Midoraki
ATO I (Void)
— Você trapaceou no último duelo — relato a Báron, em pé ao lado da cama.
— Não é trapaça usar meus dons em batalha — ele retruca, lançando-me uma trouxa de roupa — Mas admito, aquele golpe teria sido certeiro — caminhando à porta. — Vista-se e prepare-se! Estarei te esperando lá fora. E não se atrase! — Sua silhueta desaparece ao sair do quarto.
Ao me levantar, a luz suave que entra pela janela ilumina a cicatriz proeminente em meu peito. A marca fria e áspera sob meus dedos me faz recordar. — Como pude ser tão ingênuo ao confiar nele? — penso, a amargura tingindo cada palavra em minha mente.
Ao me preparar para vestir a roupa, pauso por um momento, observando minha reflexão no espelho. A imagem que me encara de volta é quase irreconhecível. Os meses de treinamento intenso com Báron transformaram meu corpo. Meus músculos, antes quase inexistentes, agora se definem claramente. Os tríceps e bíceps, antes ocultos, agora se projetam com uma força recém-descoberta. Minhas pernas, antes esguias, agora ostentam músculos ligeiramente definidos. Não contendo muitas outras cicatrizes do treino com Báron em prol das Peben.
Enquanto ajusto a vestimenta ao meu corpo, um pensamento me assombra: — Espero que um dia me perdoe por libertar Kinkara — Com essa incerteza pesando em meu coração, preparo-me para enfrentar mais um dia.
À medida que o tecido desliza sobre minha pele, uma memória se insinua, como se estivesse escondida nas dobras do tempo. Me vejo no corredor, escutando sorrateiramente a conversa de Báron e Máterum no aposento adjacente.
A voz grave de Máterum questiona: — Como está o treino com Void?
Há uma pausa, e então Báron responde, sua voz serena: — Ele é fraco, carece de muito treino.
Um peso se instala em meu peito, e sinto uma pontada de desapontamento. Minha postura se curva ligeiramente, e suspiro silencioso escapa dos meus lábios. Silenciosamente, murmuro para mim mesmo: — Fraco?
A voz de Máterum, sempre firme, mas com toque de preocupação, retoma: — Continue o treinando, Báron. Desejo que ele saiba se proteger sozinho.
— Máterum, se não estiver sendo incômodo, posso fazer uma pergunta?
— Diz!
— Por que não o prendeu, ou o matou, pela traição?
Prendo a respiração, aguardando a resposta. O silêncio entre eles parece eterno.
— Não queria... — lamenta Bároln.
Máterum o interrompe, sua voz serena, mas profunda: — Báron, estou cansado disso. A morte deveria ser a última resposta.
Solto o ar lentamente, sentindo-me aliviado.
Escutando as palavras de Máterum com atenção. — O verdadeiro perdão, aquele que transcende o entendimento comum, não se concede porque é merecido, mas porque é uma necessidade da essência. Void é novo, e em sua juventude, ele, como todos nós, é vulnerável a falhas. Não posso condená-lo por uma decisão impensada. Afinal, o verdadeiro teste do caráter não está em nunca errar, mas em aprender e evoluir com esses erros.
— Mas a escolha dele poderia ter custado a vida de seus fi... de nós — Báron argumenta, com breve falha no final.
Máterum pondera por um momento, e então responde: — Não tenhas receio de dizer, Báron. És meu filho tanto quanto Zilevo, ou Ózis. Mas entenda, Void também é agora parte desta família. E em família, aprendemos que o perdão não é apenas um ato de esquecer, mas uma prática contínua de compreensão e aceitação. Filhos cometem erros, e é meu dever como pai, guiar e ensinar, não condenar.
Escutando a voz de Máterum continuar, porém dessa vez como um eco em meus pensamentos: — Meu maior erro foi ter condenado.
O som da batida firme de Báron na porta me traz de volta ao presente. — Vamos, Void! Estão todos nos esperando no salão.
— Estou quase pronto — respondo, pegando pequena lâmina da cômoda e aparando cuidadosamente meus cabelos. — Preciso mostrar a Máterum que realmente mudei — murmuro para mim mesmo enquanto saio do quarto.
Báron me avalia de cima a baixo, seus olhos finalmente pousando em meu novo corte de cabelo. — Ficou melhor assim — ele comenta, com leve aceno de aprovação na face.
Caminhamos juntos em direção ao grande salão.
— A reunião começará em breve — diz Báron, tomando seu lugar na cadeira à direita de onde Máterum se sentará.
— Há quanto tempo, Void — saúda Córpulus, posicionado no extremo oposto da mesa, ao lado de Trogy, um deus com quem ainda não tive a oportunidade de me familiarizar desde minha chegada de Miramer.
Sinto pontada de curiosidade, querendo conhecer melhor Trogy, mas meus dias têm sido consumidos por treinamentos intensivos com Báron ou pela recuperação subsequente.
— O sentimento é mútuo, Córpulus — respondo, tentando esconder a exaustão que sinto, mas também a antecipação pelo que está por vir.
A interação com os outros deuses tem sido limitada, com Báron sendo minha única constante. Pela falta de comunicação, sentindo os olhares de aversão dos deuses que ainda me julgam como traidor.
Entre todos, o olhar de Ézus é o mais penetrante, cheio de desdém e desconfiança.
Inclinando-me discretamente na direção de Báron, sussurro: — Ézus me odeia.
Báron suspira levemente antes de responder: — O que você queria? Você traiu nosso pai. Vai levar tempo e ações concretas para mudar nosso sentimento em relação a você. — Virando-se para conversar com Muntera sentada na cadeira à esquerda da de Máterum.
A escolhe de palavra em “nosso” não passa despercebida por mim. A palavra reverbera em minha mente, um lembrete de que, apesar de tudo, Báron ainda tem alguma mágoa em relação a mim.
— Não se sinta solitário, Void — Moam murmura, sentando-se ao meu lado. — Quando matei Ózis, recebi olhares tão gelados quanto os que você recebe agora.
Embora eu ocasionalmente cruzasse com um deus ou outro nos corredores de Malbork, raramente encontrava Moam. Sua presença era quase tão rara quanto a minha, uma sombra que se esgueira pelos cantos, uma presença efêmera que muitos preferiam ignorar.
— Matei um de nossos inimigos, e fui parabenizado com rancor de nosso pai — Moam confessa, a amargura evidente em sua voz.
Ele sente a indiferença dos deuses. Mas há uma camada mais profunda na rejeição que Moam sente. Como planeta-vivo, ele é diferente de nós, e essa diferença não passa despercebida. Ele é frequentemente alvo de comentários velados e olhares de desdém, como se sua essência o tornasse menos digno.
É uma forma sutil, mas insidiosa, de preconceito que ele enfrenta, lembrança constante de que, para alguns, ele deveria estar com os outros monstros aprisionados em Salacrum, e não entre os deuses.
— Como ainda tem coragem de se sentar conosco? — Interroga Ézus subitamente, encarando-me com aversão. — Máterum devia ter te matado por sua traição — Ele se levanta abruptamente, a cadeira raspando contra o chão, e coloca as mãos firmemente sobre a mesa, inclinando-se em minha direção.
Báron intervém rapidamente, sua voz autoritária cortando o ar. — Sente-se, Ézus!
Mas Ézus, com o rosto vermelho de raiva, não está pronto para recuar. — Não o defenda, Báron — ele rosna, seus olhos ainda fixos em mim. — É mais leal a Máterum que qualquer um de nós. Sei que concorda comigo. — Em um movimento rápido, ele se aproxima e me agarra pela gola, me puxando para perto, seus olhos buscando os meus com uma intensidade feroz.
Báron, sem perder a compostura, responde calmamente. — Concordo. — Meu coração se afunda com sua confirmação, e sinto nó se formar em minha garganta. Mas antes que eu possa processar completamente suas palavras, ele continua: — E é por minha lealdade a Máterum que não posso deixá-lo tocar em Void. Ele decidiu dessa forma. Então solte-o agora e volte ao seu lugar, ou serei forçado a intervir — sua mão pousada sobre a bainha da báneru como aviso.
Há um momento de silêncio com o aviso, onde apenas a respiração pesada de Ézus pode ser ouvida. Finalmente, com grunhido de frustração, ele me solta, e com olhar que promete retaliação, retorna ao seu assento.
— Por qual motivo nos reunimos aqui hoje? — Pergunta Trogy a Muntera.
Muntera começa a responder, mas é interrompida pela voz profunda de Máterum, que ecoa pelo salão: — Um prisioneiro foi liberto dos calabouços.
Os olhos de Ézus se estreitam, lançando-me olhar inquisidor. — Quem libertaste dessa vez? — Perguntam em silêncio.
Muntera, com sua postura elegante, cruza as pernas, destacando sua figura imponente. — Qual prisioneiro escapou?
Máterum, com uma expressão séria, responde enquanto se acomoda em sua cadeira: — Tempórious e Cesaretti.
Trogy arqueia sua sobrancelha, intrigado. — Cesaretti? Não é aquele que tentou te atacar durante nosso treino em Miramer?
Córpulus, tentando encontrar conforto em sua cadeira claramente pequena para sua estatura, acrescenta: — Sabemos que Cesaretti sempre teve seus... desafios mentais. Mas durante os anos que convivemos com ele, mostrou-se leal. No entanto, seus problemas internos eventualmente o dominaram.
Trogy, com olhar intrigado, questiona: — Havia momentos em que ele parecia ser uma sera completamente diferente. Diversas vezes durante uma conversa eu o via mudar de humor rapidamente, mas pensei que fossem apenas variações de temperamento.
Ézus, em tom de desdém, comenta: — Não são simples mudanças de humor. Há ocasiões em que ele age completamente como se fosse outro ser. Como se tivesse esquecido quem é ou o que fez momentos antes.
Báron, tentando trazer objetividade à discussão, intervém: — Independentemente do que pudesse estar acontecendo com ele, o fato é que Cesaretti era imprevisível. Apesar de sua lealdade passada, um deus instável e perigoso não pode permanecer entre nós.
Ézus, com um aceno de concordância, complementa: — Foi por isso que tomamos a decisão de aprisioná-lo.
Córpulus, ponderando, acrescenta: — Ele é um de nós, mas essa peculiaridade tornou as coisas complicadas. Devemos lembrar que ele não escolheu ser assim. No entanto, também não ignoro os riscos que ele representava.
Muntera, com uma expressão decidida, declara: — O foco não deveria ser Cesaretti em si, mas como ele conseguiu escapar e quem poderia ter facilitado sua fuga!
Máterum, com olhar ponderado, assente lentamente. — Entretanto, temo que nossas respostas possam estar fora de alcance. Cesaretti e Tempórious desapareceram há semanas. Eles, junto com quem quer que os tenha ajudado, provavelmente já estão bem distantes.
Ézus lança um olhar penetrante em minha direção, sugerindo: — Ou nesta mesa!
Báron, com firmeza em sua voz, intervém rapidamente: — Void não teve nada a ver com isso. Ele esteve sob minha supervisão durante todo esse tempo.
Ézus, com olhar desafiador, começa: — Mesmo assim, não podemos descartar...
Mas Muntera, buscando retomar o controle da situação, interrompe: — Essa discussão sobre Cesaretti pode esperar. Há outros assuntos prementes a serem abordados.
Ela lança um olhar significativo para Máterum, que, compreendendo a urgência, acena em concordância.
— Trata-se de minha irmã, Dynes, e Térax. Eles partiram para Arcríris em busca de Ózis há meses e, até agora, não recebemos qualquer notícia sobre o progresso da missão.
Ézus, com tom levemente repreensivo, lembra: — Máterum foi claro ao instruí-los a retornar apenas com Ózis.
Muntera, com olhos suplicantes, volta-se para Máterum: — Peço-lhe, permita-me ir a Arcríris e procurar por eles.
Máterum, com olhar pesaroso, responde: — Tera, entendo sua preocupação por Dynes, mas não posso conceder seu pedido.
Muntera, com brilho de esperança, insiste: — Então envie outro deus em meu lugar.
— Não é tão simples assim — Máterum suspira. — Nossas forças já estão esticadas ao limite.
Muntera, com evidente desespero, implora: — Máterum, por favor! Dynes é minha irmã. Peço-lhe, faça pelo amor que tem por mim — e, num gesto de súplica, segura as mãos de Máterum.
Trogy, tentando ser prático, intervém: — Se continuarmos enviando nossos guerreiros em missões assim, estaremos vulneráveis a ataques inesperados dos deuses renegados. Ézus assente em concordância.
Máterum, com tristeza, diz: — Lamento, Tera. Trogy está certo. Precisamos ser cautelosos.
Eu observo a troca, sentindo a tensão no ar. Muntera, com o coração claramente partido, solta as mãos de Máterum e, com uma expressão de revolta, deixa o salão.
Máterum, preocupado com sua reação, instrui Trogy: — Fique de olho nela.
Observo Trogy se afastar, e uma reflexão me ocorre: — Nunca vi Muntera tão expressiva. Não imaginava que seu amor por Dynes a levaria a confrontar Máterum dessa forma — meus olhos se desviando para Máterum.
Ele se levanta, e mesmo à distância, posso perceber a expressão cansada e magoada em seu rosto, como se cada decisão que tomasse lhe custasse um pedaço de seu psicológico.
— Ézus, quero que investigue mais sobre a fuga de Cesaretti. Descobre onde ele possa estar — Máterum ordena, sua voz firme, mas os olhos revelando o peso de suas responsabilidades. Sem esperar uma resposta de Ézus, ele prossegue: — Báron, prossiga com o treinamento de Void. Córpulus, Moam, vinde comigo. Tenho uma tarefa para vós.
Com um aceno de cabeça, Córpulus e Moam seguem Máterum, deixando o salão em um silêncio reflexivo.
— Ouviu as ordens de Máterum. — Báron anuncia, levantando-se. — Temos trabalho a fazer no campo de treino.
Sinto um peso nos ombros só de pensar em mais um treino exaustivo, e ele parece notar minha hesitação.
— Não se preocupe, nosso treino hoje será diferente — ele diz, com brilho misterioso em seus olhos. — Prometi que te treinaria tanto em corpo quanto em mente. Por isso, quero te levar a um lugar.
Intrigado, pergunto: — O que você tem em mente?
Ele não responde, apenas acena para que eu o siga, e assim eu faço.
ATO II
Ao entrar no quarto, a primeira coisa que chama minha atenção é Báron, cuidadosamente manuseando papéis que parecem antigos e frágeis. A luz suave do quarto, filtrada por cortinas esvoaçantes, ilumina os papéis de forma irregular.
— O que são esses papéis? — pergunto, minha voz baixa, quase como se eu temesse perturbar o silêncio sagrado do quarto.
Báron levanta um deles, permitindo que a luz do quarto revele seu conteúdo. — São esboços antigos, representações das antigas criações de Máterum — ele explica.
Me aproximo lentamente, estendo a mão para pegar os desenhos, e meus olhos se arregalam involuntariamente, imediatamente atraídos por figuras majestosas. Cada traço, cada detalhe, evidenciando a distinção entre as obras do Universo. Algumas quase bizarras, enquanto outras de beleza estonteante. No entanto, duas figuras em particular capturam minha atenção.
Apontando para os dois desenhos distintos, pergunto: — Por que esses deuses estão juntos dessas criaturas? — Minha voz é quase um sussurro, e percebo que estou prendendo a respiração, esperando a resposta.
Báron segue meu olhar e responde: — São Vanker e Kólypus. Embora possam parecer conosco em aparência, são, na verdade, monstros.
— Monstros? — Repito, um tanto surpreso. Volto a examinar o desenho de Kólypus e noto criatura diferente no verso do papel.
Kólypus tem traços semelhantes aos deuses, com corpo alto e robusto, pele escura e cabelos ruivos e longos que escondem ligeiramente sua testa arqueada. No verso, criatura colossal se destaca com olhos luminosos, nariz longo e boca repleta de dentes afiados. Seu corpo é coberto por pelos vermelho-sangue e possui garras cinza-escuro.
Báron, com olhar pensativo, pega o papel que retrata Kólypus.
— São monstros que Máterum criou durante o aprisionamento dos deuses renegados — ele começa, virando o papel para mostrar ambos os lados. — Ambas as imagens representam a mesma entidade. Máterum tentou moldar esses seres à imagem dos deuses, mas, assim como com outros monstros, ele não conseguiu mantê-los sob controle e os confinou em Salacrum.
Minha curiosidade se volta para o desenho de Vanker, cujo verso não apresenta uma forma monstruosa.
— E quanto a Vanker? — questiono, analisando o desenho.
Esguio ser, de pele albina de olhos integralmente escarlates, e cabelos longos como o de Kólypus, mas de tonalidade escura.
— Após o fracasso de Kólypus que se transformava de deus a monstro conforme o dia cedia à noite, Máterum tentou algo diferente. Ele criou Vanker, um ser que, embora fisicamente semelhante aos deuses, possuía mente e alma bestial.
— O que aconteceu com Vanker? — insisto.
— Diferente de Kólypus, Vanker conviveu conosco por pouco mais de vinte anos. No entanto, após incidente que transformou Kinkara na monstruosidade que hoje conhecemos e, na partida de Vâgis e Trogy para Miramer, Máterum decidiu aprisionar Vanker em Salacrum.
— O que levou Kinkara a se transformar naquela aberração? — indago, inclinando-me para ver melhor os papéis que Báron segura.
Báron pausa, seus dedos tamborilando levemente sobre o papel. Ele parece ponderar suas palavras antes de responder:
— Apenas Vâgis, Kinkara e o próprio Vanker sabem o que ocorreu naquele dia. O que posso dizer é que aquele evento abalou profundamente Malbork, especialmente Máterum, que perdeu a conexão com dois de seus amados filhos e seu precioso deus-monstro em um único dia.
Enquanto fala, Báron retira mais papéis da mesa e, começa a organizar os papéis, deslizando um deles cuidadosamente e colocando por entre sua cintura.
— Vejo que você não conhece muito sobre os monstros. — Báron observa.
— O que sei sobre eles vem das histórias de Ézus. — admito. — Mas só aquelas relacionadas a Salacrum e aos deuses renegados.
Báron acena com a cabeça.
— Apesar de ínfima quando comparada à nossa, a história dos monstros é fascinante — demonstrando um brilho de entusiasmo em seus olhos, nunca vista antes, nem mesmo durante nossos treinamentos. — A história dos monstros tem apenas quatro anos de liberdade. Começa com Hónker, o imortal, o primeiro monstro, criado desde o nascimento por um dos filhos de Máterum. Se não me engano Zilevo... ou seria Zulfiqar?
Ele se vira para mim, parecendo um pouco incerto.
— Sim, era Zilevo. Se não fosse por sua atitude de cuidar de Hónker, Máterum talvez tivesse desistido de continuar com a criação dos monstro.
— Por quê? — pergunto, inclinando a cabeça com curiosidade.
— A criação inicial de Hónker foi um desastre. O monstro não conseguia respirar o ar de Primárium e não podia viver fora de sua carapaça protetora.
— Então, como ele sobreviveu?
Báron sorri levemente. — Sua incrível capacidade de adaptação. Foi essa característica que instigou Máterum a continuar. Mesmo após a tragédia, Máterum continuou com a criação dos monstros. No entanto, a trajetória sempre foi a mesma: criação, convivência e, eventualmente, aprisionamento.
— Tragédia?
— Não estou totalmente a par dos detalhes, mas foi essa tragédia que levoul ao confinamento de Hónker em Salacrum.
— Máterum ainda está criando monstros?
Báron olha pensativamente, ponderando a questão.
— Muitos deuses ainda debatem sobre isso. Para Máterum, o último monstro que ele criou e aprisionou em Salacrum foi Barego. No entanto, outros deuses veem Barego mais como parte da raça dos animais, considerando-o o primeiro animal. Eles argumentam que Vanker foi, de fato, o último monstro criado.
— E qual é a sua opinião? Vanker ou Barego? — Questiono, curioso.
— Eu diria... Moam.
Arqueio a sobrancelha com sua escolha. — Moam?
Ele assente, seus olhos brilhando com convicção
— Se analisarmos bem, Moam e Térax são a realização do que Máterum sempre quis nos monstros. Primeiro, eles têm semelhanças com os deuses; segundo, possuem a ímpar capacidade de adaptação; e terceiro, o que faltava nos outros monstros: controle.
— Controle? — interrogo, tentando entender.
Báron faz gesto com a mão, como se pesando em algo.
— Exatamente. Apesar da sede de sangue de Moam e Térax, não é uma sede incontrolável que ameaça todos ao redor. É uma sede direcionada. Máterum especificamente escolhe quem deve ser o alvo de Moam e Térax.
Concordo lentamente, refletindo sobre suas palavras.
— Concordo, mas tenho a sensação de que Máterum pode ter se arrependido de sua escolha — comento.
— Talvez. Depois de descobrir que Moam provavelmente assassinou um de seus primeiros filhos, Máterum definitivamente mudou sua abordagem com os planetas-vivos... — Ele interrompe seus pensamentos e, com movimento rápido, puxa o papel de sua cintura. — Tome, antes que eu me esqueça — diz ele, estendendo o papel para mim.
No papel, a ilustração meticulosa de um cajado se destaca. O extenso bastão de zérum é ricamente ornamentado com centenas de letras desconhecidas, todas com brilho cristalino. A ponta do cajado é dominada por uma esfera feita de um cristal arcririsiano esverdeado.
Franzo a testa, tentando lembrar. — Já vi esse cajado em algum lugar...
— Está pendurado na parede do quarto de Máterum — Báron esclarece.
Estudo atentamente as letras e símbolos ignotas gravados no cajado. Intrigado, questiono: — Qual é o significado desses símbolos no bastão do cajado?
Báron, com brilho intenso nos olhos, responde: — Este não é um simples cajado. É a Míspigan, a arma mais poderosa já criada por Máterum — sua voz se enche de reverência ao pronunciar o nome da arma. — Cada símbolo e letra gravados nele representam o poder de criação na sua forma mais pura, fluindo o sangue primordial em cada fragmento, em estado visível e tangível.
Intrigado, continuo: — Se é tão poderoso, por que não o usam contra os deuses renegados? E por que ele está tão abertamente exposto no quarto de Máterum, sem qualquer proteção?
Báron pega o papel, guardando-o cuidadosamente entre os outros na gaveta, antes de responder: — Desde que Theos o usou para tentar assassinar Máterum, a Míspigan nunca mais foi tocada. Está à vista em seu quarto porque apenas Máterum e Theos podem manuseá-la. E Theos jamais conseguirá entrar em Malbork.
— Apenas os dois?
Báron acena, ponderando. — É o que Máterum afirma. No entanto, os símbolos da Míspigan contam uma história diferente.
Báron se aproxima cautelosamente da porta, lançando olhar perscrutador pelos corredores. Após assegurar-se de que estamos sozinhos, ele retorna e pega pequeno livro empoeirado sobre a mesa.
— Ao longo dos anos, mergulhei profundamente nos mistérios do poder de criação. — começa Báron, abrindo o livro com reverência. — A busca pela verdade é uma jornada sem fim, e em minhas andanças, aprendi a decifrar o poder quando eles se revelam a mim, como nesses símbolos do cajado. — Ele pausa, seus olhos se perdendo nas páginas do livro. — O cajado Míspigan, com seus símbolos e letras ornamentados, contam a lenda de um deus esquecido, Midoraki. Ele, segundo os símbolos, além de Máterum e Theos, possui a capacidade inata de empunhar o cajado Míspigan, usufruindo de todo seu imensurável poder. E esse deus, pelo que narra os símbolos, está destinado a realizar proezas inimagináveis, libertador de uma raça oprimida.
Curioso, pergunto: — Você já tentou empunhar o cajado?
Báron suspira, um vislumbre de humildade em seus olhos. — Sim, tentei. Mas falhei. — Ele pausa, refletindo sobre a experiência. — Não consegui nem mesmo movê-lo. Foi como se estivesse tentando levantar o peso do mundo. E talvez, em sua essência, estivesse.
Báron desliza suavemente os dedos pelas páginas do livro, cada página repleta de palavras e símbolos enigmáticos. Ele parece estar em busca de algo específico, uma resposta, talvez escondida nas entrelinhas.
— O mesmo aconteceu quando tentei retirá-lo da estante — alego.
Ao mencionar minha tentativa de retirar o cajado da estante, ele interrompe sua busca, levantando o olhar para me encontrar. Por um breve momento, ele pareceu esperançoso.
— Havia uma parte de mim, Void, que secretamente desejava que você fosse o Midoraki — confessa Báron, retomando sua busca no livro.
Percebo que sua esperança não era por acreditar que havia algo especial em mim, mas sim por seu desejo profundo de conhecer o lendário Midoraki em vida.
— Às vezes, temo que Midoraki possa ser um dos deuses renegados — diz Báron, pausando para mostrar-me um símbolo no livro: um olho cintilante, idêntico ao do meu anel.
Giro o anel em meu dedo, refletindo sobre sua presença constante. — Desde que o coloquei no dedo, nunca mais o retirei. O fato de Máterum não ter solicitado sua devolução após minha traição... deve ter algum significado.
Báron, com olhar penetrante, responde: — Esse olho em seu anel simboliza o “oculto”. — lendo algo no livro e o fechando. — Indica que há um poder dentro de você, talvez vários, esperando para ser revelado com o treinamento adequado.
Com movimento decidido, Báron guarda o livro na mesma gaveta onde os papéis estavam armazenados.
— Talvez minha missão contigo seja justamente essa: desvendar e ascender esse poder oculto que reside em ti. Vou treiná-lo, moldá-lo, até que se torne o guerreiro mais formidável a serviço de Máterum — declara Báron, sua voz carregada de determinação.
Ele fecha a gaveta com um gesto firme e gira a chave, trancando-a.
Então, seus olhos encontram os meus, transmitindo uma gravidade. — Só peço uma coisa: não nos traia novamente. Se isso acontecer, não permitirei que Máterum te perdoe outra vez.
Respiro fundo, sentindo o impacto de seu aviso, e respondo com sinceridade: — Isso nunca mais acontecerá.
Com aceno silencioso, Báron abre a porta do aposento.
Enquanto o sigo, uma afirmação vem em minha mente: — Posso não ser o Midoraki, mas isso não me impedirá de se tornar o melhor guerreiro que Malbork já viu — saindo do aposento com uma chama se acendendo em meu coração.
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