Capítulo 3: Alice no País das Maravilhas
Saint Luna, 06 de abril de 1981
Segunda-feira - 10:02 A.M.
Hoje é o meu aniversário, por incrível que pareça, o meu primeiro com papai em casa. Eu quase não o via porque ele passava a maior parte de sua vida em Washington DC, realizando experimentos junto com outros cientistas. Mamãe não dizia muito, mas ela sempre foi fiel e sempre o amou mesmo que ele se dedicasse mais ao trabalho do que à família.
— Feliz aniversário, minha jujubinha! — Ele chegou de surpresa em casa, abrindo a porta enquanto segurava uma enorme caixa.
— Papai! — Corri para abraçá-lo, quase deixando o velho cair no chão. Ele riu me abraçando de volta e me entregando a caixa toda embrulhada. — Está aí, exatamente o que você pediu.
Ansiosa, abri a caixa de presente e vi uma boneca de pano toda colorida, com o leve cheiro de morango. Abracei ela e sorri mostrando os dentes com algumas janelinha.
— Eu adorei, obrigada papai! — Vejo mamãe se aproximar com um bolo feito em casa e seis velinhas. Eles começam a cantar parabéns e nos divertimos o resto do dia.
Esses dias estavam indo bem, tirando o fato de que nos mudaremos, não de estado, país ou bairro, só de rua. Aquela casa não estava mais dando para a gente e o espaço era pouco para as bugigangas do papai, então fomos para uma casa bem maior.
Saint Luna, 28 de abril de 1981
Segunda-feira - 11:49 P.M.
Estava tarde e eu ouvia sons estranhos batendo pelo corredor. Todos estavam dormindo e estava escuro numa noite fria. Aquele som era agonizante mas a curiosidade falou mais alto. Me levantei da cama aos poucos dando leves passos até a porta, abrindo-a de forma lenta e silenciosa. Pus a cabeça para fora na expectativa de encontrar algo suspeito, mesmo que o medo tomasse conta do meu corpo. Não havia nada no meu corredor, então juntei toda a coragem que tinha e saí do quarto, fechando a porta atrás de mim e começando a andar.
Minha respiração estava pesada e o coração acelerado como se fosse sair do meu peito a qualquer momento. Andei em direção ao som, que por coincidência vinha de uma sala cuja porta só vivia trancada. Papai dizia ser seu escritório, mas nunca deixou eu ou mamãe entrar.
Sem querer, esbarrei num dos brinquedos jogados no chão, fazendo barulho e o som vindo da sala parar imediatamente. A porta se abriu e vi a figura do meu pai parada na frente dentro de um jaleco e com o cheiro de fio queimado.
— Alice? O que está fazendo aqui uma hora dessas? Eu te acordei? — Perguntou preocupado se aproximando e se abaixando até ficar do meu tamanho.
— Desculpe, papai. Eu perdi o sono e não consigo mais dormir. — Minha voz soava sonolenta e curiosa. Ele suspirou se levantando e segurou minha mão.
— Tudo bem, eu também. Quer ver meu experimento novo? Só não conta para a sua mãe, okay? — Me animei com a proposta e concordei com a cabeça. Começamos a entrar naquela sala-mistério que tinha uma luz azul para iluminar o ambiente.
— O que o senhor está fazendo? — Perguntei curiosa vendo todas aquelas máquinas e objetos estranhos em enormes mesas. Uma tela gigante que parecia ter vindo do futuro, mostrava imagens em desenho do cérebro e vários tipos de funcionamento.
— Uma grande experiência que vai me ajudar a descobrir o limite do funcionamento humano. Talvez possamos transformar alguém em algo muito maior e muito mais forte nunca visto antes. Quer me ajudar? — O pedido era tentador, mas talvez não fosse tão bom quanto eu imaginava. Ele me levou até uma cadeira que parecia aquelas de dentista, me fazendo sentar e olhar para a tela.
— Vai doer? — Questionei preocupada e um pouco assustada, mas ele me acalmava colocando um vídeo no telão. Falava sobre planos futuros para a humanidade e como salvar o planeta. Prestei a atenção em cada detalhe de forma curiosa e intrigada, até que o vídeo acaba e o meu pai me olha.
— Não vai doer nadinha. — Foi a última coisa que lembrei antes de sentir uma pontada no meu braço me fazendo dormir imediatamente.
Não me lembro bem como acordei, só acordei e não estava nem no meu quarto e nem na sala estranha do papai. Era uma rua onde as casas eram pequenas retangulares, cinzas e idênticas, uma grudada na outra. A rua era larga e grande dando espaço para caminhões passarem ao mesmo tempo.
— Mamãe? Papai? Onde vocês estão? — Comecei a andar nervosa pela rua com os olhos molhados de lágrimas. Eu estava sozinha e isso me assustava. Começo a correr procurando alguém e gritando, mas todas as ruas eram idênticas e não levavam a lugar algum, até que um grupo de homens vestindo ternos cinzas e óculos escuros se aproximou. Eram exatamente seis homens com mãos de robô e os dentes estupidamente brancos.
— Vocês são androides? — O que eu estava falando? Eu ao menos sabia o que eram androides. Os homens começam a se aproximar e eu me virei para correr até o outro lado, mas mais um grupo dos mesmos homens me cercaram, fazendo com que eu ficasse sem saída.
— Por favor, não me machuquem! SAIAM DAQUI! — Implorei começando a chorar e tampei o rosto com as mãos. Ouvi uma explosão e abri os olhos novamente, vendo que os homens haviam, de certa forma, "explodido" espalhando fios para todo o lado de uma hora para a outra.
— "Fase um nome 'ZL 001 medo' completa com sucesso."
Uma voz robótica anunciou do céu, fazendo o cenário mudar para uma noite estrelada, e as casas virarem casas normais de um bairro simples canadense.
— O que está acontecendo? Papai, me tira daqui, POR FAVOR!
Abri os olhos e novamente me vi na sala do papai. Meu corpo estava trêmulo e ele me olhava com um certo brilho nos olhos e um sorriso "orgulhoso".
— Sim, sim, sim! Mil vezes sim! — Ele começou a rir e dançar na sala, me deixando totalmente confusa e com a cabeça latejando. — É isso o que você viu? Esse é o nosso futuro, meu amor! Você é o nosso futuro.
Saint Luna, 19 de setembro de 1989
Quarta-feira - 10:48 P.M.
Alguns anos haviam se passado desde o meu primeiro experimento e outros experimentos vinham se tornando constantes pelo menos duas noites por semana. Conforme esses experimentos, eu ia ficando mais rápida e inteligente como se meu cérebro estivesse em exercício. Junto com meu pai eu havia aprendido a enfrentar meus medos e usar estratégias ao meu favor e ainda montamos uma cidade inteira futurista por um ano, porém algo me incomodou nesse tempo. Meu pai havia se tornado um homem frio que dedicava seu tempo inteiro apenas na ciência e esqueceu da família. Ele não se importava mais se sofríamos os ou sentíamos dor e isso me deixava triste. Eu gostava dessa situação no começo e me sentia útil, mas comecei a ganhar medo e receio conforme sua mudança.
— Alice, vamos para o último teste. Ele é bem... diferente, mas não tenha medo, pense no bem que fará para os seus descendentes e o resto das pessoas. — Disse me guiando até os fundos da sala de experimentos. Havia uma máquina que pareça de refrigerante, mas era vazia por dentro.
— O que você está fazendo? Eu não vou entrar aí dentro! — Digo indignada com os braços cruzados olhando fixamente para aquela máquina.
— Você vai sim, Alice LaRue, não me decepcione a esta altura do campeonato! — Sua voz era alta e grossa com o tom de autoridade. Me nego novamente e vejo ele se aproximando.
— O que pensa que vai fazer? Eu vou começar a gritar! — Eu sabia que mamãe não ouviria, com um tempo ela havia começado a ficar doente e parecia não estar muito ativa nesses dias.
— Agora que você começou vai ficar comigo até o final! — Suas mãos grandes e pesadas me seguraram com força, me empurrando para dentro daquela máquina enquanto eu me debatia e gritava por ajuda.
— ALGUÉM ME AJUDA! MÃE! —Dentro daquela máquina qualquer som parecia ser anulado. Comecei a socar a porta daquela máquina, chutar, esmurrar, mas não adianta.
Olhava o homem que naquele tempo já não era mais meu pai, e sim um cientista que desenvolveu distúrbio de egoísmo e ambição à ciência, sem se importar de que poderia ferir até sua própria filha, e não estava nem aí para sua mulher.
— Você não é mais a mesma, jujubinha. Você passou dos limites do meu plano e eu sinto muito por te criar como uma máquina. — Sussurrava ele próximo à máquina e andava até sua mesa que tinha vários botões, apertando alguns deles em ordem. A temperatura da máquina começava a diminuir me fazer tremer de frio, enquanto ainda tentava sair dali.
É, pelo visto não haveria mais jeito. Ele havia vencido, aquele homem cruel deveria ser punido!
Horas se passaram e pedaços de gelo começavam a surgir congelando minhas mãos, meus cabelos e meu nariz. Meu pai ainda estava lá terminando de fazer seja lá o que estivesse fazendo, sem dar a mínima de como eu estava ou do que estava acontecendo.
— Eu nunca deveria ter aceitado! — Digo sozinha com a voz trêmula enquanto lembranças começam a vir à tona na minha mente. Me lembro de ter ouvido Oliver LaRue no telefone diversas vezes com seus amigos falando sobre "mudança do mundo" ou "avanço científico" e até mesmo "foco apenas na ciência". Pelo visto ele desejava se tornar maior e melhor cientista da história, nem que isso custasse sua família. Ele estava louco! Nem com mamãe se importava mais e nem se ela morreria. Não se importava nem em saber o que ela tinha desde o início, e se continuasse assim, eu teria que dar um jeito de salvá-la e tirá-la daquela casa.
"Ainda não é o fim, garota!"
Ouvi aquela voz que me fez arrepiar, e dessa vez não era de frio. Achei que já estivesse ficando louca como meu pai, mas talvez estivesse certa.
— Cale a boca, android! — Respondi fraca até notar que a voz não era robótica. Talvez fosse um espírito ou algo do tipo, mas eu não levava muita fé nisso.
— "Talvez seus experimentos junto com seu pai não tivessem sido em vão. Use o que aprendeu contra ele."
Meu subconsciente falava por mim e dessa vez eu o deixei ter opinião. Me levantei fraca e com frio e o vidro estava embaçado me impedindo de ver lá fora. Passei a mão limpando o vídeo e vendo uma garrafa de whisky jogada no chão e Oliver adormecido.
— O frio é psicológico, por favor, ignore! — Tentei fazer com que o frio não me incomode e não me deixe fraca. Me imaginei quente e forte e o frio começou a sumir com o meu pensamento, mesmo eu sabendo que não era real.
Força não adiantaria, isso era fato. Eu precisava pensar, precisava arrumar uma forma de sair dali. Calculei que congelaria totalmente em pelo menos uma hora.
— Tudo bem, primeiro fique calma. Depois tente achar bordas. — Passei instruções por instruções para mim mesma como se estivesse falando com outras pessoas. Forcei a visão procurando algo que possa me ajudar a sair. Notei uma pequena caixa no teto da máquina fechada com parafusos. Não dava para tirar com a mão mas poderia ser a única saída. O frio começava a voltar a me rodear e eu tentava ignorar o máximo que podia, mas estava ficando cada vez mais difícil focar em mais de uma coisa.
— Concentração! — Peguei o zíper da minha blusa e comecei a desprendê-lo da roupa. Amassei a ponta com os dentes e voltei a olhar para a caixa. Solto parafuso por parafuso com o zíper que fiz de ferramenta e tiro a tampa. Agora dentro da caixa estava fios e fios.
— Agora vem a parte fácil. — Sussurrei, e com força mas mãos, mexi nos fios soltando os necessários para a máquina abrir e não parar de funcionar.
Ouvi o som da porta destrancar e suspiro aliviada. Saí aos poucos sentindo o ar quente vindo com tudo. Peguei o jaleco do meu pai jogado na mesa e visto tentando diminuir o frio que passei.
Agora era a vez da volta. Simplesmente não poderia deixar um cientista maluco impune que quase me matou congelada e está matando minha mãe aos poucos. Me aproximei do seu corpo sonolento e babado e o cutuquei. Ele não acordou, provavelmente ainda estaria bêbado e inconsciente. Comecei a carregá-lo até sua própria máquina e o tranquei lá da mesma forma que ele havia feito comigo. Oliver começou a ganhar sobriedade e voltou aos sentidos, socando a porta e gritando coisas que eu não podia ouvir.
Me apertei mais no seu jaleco até sentir algo no bolso. Levei minha mão esquerda até o lugar sentindo um frasco de vidro pequeno e quase vazio com um pó branco no final.
— Mas o que... — Antes de terminar a frase, lembro que era ele que dava os remédios e chás para minha mãe antes de dormir. Liguei ponto por ponto pensando no porquê e minha expressão muda para horror. — Você envenenou ela. VOCÊ ENVENENOU MINHA MÃE, SUA PRÓPRIA MULHER! VOCÊ É UM MONSTRO, MERECE PAGAR POR TUDO O QUE FEZ!
Gritei sabendo que ele não ouviria e antes de sair, peguei um livro de instruções e planos para o futuro que havíamos criado. Eu sabia que o que estava prestes a fazer era errado, mas era tarde demais para voltar atrás.
Peguei a garrafa de whisky no chão que estava pela metade e comecei a espalhar pelo lugar. Seu olhar pelo vidro era de ódio enquanto ainda tentava sair de lá. Fiz com que a porta da máquina de gelo não abrisse da mesma forma mesmo com cada instrução do seu criador.
Peguei a caixa de fósforo que ele usava para acender seu cigarro e jogo no chão, fazendo vidros explodirem e um fogo começar a subir com uma fumaça preta. Saí de lá fechando a porta e trancando-a, correndo até o quarto de mamãe.
— Mãe, acorda! A casa está pegando fogo! — Toquei nela e sinto ela fria e fraca, como se não estivesse mais ali. — Mãe? MAMÃE, ACORDA, POR FAVOR! — Coloco seus braços ao redor do meu ombro e a puxava para fora da casa. O fogo se espalhava aos poucos junto com a fumaça que impedia minha visão e atrapalhava minha respiração. Coloquei minha blusa sobre meu rosto enquanto tentava sair da casa com minha mãe. Explosões ecoavam da sala de experimento se espalhando rapidamente pela casa toda. Consigo sair com minha mãe e os vizinhos já estavam na rua olhando desesperados vendo a fumaça. A ambulância e os bombeiros chegaram rapidamente pelo pedido de alguém próximo, algum vizinho. Eles levam minha mãe numa maca e afirmam que ainda estava viva. Ainda.
Dei uma última olhada para trás e um último adeus enquanto as memórias eram queimadas junto com meu pai.
Saint Luna, 19 de Janeiro de 1991
Sábado - 12:01 P.M.
Eram quase dois anos depois do "acidente". Minha mãe conseguiu sobreviver ao envenenamento matinal do meu pai e no fim, tudo passou como "acidente de trabalho". O corpo foi carbonizado por inteiro, quase transformado apenas em cinzas e a casa foi por fogo abaixo.
Eu e mamãe ficamos um tempo com minha tia Ellie, irmã do meu pai, que tinha acabado de perder o marido militar numa guerra. Seguimos nossa vida com muita dor e ninguém nunca descobriu o que eu fiz, e nem nunca irão.
Começaria minha vida novamente, um retorno. Consegui me matricular num colégio chamado Everest High School que por sorte não era longe de casa. Eu, minha mãe e tia Ellie iríamos para outra casa, bem maior que a antiga. Nova vida, nova rotina e tudo recomeçaria.
O tempo estava começando a esfriar, me trazendo más lembranças. O vidro do carro estava embaçado e a janela de trás aberta. Com uma leve brisa, um pedaço de papel entra pela janela e para no meu colo. Eu estava prestes a amassar e jogar fora, até notar letras. Me viro um pouco para que minha mãe não veja e abro o papel aos poucos.
"VOCÊ VAI SE ARREPENDER PELO O QUE FEZ"
Espero que tenham gostado. Vote no capítulo se você gostou e comente suas opiniões sobre o livro! Sz
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