Frosarla - Parte II
ATO IV
— O que faz aqui? — A voz de Réslar me corta, abruptamente. Ela está sentada na cama, ao lado de Lésnar, seus olhos fixos em mim com intensidade desconcertante.
— Vim apenas verificar se estavam bem — respondo, tentando esconder o desconforto que sinto sob o olhar das gêmeas, cuja beleza majestosa é quase opressiva. Olhando de relance para Lésnar, cujos olhos encontram os meus com brilho sutil e curioso.
Réslar se levanta, sua postura rígida. — Estávamos, até sermos interrompidas por sua entrada não solicitada! — Ela avança em minha direção, claramente pronta para me expulsar do quarto.
Lésna, no entanto intervém, segurando o braço de sua irmã. — Não seja tão dura, Réslar. Zilevo só queria garantir que estivéssemos bem. Lembra de como ele nos encontrou da última vez? Estávamos em um estado lastimável.
Réslar lança olhar afiado para Lésnar. — Por que está defendendo ele?
— Não estou defendendo ninguém — responde Lésnar com calma. — Apenas estou sendo justa.
Sinto o peso da situação e decido me retirar. — Lamento a intrusão. Não deveria ter entrado sem aviso — digo, recuando em direção à saída.
— Espere! — Lésnar chama, seguindo-me rapidamente. — Peço desculpas pela reação de minha irmã. Ela só está preocupada. Sempre contamos com Réslar, Críngu e Muntera para nos proteger. Mas desta vez, foram vocês e o Primordial que vieram em nosso auxílio.
— Máterum mencionou que vocês pareciam perdidas em Zaranler. Por que estavam vagando por lá? — pergunto curioso, enquanto contemplo a venustidade de Lésnar.
Ela se move com postura acanhada. Seu tronco desenha-se em curvas discretas, com ombros bem proporcionados, nem largos demais para impor, nem estreitos ao ponto de parecer frágil, desembocando em braços esbeltos e tonificados que denotam elegância natural.
Lésnar suspira, olhando para o horizonte estrelado de Primárium. — Na verdade, não estávamos apenas vagando sem propósito. Tempórious teve um sonho, uma visão, de que seríamos resgatados no planeta Zaranler pelo próprio Universo. Mesmo duvidando um pouco da veracidade desse sonho, decidimos vir a Zaranler. Estávamos em busca de nosso criador e, talvez, um lugar para chamar de lar.
— E quando isso aconteceu? — pergunto, enquanto caminhamos lado a lado sob o manto da noite.
— Há cerca de cinco meses — ela responde.
— Como imaginei — reflito. — Foi exatamente nesse período que eu, Máterum e meus irmãos estávamos em busca daquela energia misteriosa.
Nossos olhares se cruzam, e por um momento, o tempo parece parar. — Seus olhos... — ela murmura, surpresa, — são tão parecidos com os meus.
Fico sem palavras, cativado pela profundidade dos olhos dela, que refletem os meus próprios. Ela inclina a cabeça, claramente confusa com minha reação. — O que houve, Zilevo? Por que está tão silencioso?
Subitamente, um grito estridente rasga o ar, arrancando-me daquela doce lembrança.
— ZILEVO!
Pisco várias vezes, tentando me reorientar ao presente. — O quê? — murmuro, ainda um pouco atordoado, tentando me reconectar à realidade.
— Escutou o plano? — Atênura me questiona, claramente impaciente.
— Que plano? — respondo, ainda tentando me recompor.
Ela suspira, exasperada. — Vou resumir. Você e eu vamos a Frosarla para resgatar meu irmão e pegar algumas Peben.
A informação começa a se encaixar em minha mente. — E talvez eu possa pegar algumas yarótidas e folakes? — penso, seguindo Atênura para fora da cabana.
— Dêbole está desmaiado perto de Nyager, a noroeste daqui — ela informa, com uma certeza que só pode vir de suas habilidades.
— Suponho que tenha visto isso em uma de suas visões. Mas como pode ter certeza de que ele ainda está lá? — pergunto, observando o canário se acomodar em sua bolsa.
— Não foi uma visão. Posso sentir a presença de outros deuses à distância — ela revela, deixando a bolsa ligeiramente aberta.
Fico impressionado. — Quantos dons ela possui? — me pergunto internamente.
— Hónker, venha conosco! — Atênura chama. — Se algo acontecer em Frosarla, você será nossa salvação. — Ela sobe nas costas do gigante e estende a mão para mim. — Vamos, ele nos levará mais rápido.
Assim que me acomodo, Hónker dispara em uma velocidade surpreendente, deslizando em direção ao noroeste como se estivesse patinando no gelo.
— Dêbole está bem distante daqui. Vai levar cerca de duas horas só para cruzarmos a fronteira de Frosarla, e mais algum tempo até chegarmos a Dêbole. Seria bom se você descansasse um pouco até lá — sugere Atênura, acomodando-se e apoiando a cabeça na armadura reluzente de Hónker.
Mesmo com o corpo clamando por descanso, o sono me escapa. A transformação de Hónker me fascina — Como mudou! — Penso. — De uma criatura tão pequenina que cabia na palma da minha mão, para este ser colossal que agora poderia me esmagar sem esforço. Será que, em algum lugar dentro dessa imensa armadura, ainda se lembra de mim? — me pergunto silenciosamente.
Deslizo minhas mãos pelas frestas da armadura, sentindo as marcas e cicatrizes que recebeu em Salacrum.
— Eu nunca deveria ter permitido que te aprisionassem em Salacrum — sussurro, quase como uma confissão, enquanto acaricio a marca com toque suave.
De repente, rugido ensurdecedor de Hónker rasga minha mente, puxando-me para uma memória distante.
— RAWW! — Ruge Hónker enfurecido, seus olhos incendiados e sua postura ameaçadora, como uma fera prestes a atacar.
— TANRI, PARE! Ele não teve intenção! — Grito desesperadamente, vendo a areia do deserto se erguer como serpentes vivas, envolvendo Hónker em abraço sufocante, sob o comando de Tanri.
— Não se atreva a interferir, Zilevo! — Tanri rebate. Sua voz carregada de raiva, originada por Hónker ter machucado Theos de forma tão inesperada.
A areia aperta Hónker, tentando sufocá-lo, mas com rugido primal, ele rompe suas amarras e se lança em frenesi em direção a Tanri, paralisado pelo medo.
Antes que Hónker possa alcançar Tanri, uma força invisível o arremessa para trás, fazendo-o deslizar pela areia.
— O que está acontecendo aqui?! — A voz poderosa de Máterum interrompe o caos, enquanto ele se aproxima de Tanri, que está ajoelhado, cobrindo o rosto com as mãos.
— Pai, deixe-me explicar! — Exclamo, correndo em direção a Máterum, cujos olhos se estreitam com severidade ao me encarar.
— QUIETO! — Sua voz retumba, cortando o ar. — Perguntei a teu irmão — ele adverte, seu olhar se desviando para Theos, que jaz imóvel atrás de Tanri.
Tanri engole em seco, hesitante. — Estávamos brincando, e de repente, Hónker se descontrolou e nos atacou.
— Isso não é verdade! Foi Theos quem o provocou! — Protesto, mas o olhar de Máterum me silencia.
— Não importa quem começou, Zilevo. O fato é que Hónker poderia ter matado seus irmãos! — Máterum responde.
— Ele nunca faria isso! — Defendo, olhando para Hónker desacordado na areia.
Tanri, com brilho desafiador nos olhos, dispara: — Deveríamos enviá-lo a Salacrum, junto com os outros monstros — comunica de maneira ignorante, esquecendo-se dos bons momentos com Hónker.
— Não seja estúpido! — Rebato, irritado. — Nosso pai jamais faria isso!
Máterum me encara, seus olhos profundos e cheios de tristeza, gerando aperto em meu peito. — Não...
— Lamento, coração! — diz Máterum com uma voz pesada, dando passos em direção a Hónker. — Mas Tanri tem razão. Não posso arriscar que isso aconteça novamente. A segurança de todos é mais importante que Hónker, por mais que ele signifique para você.
— Não! Não acontecerá novamente! Por favor! Por favor, o dê outra chance! — Imploro, a desesperança crescendo em mim.
Máterum, com suspiro pesado, responde: — Hónker pode ter momentos de bondade, mas sua natureza selvagem sempre prevalecerá. Ele pertence a Salacrum, com os de sua espécie.
Antes que eu possa reagir, sensação estranha e invisível permeia o ar. Não há luzes, não há sons, apenas um vazio sutil que parece sugar a essência de Hónker. Então, em um instante, ele desaparece, como se nunca tivesse estado ali.
— NÃO! — Grito, empurrando Máterum com todas as minhas forças, a dor e a traição queimando em meu peito. — TRAGA-O DE VOLTA! Por favor! Traga-o de volta! — Suplico aos prantos.
Monstro gentil. Braços descomunais feitos com o propósito de proteger e aconchegar todos que ama. O grito de sua dor jamais será esquecido pelo coração. Viverá, entretanto, nunca morrerá. O imortal, a criatura destinada a amar o odiado.
Yarótida – fruta de tonalidade vermelho-clara, cujo interior abriga um fluído diáfano. Este líquido, ao ser consumido, desencadeia um frenesi arrebatador, aguçando todas as habilidades e sentidos do ser que o ingere. A Yarótida é conhecida por sua capacidade de elevar até mesmo um deus a um patamar de poder comparável ao do Primordial. Em doses elevadas, amplifica poderes, habilidades e sentidos em mais de mil vezes. No entanto, essa dádiva vem com alto preço: a vida do deus é ceifada após oito horas de glória inigualável. Essa fruta rara é oriunda da árvore Forla e é a mais preciosa dentre as três lendárias Frutas Primordiais.
ATO V
— Como? — Pergunto, com os olhos arregalados e a respiração suspensa.
Sinto arrepio percorrer todo meu corpo ao ouvir o chilrear agudo do canário de Atênura. A bolsa em minha frente começa a se agitar de forma errática, e rugido poderoso emerge dela, fazendo meu peito vibrar. A sensação é quase como se o ar ao meu redor estivesse pulsando.
A bolsa se afasta de Atênura e, num movimento rápido, o canário salta da bolsa e pousa no chão diante de mim. O som sutil das penas crescendo é quase hipnótico, lembrando o farfalhar de folhas ao vento. Sinto o chão sob meus pés tremer levemente, e tenho que me equilibrar para não cair. O pequeno pássaro, que até então parecia tão frágil, começa a se transformar diante dos meus olhos.
A cada segundo que passa, sua silhueta se expande e se transforma. Suas delicadas asas de pássaro crescem e engrossam, tornando-se colossais e cobertas de penas brancas. Elas se estendem majestosamente, onde antes estariam suas pequenas asas, e agora possuem envergadura que rivaliza, ou até supera, com a de Hónker.
O bico, antes curto e fino, estica-se, tornando-se longo e ligeiramente arqueado, como uma lança pronta para atacar. O som que ele produz ao se esticar é quase perturbador, como o ranger de madeira sob pressão.
Seus olhos, pequenos e inocentes, se transformam. A íris e a pupila adquirem tom ainda mais profundo de magenta. Os pés crescem e se fortalecem, terminando em quatro garras curvas e afiadas, prontas para agarrar qualquer coisa.
O corpo da criatura se expande e se enche de músculos, coberto por penas negras tão escuras quanto a noite mais profunda. No entanto, seu rosto se difere com o resto do corpo, adornado com as mesmas penas brancas de suas asas, dando-lhe uma aparência majestosa e ao mesmo tempo ameaçadora.
Atênura ergue os olhos para a imponente figura de Birxyno, sua voz carregada de autoridade e urgência. — Birxyno, leve Nyager e Dêbole em segurança para casa agora! — ela ordena, apontando na direção da morada.
Assim como Birxyno, Nyager não é uma criatura comum. Com sua postura quadrúpede, seu corpo se estende em um comprimento impressionante, marcado por robustez que denuncia força e poder. Seu pelo, liso e de um negro profundo, camufla-se facilmente nas sombras da noite. No entanto, pequenas listras de tom ciano-escuro, dispostas aleatoriamente por sua pelagem, quebram essa monotonia escura. Sua cauda, espessa e longa, termina em uma bifurcação distintiva. Mas o que realmente chama a atenção são seus olhos: o direito, de um ciano-escuro profundo, e o esquerdo, de um magenta-escuro intenso, ambos com pupilas finamente dilatadas. E, para completar sua aparência ameaçadora, sua boca revela uma fileira de dentes afiados e pontiagudos.
Contrastando com a majestosidade de Nyager, uma figura mais sutil adormece em seu dorso: um deus de pele parda e corpo magro, quase se perdendo na vastidão da pelugem da criatura.
Com delicadeza, Birxyno envolve Nyager e Dêbole com suas garras, e com forte bater de asas, ergue-os do chão e alça voo, rumo à cabana de Xâmobe.
— Em algumas horas, Birxyno retornará — Atênura comenta, seus olhos varrendo o terreno ao redor. — Isso nos dá tempo suficiente para localizar as Peben.
Observo enquanto ela se ajoelha, suas mãos delicadamente vasculhando a neve. — Use sua habilidade especial, sua visão pode ser crucial agora — sugiro, tentando ajudar.
Ela se levanta, sacudindo a neve das mãos. — Não é necessário. Posso sentir a presença das Peben a apenas duzentos metros daqui — ela explica. — E, para ser honesta, minha habilidade se limita a detectar a presença de deuses à distância, e nada mais — acrescenta, apontando na direção das frutas primordiais.
Refletindo sobre suas palavras, comento: — Você é uma deusa única, Atênura. Sua habilidade poderia ser de grande valia contra Máterum.
Ela suspira levemente, seus olhos distantes. — Talvez, mas não tenho intenção de me envolver nessa guerra.
Ao nos aproximarmos, avistamos a árvore Forla, imponente e majestosa em meio ao terreno.
— Estamos com sorte, a árvore está nutrida de frutinhas — exclama Atênura, seus olhos brilhando ao ver os ramos carregados de frutinhas. Ela estende a mão e colhe três Pebens.
Observando a abundância de frutos, sinto uma urgência. — Preciso coletar o máximo possível — penso, rapidamente colhendo o máximo das frutinhas. Totalizando: dez peben, duas folakes e dez yarótidas. Satisfeito com a colheita, digo: — Isso deve ser suficiente para não retornar aqui por um bom tempo. — Com cuidado, guardo todas as frutas em minha bolsa.
— Pronto, temos tudo que precisamos — diz Atênura, olhando ao redor. — Vamos esperar Birxyno e sair logo de Frosarla. Não quero descobrir como é congelar até a morte — comenta, e um ar gélido acompanha sua voz.
De alguma forma, uma frase ressoa em minha mente: — Espero que Birxyno não demore, senão morreremos congelados. — Olho para Atênura, confuso. — Morrer congelado?
Ela me lança um olhar surpreso. — O quê? Como ouviu... — Ela para de falar quando brisa fria começa a soprar, fazendo a neve ao redor se agitar. O vento começa a aumentar gradualmente, e em questão de segundos, transforma-se em um vendaval intenso que varre a área. — Isto não é natural... — ela sussurra, antes de ser violentamente arremessada pela força do vento.
Tento agarrá-la, mas a força do vendaval é implacável. Outro vendaval me pega desprevenido, fazendo-me sentir como frágil folha jogada ao sabor do vento.
A sensação é de desorientação total e o som do vento é ensurdecedor. Luto para manter os olhos abertos, tentando encontrar Atênura ou qualquer ponto de referência. Mas, assim como começou, o vendaval diminui repentinamente. A força que me arremessa pelo ar cede, e sou lançado ao chão coberto de neve.
Ao cair, minha cabeça bate com força contra o solo gelado, enviando onda aguda de dor pelo meu crânio. Uma tontura avassaladora me envolve, e a dor é tão intensa que sinto como se estivesse sendo puxado para a escuridão. Incapaz de resistir, tudo ao meu redor começa a escurecer.
ATO VI
— Acorda, Zilevo! — Voz suave e melodiosa ecoa, enquanto sinto mãos gentis pressionando meu abdômen.
Desperto lentamente, piscando para ajustar minha visão, deparando-me com uma deusa que se destaca diante de mim.
Seus olhos são atípicos, pequenos e de um magenta-escuro profundo. Seus cabelos, tão pálidos quanto a neve, caem suavemente sobre seus ombros. Seu rosto, embora mostre sinais de cansaço, é delicadamente esculpido com maxilar sutilmente pronunciado, testa compacta e nariz gracioso.
— Quem é você? — Questiono, ainda tentando compreender a situação.
Ela arqueia uma sobrancelha, seus lábios finos e azulados se curvando em meio sorriso, mas logo voltando a inexpressividade. — O que um filho de Máterum faz tão longe de casa, no coração de Frosarla?
Surpreso por sua afirmação, ergo-me rapidamente, sacudindo a neve do corpo. — Como me conhece?
Sem demonstrar emoção, ela dá de ombros. — Não achei que tinha dito em voz alta. — Ela começa a se afastar, o movimento de seu vestido longo e cristalino sendo a única indicação de sua passagem.
Antes que ela se distancie muito, ela lança olhar por cima do ombro. — Sou Nargoni, a deusa daquilo que alcunham de Zérum. Atênura está segura. Venha, meu mestre anseia por sua presença.
— Mestre? — Ecoo.
Sem alternativas, sigo a deusa enigmática, sentindo aperto no peito ao me lembrar da última vez que vi Atênura antes de sermos separados pelo vendaval.
Volto-me para Nargoni, buscando respostas. — Nargoni — começo, a preocupação evidente em minha voz —, onde está Atênura? Ela está bem?
Por um momento, Nargoni parece me ignorar, continuando seu caminho. Mas antes que volte a perguntar, ela me responde: — Atênura foi levada pelo vendaval, assim como você — ela responde calmamente.
— Ela está ferida? Você sabe onde ela está agora?
Nargoni levanta a mão, tentando me silenciar. — Eu a trouxe contigo e a levei para um local seguro. Ela está se recuperando e logo vocês estarão juntos novamente — conclui chegando ao seu destino.
Conduzindo-me a imponente cúpula, de interior vazio e surpreendentemente vasto, envolto em íntegro silêncio.
Ao cruzar o limiar da cúpula, sinto imediatamente uma sensação avassaladora de vastidão e reverência. O ar aqui dentro é diferente, morno e acolhedor, um alívio bem-vindo do frio cortante de Frosarla. Fragrância sutil, reminiscente de florestas antigas, acaricia minhas narinas.
Sob meus pés, o chão frio e liso de gelo responde com eco profundo, como se estivesse caminhando em uma câmara sagrada de tempos imemoriais. O som reverbera, ampliando a sensação de estar em local de significado ancestral.
Lanço um olhar ao redor, tentando discernir qualquer presença. — Onde está seu mestre? — questiono, a vastidão do lugar tornando evidente a ausência de qualquer ser.
Ela se ajoelha solenemente no centro da cúpula. — Hungu não se manifesta fisicamente; ele se faz ouvir, não ver.
Franzo a testa, tentando compreender. — Hungu? Você se refere ao nevoeiro Hungu? Ele é o seu mestre?
De repente, luminosidade suave e etérea ilumina o interior da cúpula, originando-se de algum lugar que não consigo identificar. O silêncio é profundo, perturbado apenas por zumbido sutil que parece permeia o espaço, vindo de todas as direções e, paradoxalmente, de nenhuma em particular.
Aura palpável e poderosa emana de Nargoni, puxando-me em sua direção. Quase sem pensar, sou levado a estender a mão e tocar a parede da cúpula, e sutil vibração pulsa sob a ponta dos meus dedos, dando a impressão de que a estrutura tem vida própria, pulsando em sintonia com minha respiração.
Embora o ambiente seja de serenidade, uma tensão reverbera no ar, como se este lugar sagrado estivesse esperando, ao longo de incontáveis eras, pela minha chegada.
— Denominar-me por mero nevoeiro é diminuir minha essência, filho de Máterum — A voz de Nargoni ecoa, profunda e soturna, mesmo sem que eu possa ver seu rosto.
O ambiente ao redor passa a carregar inquietação opressiva, causando calafrios em minha barriga. Embora sua fala seja serena, há uma gravidade que me faz sentir como se estivesse sendo envolvido por uma névoa densa e fria.
— Vejo as dúvidas que turvam teus pensamentos, as questões não verbalizadas que buscam esclarecimento. Estou disposta a desvendar alguns mistérios, mas saiba que nem todos os segredos serão revelados agora.
Engulo em seco e, com determinação, dou um passo adiante, enfrentando a entidade que ainda mantém suas costas voltadas para mim. — Quem é você? — indago, minha voz ressoando com clareza e convicção, percebendo presença diferente vindo da deusa.
Ela pausa por um momento e então, sem se virar, responde: — Sou aquele que precede o tempo, o sussurro silente que permeia os cantos esquecidos de Marum. Sou o nevoeiro inquietante de Primárium, aquele que pairou silenciosamente sobre ti e teus irmãos, observando cada movimento, desde os primeiros albores de vossa existência. O véu misterioso que temiam e não ousavam desafiar. A antiga presença, o segundo alento criativo de Máterum.[CG1]
A revelação me atinge como uma onda, mas me esforço para manter a compostura. — Segundo? — murmuro, a surpresa evidente em cada sílaba, enquanto tento assimilar a magnitude do que acabara de ouvir, ainda sem ver o rosto da deusa.
— Exatamente, Zilevo. Ou achou mesmo que você e teus irmãos foram as primeiras criações?
Ao ouvir isso, sinto nó se formar em minha garganta. Minha respiração se torna mais pesada, e meus olhos se estreitam, tentando decifrar a verdade nas palavras dela. Lembro-me vagamente de uma conversa distante, uma voz suave sussurrando em meu ouvido quando eu era apenas uma prole fraca.
— Você deveria saber, Máterum mesmo o disse uma vez quando mais jovem: “Por ser o primeiro, é comum nascer com imperfeições.”
A surpresa me atinge como um soco no estômago. A revelação de Nargoni apenas adiciona combustível ao fogo da minha raiva. — Por que Máterum nunca nos contou? — penso, minhas mãos se fechando em punhos involuntariamente, minha raiva por ele intensificada pela memória de Lésnar.
A imagem de Lésnar está constantemente gravada em minha mente, como uma cicatriz que nunca se cura. Seu sorriso, sua risada, a maneira como seus olhos brilhavam quando olhava para mim.
A sensação de traição e desprezo que sinto por Máterum ficando ainda mais profunda. Tentando manter a compostura, minha voz treme levemente ao perguntar: — Quantos deuses Máterum criou antes de mim e meus irmãos?
— Apenas três — ela responde, sua voz mantendo um tom monótono e inalterado, sem revelar qualquer emoção. — Eu fui um deles... Mas, realmente deseja se aprofundar nisso? Talvez esteja mais interessado em conhecer nossa origem. Há exatos três milênios, três séculos e um ano, Máterum deu vida ao primeiro deus. Juntos, eles me moldaram. E, em nossa união, trouxemos à existência nosso outro irmão. No entanto, o que realmente tem significado não é nossa criação, mas o que transcorreu setenta e oito anos após a vinda do meu último irmão ao mundo.
Ela faz uma pausa, levantando-se e se virando em minha direção. Seus olhos, embora inexpressivos, encontram os meus. A ausência de emoção em seu rosto torna difícil decifrar seus pensamentos ou sentimentos.
— Assim como você e seus irmãos, desafiei Máterum — ela continua, sua voz ainda inexpressiva, como se estivesse simplesmente recitando fatos. — Mas, ao contrário de vocês, estava sozinho. Meus irmãos não se juntaram a mim na batalha, e fui facilmente derrotado. Obrigado a me refugiar nos cantos mais obscuros de Marum, temendo ser capturado por Máterum e sofrer o mesmo destino de outras criações que ele julgou imperfeitas.
— Outras criações? — Minha mente se agita, imaginando a possibilidade de existirem outros deuses desconhecidos.
— Sim — Nargoni, ou Hungu, responde, sua voz soturna ampliando a gravidade das informações. — Máterum experimentou várias vezes, criando inúmeros deuses. No entanto, ele os descartou, sacrificando-os por conta de suas imperfeições, em busca do ser perfeito, um ideal que, em sua obsessão, nunca seria alcançado. Ele teria feito o mesmo com Hónker, se não fosse por circunstâncias especiais.
Ela pausa por um momento, exprimindo uma face desaprovadora.
— Após passar milênios escondido nas profundezas de Marum, decidi agir. Criei o que vocês conhecem como o nevoeiro Hungu, uma manifestação de meu poder, e o usei para desafiar Máterum em Primárium. Naquela época, ele já havia trazido você e seus irmãos à existência.
— Como não nos deparamos com sua presença em Primárium. Como isso é possível? — pergunto, tentando entender a complexidade de suas palavras.
Nargoni, com sua expressão inalterada, responde: — Meu embate com Máterum não se deu em Primárium, mas sim nas areias vermelhas de Arcríris. Foi uma batalha intensa, onde os céus se tingiram de cores tempestuosas e a terra tremeu sob a força de nossos poderes.
Ela faz outra pausa, e mesmo sem demonstrar emoção, posso sentir a gravidade de suas palavras.
— Máterum saiu vitorioso — continua ela — e, como punição por minha audácia, lançou sobre mim maldição que me impede de assumir minha verdadeira forma. Fui condenado a existir como uma névoa intangível, uma sombra do que eu era. Ele dividiu minha essência: parte permaneceu em Primárium, sob seu controle, enquanto a outra foi exilada aqui, no coração de Frosarla, um lugar onde nenhum deus conseguiria adentrar.
— Como é possível que eu esteja aqui, então? — indago, perambulando pela cúpula, enquanto meus olhos exploram sua vastidão, buscando compreender sua essência.
— Graças à habilidade única de Nargoni. Ela possui um domínio primoroso sobre o teletransporte. Com mero pensamento, ela pode te teletransportar para qualquer canto de Marum, desafiando as barreiras que Máterum estabeleceu.
Fico impressionado com a revelação e, observando a feição devota da deusa controlada por Hungu. — Isso é verdadeiramente fascinante — murmuro, reconhecendo a magnitude de tal habilidade.
— Quero que Nargoni leve você e Atênura de volta à morada de Xâmobe — declara Hungu, sua voz carregada de autoridade.
Antes que ele possa continuar, interrompo, a urgência em minha voz evidente: — Espere! Ainda tenho tantas perguntas. Como posso derrotar Máterum? Existe alguma arma ou ser que possa me ajudar? E seus irmãos, eles ainda estão vivos? Poderiam nos ajudar?
— Zilevo — adverte Hungu tenuamente —, já lhe revelei uma grande questão, embora tenha deixado passar. No próximo encontro todas as suas questões serão respondidas. Por agora, peço que se mantenha vivo.
Antes que eu possa protestar ou buscar mais respostas, sinto abrupta alteração no espaço-tempo ao meu redor. É como se, por breve instante, tudo ao meu redor se desligasse e, em seguida, se religasse em um novo local. Esse deslocamento, quase instantâneo, me deixa momentaneamente desorientado. Quando me dou conta, estou na familiaridade reconfortante da casa de Xâmobe, com Atênura aconchegada em meus braços.
Birxyno
Dêbole
Kovalã
Nyager
Nargoni
Hónker (versão mais animalesca)
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