dois. Já no topo, viu a cabeça redonda da Sra. Mourão virar de um lado para outro, à sua procura feito um cão perdigueiro. Ele suspirou aliviado e se afastou da balaustrada. Precisava encontrar o toalete, lavar as mãos grudentas e tentar salvar as luvas brancas antes de chamar a carruagem.

Mas avistou a dama desconhecida que encontrara mais cedo, quando lhe fizera o favor de inundar seu vestido com uma taça de vinho. De costas para ele, ela admirava as pinturas escandalosas nas paredes. Benjamin quis, outra vez, desculpar-se pelo incômodo, porém seus planos foram frustrados por um homem vestido em uniforme militar de gala, que saiu silenciosamente de uma das portas e agarrou a dama por trás.

Num primeiro momento, o choque. Precisava interceder, tomar alguma atitude para ir em socorro dela, mas de todas as características de sua personalidade sem atrativos, ser um homem de ação não estava entre elas. O duque de Monte Claro recuou, utilizando a parede como esconderijo. Quando espiou os dois, agradeceu por não interromper. A dama se jogou nos braços do militar, beijando-o na boca com tamanha paixão que Benjamin corou.

— Por Deus, senti tanto a sua falta, Edmundo — disse ela, descansando a testa na dele. Os cachos de seus cabelos escuros caíram sobre os ombros nus. — Mas diga-me, chegou há muito tempo? Como estava Paris? Qual a sua opinião sobre as pinturas?

O homem abriu um sorriso largo, típico dos soldados jovens e encantadores.

— Eu literalmente acabei de chegar. Subi há pouco para lavar o rosto antes de procurá-la. — Ele estreitou os braços ao redor da dama. — E também senti sua falta. Não imagina o tormento que é ficar longe de minha amada noi... o que aconteceu com seu vestido?

— Ah, isso. — Ela revirou os olhos. — Um parvo me deu um encontrão e derrubou todo o vinho sobre mim. Uma calamidade, se quer saber.

Escondido pela parede, Benjamin corou. Não passava, de fato, de um parvo. Um parvo que, além de tudo, ouve a conversa dos outros. O duque tentou ir embora, porém era difícil abandonar uma conversa cujo tema principal era a sua pessoa.

— Ora, não seja cruel com o homem. — O jovem militar sorriu, segurando o queixo dela com delicadeza. — Aposto quantos réis você quiser que ele só cometeu tal desatino porque ficou tão encantado com a beleza de Cecília Sampaio que não soube como reagir.

— Admito que prefiro Sra. Edmundo Monteiro, meu querido.

— Em breve, meu amor. Em breve. — Ele deu um sorriso largo. — Aliás, gostaria de saber quem andou usando minha motocicleta e a deixou quase sem gasolina no galpão. Você por acaso não saberia me dizer?

— Não faço a mais remota ideia — Ela colocou a mão sobre o peito numa expressão de ultraje que realçava suas maçãs do rosto. — Ou o senhor está acusando uma dama?

— De maneira alguma — respondeu ele, risonho. — Estou acusando minha noiva, que parece ser amante de motocicletas, jornais e todas as coisas erradas.

— Aliás, você leu meu último artigo?

— Li pouco antes de embarcar para Paris.

— E o que achou?

— Mordaz. — Ele beijou o queixo dela. — Exatamente como minha pequena Cecília.

Ela sorriu de um jeito matreiro e os dois se beijaram outra vez. Ao perceber que o encontro era apenas a lenga-lenga de corações apaixonados, Benjamin decidiu ir embora. No entanto, cinco palavras sussurradas foram suficientes para pregá-lo ao chão:

— Eu preciso de você, Edmundo.

A urgência na voz rouca dela e a necessidade presente em cada fonema foram suficientes para acender uma chama de curiosidade no jovem duque. A ciência das pessoas, seu segundo maior passatempo após a botânica, ditava que uma dama jamais deveria se dirigir a um cavalheiro daquela maneira imprópria. Benjamin espiava o casal como um moleque de rua, vendo ruir diante de si as hipóteses absurdas de todos aqueles pseudo homens da ciência.

— E eu preciso de você, Cecília — sussurrou ele, encostando a testa na dela. — Não imagina quão terrível foi ficar em Paris sem você. Eu preciso de você. Quando podemos...

— Agora — disse ela, resoluta.

A maneira como os dois se olhavam e tocavam, como se todo o resto fosse acessório, impressionava o duque. Sentia-se ao mesmo tempo dentro e fora, assombrado e atraído pela vivacidade que jamais faria parte de sua vida.

— Agora? — perguntou Edmundo, rindo.

— Sim — respondeu ela. — Anselmo está com você?

— Sim, mas o que o meu criado tem a ver com...

— Pode dispensá-lo hoje à noite. Não vamos precisar dele. — O sorriso dela seria capaz de conquistar qualquer metrópole da Antiguidade. — Vou fingir uma indisposição e ir para casa. Os outros ficarão, tenho certeza. Quando você chegar, os criados estarão dormindo, então...

— É melhor subir pelas trepadeiras e bater na sua janela — completou ele, rindo. — Não é como se fosse a primeira vez que fazemos isso, minha querida.

— Eu sei, mas todo cuidado é pouco quando...

— Vamos nos casar, Cecília — disse o militar, sorrindo e segurando o queixo dela entre o polegar e o indicador. — O que poderia dar errado?

— Ora, meu amor. — Ela sorriu com o canto dos lábios e se afastou. — Os homens têm pensamentos muito curiosos. Talvez você seja do tipo que goste de deflorar as damas e deixá-las para trás. Nunca se sabe.

Benjamin piscou, atônito pelo tom jocoso num assunto que, em hipótese alguma, deveria ser levantado diante de ou por dama. Ele ficou rígido atrás da parede quando Edmundo riu.

— Pode até ser — disse o militar. — Mas não pretendo deixar esta dama escapulir tão cedo. Principalmente hoje à noite.

Eles se beijaram outra vez com a vontade avassaladora dos verdadeiramente apaixonados. É hora de deixar os amantes seguirem seu caminho.

Benjamin corou e, mesmo com o vinho já seco nas luvas, decidiu procurar o toalete.


•••


Na base da escadaria externa do casarão da baronesa, esperando a carruagem com os olhos fixos na rua, tudo latejava para Benjamin. Os resquícios animados da música chegavam a ele feito ondas no calor estanque que soterrava os pensamentos de quem ousava não se divertir.

Irritado com a maldita demora da carruagem, Benjamin puxou o relógio do bolso, mas tornou a fechá-lo. De que adiantava contar as horas se elas não passariam mais rápido? Deveria ter mandado trazerem seu automóvel quando deixara Londres. De maxilar trincado, voltou o rosto para uma risada faceira. Ele enrijeceu ao ver a dama do militar, Cecília Sampaio, subir numa carruagem com o auxílio de um velho criado sorridente.

Eu preciso de você, Edmundo. Incomodado por ser o terceiro componente numa dança para dois, Benjamin corou. Acompanhou em silêncio o velho criado fechar a porta e acenar para a moça. O jovem duque tentou, mas foi impossível não pensar em Inês.

Olhos verdes infinitos como o tempo, musselinas sussurradas pelos salões, o riso despreocupado e a maneira como ela sempre inclinava a cabeça ao ouvi-lo falar das flores tão amadas eram lembranças recorrentes. Pensou em como estreitou Inês em seus braços uma última vez, nos beijos trocados no labirinto de sebes, na entrega transparecida nos olhos, no pensamento perigoso que desde então crescia no peito dele feito...

— Já está de partida, meu amigo?

Benjamin foi arrancado de Inês e da confissão sussurrada num fôlego só por Antônio. O amigo tinha as faces coradas pelo calor e sua gravata estava torta. Benjamin recebeu a encarada fixa de Antônio e de seu bigode bem cofiado como um incentivo para ir em frente.

— Você me conhece muito bem — respondeu o duque, sem jeito como se o marquês pudesse ler seus pensamentos. — Festas e bailes nunca me agradaram.

— Se você deixasse de ser um turrão...

Benjamin sorriu com o canto dos lábios e permaneceu olhando para a frente, para o breu que tomava conta para lá dos portões da baronesa de Santa Cruz.

— Você parecia estar se divertindo bastante — comentou o duque. — Quando não me apresentava a moças tão sem brio quanto eu, causava inveja na pista de dança.

O amigo passara a noite dançando com uma pequena adorável, loira e de olhos azuis vivazes feito a chegada da primavera. Antônio e a jovem não descansavam um minuto, e dominavam a pista de dança com entrosamento que certamente causaria uma onda de fuxicos entre as matronas.

Sem graça, o marquês pigarreou, escondendo as mãos às costas.

— Algumas companhias têm o dom de iluminar uma noite intragável — disse ele.

— De fato — respondeu Benjamin. Ao notar que o amigo não trazia o chapéu, perguntou: — Você já está de partida?

— Vim apenas conversar com você.

— Estou esperando a minha...

— Sua carruagem. Eu sei. — Antônio fez um gesto de cabeça para um grupo de jovens rapazes que entravam no casarão da baronesa. Voltou-se para Benjamin com as sobrancelhas erguidas. — Vim falar sobre o testamento de seu pai.

— Outra vez isso? Pensei que já tivéssemos resolvido.

— Você recusou todas as moças que lhe apresentei hoje à noite. Todas. — Antônio tinha a expressão fechada. — Você não dançou, e estávamos com menos cavalheiros no salão.

— Não gosto de dançar.

Benjamin agia como um menino mimado, porém era mais forte do que ele. Não queria dançar ou conhecer as mulheres da região. Queria ir embora, voltar à Inglaterra para cuidar de seus negócios e suas flores. De preferência, o mais rápido possível.

— O seu tempo está acabando — disse Antônio.

— Alguns dias atrás, você disse que tínhamos tempo — rebateu Benjamin, sem olhar para o marquês. — O que aconteceu com isso?

— Se você não se casar dentro de seis meses...

— Eu perco minha fortuna — resmungou ele. — Não precisa me lembrar.

Antes de morrer, o velho duque de Monte Claro, conhecendo a natureza desinteressada de seu primogênito, pregara-lhe uma peça do além-túmulo: se Benjamin não se casasse até três anos depois de sua morte, a fortuna inteira dos Machado de Andrade iria direto para Percival dos Reis, um primo distante e tão asqueroso quanto os cortiços de São Paulo.

Ele fez isso porque sabia, pensou Benjamin, encarando com fúria contida as carruagens que congestionavam a estrada do casarão da baronesa. Eu jamais me casaria com ninguém além de Inês.

— Não tenho uma esposa e não pretendo ter — resmungou Benjamin, alteando a voz para ser ouvido sobre a música animada que vinha da casa. — Inclusive, mesmo que eu quisesse, como arranjaria uma mulher disposta a se casar comigo em pouco mais de seis meses? É loucura.

— Mas a sua fortuna...

— Eu não me importo.

— E com a sua irmã? — O bigode bem aparado e os olhos verdes do amigo cumpriram seu papel paternal de pressionar Benjamin. — O que você vai fazer quando a sua irmã ficar sem dote? Quando tiver de mendigar pelas ruas ou se curvar à vontade dos outros? Às vontades de Percival? Você não se importa com isso também?

O duque encarou o marquês. Luísa era seu cravo branco, seu botão de rosa, o amor mais puro e sincero de Benjamin. Aceitaria ficar arruinado, distante de suas flores e de seus estudos científicos para manter seu orgulho e ignorar os desmandos do velho duque, mas não suportaria o sofrimento de Luísa. E o senhor sabia disso.

— Perdi incontáveis noites de sono para remediar o problema — disse Benjamin.

— Não duvido, mas o tempo...

— Eu sei. — Sem forças, Benjamin ajuntou: — Ninguém sabe disso melhor do que eu.

Um homem a cavalo surgiu a trote no jardim da fazenda, saltando da sela aos tropeços e cruzando os portões do casarão da baronesa num passo apressado. O duque e o marquês, atraídos pelo som, viraram a cabeça na direção dos lacaios que o recebiam.

— Aquele parece ser o criado de... — começou Antônio, franzindo o cenho.

O homem ergueu os olhos para eles e, com anuência de um dos lacaios, aproximou-se.

— Doutor, graças aos céus — disse com urgência, fazendo um gesto de cabeça curto para Benjamin. — Preciso de um médico.

— Acalme-se, Anselmo — Antônio o observou como se a enfermidade fosse lhe saltar aos olhos treinados. — O que há?

— O Sr. Monteiro sofreu um acidente não muito longe. Foi... a motocicleta. Eu preciso...

Eu preciso de você, Edmundo. A boca do jovem duque ficou seca. Não podia ser o mesmo homem que, há poucos momentos, fazia planos com a dama de sorriso fácil e espírito vivaz.

— Me leve até lá, eu... — Antônio se virou para Benjamin. — Você vem, meu amigo?

— Vou deixá-lo trabalhar em paz — disse Benjamin, enquanto o lacaio se aproximava com sua carruagem. Antes de o marquês sumir com o criado do militar sorridente, daquele Ares que tinha milhares de planos para passar a noite com sua Afrodite, o jovem duque segurou o cotovelo de Antônio. — Salve o homem, meu amigo. Por favor.

O marquês assentiu e seguiu Anselmo a passos rápidos.

Na carruagem, novamente a voz da dama preencheu seus ouvidos. Eu preciso de você, Edmundo. Benjamin apoiou o cotovelo na janela e fechou os olhos. Por favor, não deixe o homem morrer, Antônio, pediu ele, como se o melhor amigo fosse a divindade responsável pela vida e pela morte. Estranhamente, seus pensamentos voltaram à Inês, mas não por muito tempo.

Não havia mais nada a ser feito.

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro