A musa do carnaval
Desde que saí de Pendura Saia, minha terra natal, decidi rodar o Brasil dentro do meu inseparável poisé. O fuscão vermelho que serviu de ninho de amor para muitas gatinhas atrás no muro de cemitério, até aquele boi bravo sair comigo nas carreiras depois de descobrir que eu brincava de médico embaixo do lençol com sua mulher. Mal sabe ele, que ela é quem me procurava desde que eu não sabia sequer beijar na boca.
Viver de cidade em cidade era bom demais da conta, aprendi muita coisa bacana por esse Brasilzão à fora, fiz amizades, virei uma mistura de sotaques, conheci muita mulher bonita e de vez em quando pegava uma feia que é pra não perder o costume. Mas, vamos parar de prosa e contar sobre aquela manhã sinistra nas estradas desertas do interior de Minas Gerais. Eu viajava para a cidade de Varginha, queria conhecer a terra do ET, mas tive que mudar o trajeto e fui parar no Rio de Janeiro da maneira mais maluca que contando ninguém acredita.
Parei à beira de uma estrada deserta para tirar água do joelho, sempre evitei fazer isso, mas estava muito apertado e o próximo posto de gasolina ainda estava longe que só vendo. Desci ressabiado, eu é que não ia entrar no mato, vai que uma onça me come, uma sucuri me engole ou o chupa cabra aparece, nunca fui o cara mais sortudo da terra, então, pra quê arriscar?
Baixei o zíper ali mesmo e fui logo fazendo o serviço quando uns arrepio doido me chamou a atenção para uma cruz a alguns passos de onde eu estava. Ouvi tantas histórias de beira de estrada que se um pássaro cantasse eu já saía correndo, e aquela cruz ali no meio do nada, me fez renovar minha fé enquanto assobiava uma música de procissão que aprendi com minha avó quando ainda era um pivete.
— Me dá uma carona?
Uma voz feminina no meu ouvido quase me manda pro além.
— Aaaaaa — meu grito saiu mais fino do que um miado de gato, mas o pior foi tentar guardar o toniquinho com aquela tremedeira diante daquela morena parada em pé atrás de mim.
— Me dá uma carona, moço?
— De onde você saiu criatura? — Perguntei com o coração acelerado.
— Fez xixi na calça, moço?
— Lógico, você me assustou, de que buraco saiu aqui no meio de nada?
— Eu estava aqui, você que não viu, moro ali embaixo — a maluca apontou para a ribanceira.
— E tá indo pra onde, não tem medo de ficar por aí sozinha?
— Suzana, meu nome, eu tinha medo, mas hoje não tenho mais — ela colocou as mãos atrás do corpo e se balançou de um lado pro outro com um sorriso que me deixou encantado. — Me dá uma carona pro Rio de Janeiro, moço?
— Eu sou Tonico, mas não tô indo pro Rio de Janeiro moça, posso te deixar na próxima cidade se quiser.
— Tudo bem — a estranha pulou no banco do carona antes mesmo de eu entrar no carro.
Aquele arrepio não saía de mim, olhei outra vez para aquela cruz, me benzi e entrei no fusca, pelo menos agora eu não estava sozinho.
— Essa Cruz é de uma moça que se acidentou ali nessa mesma época a alguns anos — disse ela.
— Minha avó dizia, que onde tem essas cruzes, sempre tem uma alma perdida — comentei saindo com o carro. — O que a moça tá indo fazer no Rio?
— Vou no desfile de carnaval, esperei o ano todo por isso.
— Eu nunca fui no carnaval — comentei.
— Como assim nunca foi, o carnaval é a maior festa brasileira; é comemorado em outros países, mas em nenhum outro lugar acontece igual aqui. Não tem como dizer que é brasileiro e não conhece o carnaval, moço.
— A festa pagã que antecede a quaresma, eu sei sim o que é carnaval moça. Sei o significado para a religião e para o brasileiro também, só nunca fui.
— Vem comigo, eu te garanto que vai gostar.
— Eu vou na terra do ET.
— Eu pago todo o custo da viagem se me levar até a Sapucaí, e depois vamos pra terra do ET o que acha?
— Sei nem andar na cidade grande moça, sou cria do interior.
— Deixe de ser bobo, Tonico, vem comigo conhecer o que é diversão de verdade, lá eu encontro minha família e te pago tudo certinho.
A maluca me contou que era neta do fundador da escola de samba e que desfilava desde criança, não demorou muito eu já tinha contado sobre minha vida e já cantava uns modão animado em volume máximo indo rumo a terra do Cristo.
— Por que parou aqui?
— Vou abastecer, tomar um banho e comer alguma coisa — falei parando em frente à bomba de gasolina de um posto a beira da estrada.
— Não tem medo desses banheiros vazios no meio do nada?
— Cruz credo, assusta eu não moça — respondi pegando a notinha da mão do frentista que parecia aqueles carinha de filme de terror.
— Cuidado com a loira do banheiro — a peste deu uma risada, deve ter visto minha cara de assustado. — Ela aparece no espelho e...
— É sério moça, minha mãe fez umas rezas e fechou meu corpo, mas deve ter deixado algum buraco aberto porque sou um imã pra coisa sobrenatural, posso nem pensar nessas coisa que fico arrepiado.
Peguei minha mochila, paguei a gasolina, o banho, e fui até o banheiro atrás do posto que estava deserto como todo o resto. Cada passo era um arrepio, entrei já me benzendo evitando olhar pro espelho, não queria ver nenhuma loira do outro lado. Tirei a roupa apressado e fui logo me banhando quando senti uma mão gelada me agarrando pela cintura. Nem gritar eu consegui, logo pensei na loira do banheiro, mas para minha surpresa, foi a minha carona que chegou toda assanhada. A diaba era safada que só vendo, chegou metendo a mão e o negócio pegou fogo, parecia coisa de outro mundo, nunca vi um trem daquele quase não dou conta do recado, mas sou guerreiro e lutei até o fim.
— Eu gostei de você, Tonico, pena que não te conheci antes.
— Eu gostei da moça também — falei penteando meu cabelo no espelho.
— Você é bonito, essa barba te deixa sexy, e esse olho preto parece duas jaboticabas — disse ela me abraçando por trás. — Eu nunca peguei um homem grande assim.
— Eu nunca tinha feito safadeza num banheiro assombrado — eu ri abotoando o botão da minha camisa.
— Essa viagem está sendo muito especial para mim porque é meu aniversário de dezoito anos.
— Ara mais, então nóis tem que comemorar, morena.
— Na Sapucaí, Tonico, só me leva pra lá que eu quero comemorar sambando.
Ela me deu um tapa no traseiro e foi saindo...
— Pois então eu vou ver esse tal de carnaval, já que é tão importante pra moça — falei seguindo seus passos.
Saímos do posto e ainda faltavam alguns quilômetros. A moça até que era uma boa companhia, falava de tudo, ria animada, não tinha frescura e era boa na arte da safadeza. Não é que levei a sorte grande por uma carona?
— Você vê muita coisa nas suas andanças?
— Já voltei dos mortos no meu próprio velório e visitei uma cidade que não se mostra pra qualquer um. Lá tinha lobisomem, mula sem cabeça e uma tiazinha feia que se transformava em coruja, mas foi em sonho, acordado eu nunca vi nada, nem quero.
— Tem medo de alma penada?
— Muito.
— Mas a gente não faz nada pra ninguém.
— Nem brinca com isso moça, chego fico arrepiado.
— Você é engraçado, Tonico — ela tinha um sorriso tão fofo que me desconcentrava.
Rodamos mais uns par de quilômetros e chegamos na boca da noite no tal Rio de Janeiro, um lugar barulhento e cheio de gente apressada. Achei que fosse mais difícil entrar, mas Suzana encontrou uns amigos e logo o fuscão estava guardado no estacionamento de uma das escolas. Eu aprendi nas minhas andanças que o povo brasileiro é muito hospitaleiro, mas aquela noite como turista foi diferente de tudo o que vivi, muita alegria e paixão naqueles sorrisos de quem trabalhou o ano todo para fazer o negócio acontecer.
Nada do que vivi se compara a estar ali no meio daquele furacão chamado carnaval, povo festeiro que só, era muita gente pelada em um espaço pequeno que cheguei a ficar tonto. Suzana foi para um lugar se arrumar e eu fiquei por ali olhando aquele povo pintado, umas roupa cheia de pena com umas corrente e fios enfiados no rego fiquei curioso para saber se não esfolava tudo.
Na minha cidade, para convencer uma moça a tirar a roupa dava um trabalho danado, mas ali já tava tudo pelada e ainda brilhava que só; eu via pela televisão e achava que era invenção, mas era tudo de verdade, umas coisa tão bonita que dava vontade de encher o fusca e levar pra casa.
— Tonico!
Quando me virei, o coração disparou e o zóio chegou encher de água, toniquinho até levantou para espiar comigo de tão emocionado que fiquei. A Suzana estava linda por demais com aquela roupa azul cheia de brilho e muitas penas; seu cabelo agora também era azul e aquelas pinturas no rosto parecia coisa de outro mundo. Ela deu uma volta para eu ver e fiquei com cara de tonto, era beleza demais para uma única pessoa, parecia até uma pintura.
— Feliz aniversário, minha musa do carnaval — cocei a cabeça envergonhado na frente daquela moça linda.
— Foi você quem me trouxe até aqui Tonico, essa festa é nossa — ela correu e se jogou em meus braços.
— Tá linda demais — eu ria feito um bobo.
— Vou estar de destaque em cima daquele carro alegórico, você vai acompanhando embaixo com meus amigos, aproveita que essa festa vai ser inesquecível.
— Vou te roubar pra mim, minha morena.
— Você é meu, Tonico, só meu agora — ela me agarrou outra vez, era beijo, mordida e unha na costela, eu tava era no paraíso.
Era muita correria, muito barulho, gente demais da conta comecei a ficar tonto. Suzana subiu no carro e eu fui praticamente arrastado pro meio daquela multidão embaixo daquele bicho enorme. Quando começou o batuque, meu pé mexia sozinho, nunca dancei carnaval, mas era tão bom que inventei meu próprio jeito de sambar, mandava beijo para minha musa que brilhava com o traseiro de fora no alto daquele carro.
Na minha cidade ela seria criticada, mas eu tava era orgulhoso da minha cinderela em sua carruagem, era só estender a mão e me levava pra onde quisesse. Nunca me diverti tanto, abraçava os companheiros, dancei com as tia, bebi e pulei até não querer mais, por mim aquela noite poderia durar um mês inteiro, mas quando vi já estava do outro lado.
— Eu queria fazer uma homenagem à nossa eterna musa que há cinco anos nos acompanha lá de cima. Uma salva de palmas para Suzana e todos os que já passaram por aqui levando alegria a essa gente maravilhosa — Disse o cara que puxava aquela música quando passamos pelo portão.
— Uhul é a minha garota! — Assoviei olhando pra cima.
— Cuida de nós aí de cima, Suzana! — Gritou uma moça.
— Cuida não, desce aqui e bora chaquaiá o esqueleto que a noite é nossa, minha musa do carnaval — gritei ganhando a atenção de um grupo de pessoas que me olhou esquisito.
— Ué cara, ficou doido, respeite a memória da garota!
— É seu babaca, fica aí zoando os mortos — disse o outro carinha.
Não quis bater boca, vai que é doença, voltei pro meio dos meus camaradas, logo ela ia aparecer...
— Eu, hein, povo estressado — comentei com o companheiro que estava o tempo todo ao meu lado dançando e tomando uns goró.
— Quando era vivo eu também vivia estressado, mas agora, nem sei mais o que é isso.
— Credo em cruz companheiro, brinca com isso não — já fui me benzendo.
— Relaxa jovem, a morte é a única certeza da vida — ele acenou pros companheiros ao nosso lado, que concordaram.
— O que tinha nessa pinga? — Perguntei assustado.
— Você é um bom homem, Tonico — o cabra me abraçou pelo ombro. — Faz cinco anos que a Suzaninha morreu tentando chegar aqui e dançar o carnaval, mas nunca conseguiu uma carona para realizar seu objetivo.
— Rapaz, num fala um trem desse, eu viajei com ela, fiz um xamego, tomei banho junto e tava vivinha... Moço?
O cara sumiu ali mesmo diante das minhas vistas, evaporou junto com os outros e um arrepio subiu pelo curanchim e foi parar no pé da nuca. Sabe quando até suas tripas se estreitam? Então, eu senti minhas entranhas se revirarem e o fiofó não passava uma agulha.
— Eu tracei uma alma penada no banheiro, isso deve ser um daqueles sonhos malucos que eu tenho, acorda Tonico! — Comecei a estapear meu próprio rosto andando de um lado pro outro. — Ela disse que gostou de mim, e se quiser me levar pro além, ah, meu pai, ela disse que ia me acompanhar pro resto da vida!
— Tonico!
— Aaaaaaaa cruz credo, saaaaaaai! — Eu corri o mais rápido que pude.
— Tonico, espera por mim!
— Que espera o que, vai pra luz, ai mamãe!
Eu corria sem rumo fazendo o sinal da cruz, já não lembrava onde meu fuscão estava, e a doida me seguindo feito uma sombra pra todo lado.
— Eu consegui Tonico, você me trouxe, eu consegui, agora vamos pra terra do ET e depois...
— Quero ver ET não, moça, quero ver morto também não, ai minha mãe socorroooooo! — Eu gritava feito um doido pela multidão. — Tem uma morta atrás de mim, socoroooo!
— Tonico meu amor, você me ajudou, eu vou te acompanhar agora.
— Precisa não moça, misericórdia, eu gosto de ficar sozinho, pode entrar no túnel, segue a luz! — Gritei correndo para o outro lado.
— Tonico, não foge de mim!
Quando olhei pra trás, minhas pernas bambearam. A morena que antes era linda, agora estava cinza, toda cheia de sangue, muito machucada, uma cena de terror, eu me mijei todo, gritei, corri, mas ela aparecia na minha frente de braços abertos.
— Porque eu tinha que vir pra essa festa de gente pelada, cadê meu fusca!
— Tonico meu amor, vem comigo, vamos ficar juntos para sempre!
— Fica longe de mim! — Me encolhi em um gramado quando ela se aproximou. — Sai Maria sangrenta, eu quero a minha mãeeee!
— Quando eu era bonita você me queria, Tonico, que coisa feia.
— Fala assim não moça, eu tenho medo de assombração, mas você é linda, tá morta, mas é linda, pode ir em paz que um dia a gente se encontra do outro lado.
— Vou ficar te esperando, Tonicoooo! — Ela abriu os braços e veio em minha direção.
O mundo que já estava escuro sumiu de vez e apaguei completamente. Sempre acontecia como foi em outras situações, mas ali foi diferente, porque acordei deitado na grama abraçado com um vira-lata sarnento que lambia minha boca. Meu rosto estava cheio de desenhos besteirentos que algum desocupado fez, e do outro lado, meu poisé estacionado onde deixei.
Eu realmente estava no Rio de Janeiro, mas a morena assombrada não estava mais ali, entrei no fusca e saí feito um curisco, rezando pelo caminho morrendo de medo dela aparecer no banco de trás ou no espelho. Se foi sonho não sei nem quero saber, mas nunca mais dei carona nem parei na beira da estrada temendo encontrar com a Suzana... a musa do carnaval.
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