Esperança
ATO I (Ózis)
— Por que demorou tanto? — Questiono, a impaciência evidente em minha voz após horas de espera.
Zulfiqar se aproxima lentamente, e eu fixo meu olhar nos seus olhos. Há um brilho neles, exalando migalhas de esperança.
— Encontrei Léteru — ele revela.
Surpreso, indago: — Léteru? O que ele faz em Gáudium?
— Ainda estou tentando descobrir. Mas ele trouxe consigo uma quantidade impressionante de cristais arcririsianos.
— E onde ele está agora?
— Está seguro, sob a proteção de Hucta. Vamos — ele insiste, dando início à caminhada.
Enquanto o sigo, pergunto: — Quem é Hucta?
Ele hesita por um momento, abaixando o olhar. — É uma deusa que conheci durante minha busca por Léteru — confessa, tocando levemente sua orelha, um gesto que conheço seu significado oculto.
Apesar do rancor que sinto por Zulfiqar, conheço-o como ninguém, às vezes, mais do que ele mesmo. E há um detalhe que nunca muda: quando Zulfiqar mexe brevemente as orelhas, é um sinal claro de sua preocupação.
Observo esse gesto sutil e, apesar da tensão entre nós, minha voz suaviza. — O que está te atormentando, Zulfiqar? — pergunto, tentando manter o passo ao lado dele.
Ele suspira profundamente, como se preparasse para mergulhar em águas profundas e escuras. — Durante onze longos dias, busquei por Zilevo e os outros sem descanso — sua voz trêmula revela tristeza que ele tenta esconder. — Não encontrei nem mesmo um rastro deles, Ózis.
— Também não encontrei rastros deles — penso, hesitando em falar, não querendo apagar a chama tênue de esperança em seus olhos. — Mas há uma grande chance de eles estarem em Dívum.
Ele para por um momento, seus olhos buscando os meus, a incerteza evidente. — E se não estiverem lá? O que faremos?
— Eu não sei — penso, incapaz de mostrar minha dúvida. — Continuaremos a guerra e traremos justiça à morte de nossos irmãos.
Zulfiqar franze o cenho, revelando sua frustração. — Como? Tentando criar deuses como fizemos no passado? Não seja ingênuo, Ózis! Anos se passaram e, mesmo com a ajuda de nossos irmãos, só conseguimos trazer Lesus e Bucu à existência. Você realmente acredita que, sozinhos, teremos essa capacidade?
— O que aconteceu contigo, Zulfiqar? — reflito, olhando profundamente para Zulfiqar, tentando decifrar a sombra de desesperança que nele se instala.
Minha mente vagueia, trazendo à tona uma lembrança distante. Época em que Zulfiqar irradiava otimismo e esperança, contrastando fortemente com o deus à minha frente.
Observo, intrigado, enquanto Zilevo e Zulfiqar trocam golpes em luta frenética de força e agilidade. — O que estão fazendo? — questiono, sem entender o motivo daquela luta intensa.
Zulfiqar, sem tirar os olhos de Zilevo, responde entre respirações ofegantes: — Treinando.
No momento seguinte, com velocidade surpreendente, Zulfiqar desfere gancho de direita, visando o rosto de Zilevo. O impacto é audível, a pele e os ossos se chocando. Zilevo cambaleia para trás, sangue escorrendo de seu nariz, mas se recuperando rapidamente, contra-atacando com soco no abdômen de Zulfiqar, fazendo-o dobrar-se em dor, e aproveitando para acertar uppercut devastador no queixo de Zulfiqar. O impacto é tão forte que Zulfiqar é lançado ao chão, a poeira levantando ao seu redor.
Zulfiqar, com os olhos nublados pela dor e filete de sangue escorrendo de sua sobrancelha, se levanta com dificuldade, apoiando-se em seus joelhos trêmulos. Ele limpa o sangue com o dorso da mão, e sorriso torto e desafiador se forma em seus lábios. — Treinar contigo nunca é entediante, irmão — ele comenta, a voz rouca, mas a determinação e o respeito mútuo brilhando em seus olhos.
Zilevo, com o rosto marcado e o corpo coberto de suor e poeira, apenas acena.
— Zilevo — chamo. — Lésnar quer te ver.
Zilevo pausa por um momento, a menção de Lésnar claramente chamando sua atenção. — Lésnar? — ele repete, um leve sorriso cruzando seu rosto.
— Isso mesmo. — Confirmo.
— Continuamos depois — diz ele, partindo sem mais delongas.
Observo Zulfiqar se alongando, os músculos tensos e definidos se movendo sob sua pele. — Por que insiste nesse treinamento, Zulfiqar? — pergunto, embora já suspeite da resposta.
Ele pausa, batendo a areia que gruda em seus braços e pernas. — A resposta não é clara? Se quisermos sair de Salacrum, precisamos estar preparados — diz ele.
Franzo a testa, cruzando os braços. — Estamos presos em Salacrum há mais de três décadas. Acredita mesmo que alguns socos e esquivas farão a diferença? — observando leve sorriso no rosto de Zulfiqar. — O que há de tão engraçado nisso?
— É curioso, Ózis — ele começa, estalando os dedos. — Sua desesperança é quase... inspiradora — expressa sarcasticamente. — Poderíamos estar aqui há três séculos, mas isso não me impedirá. Treinarei até que nos libertemos.
— Otimismo cego não nos levará a lugar algum — resmungo, irritado com sua maneira.
Zulfiqar sorri, um sorriso sutil e provocador. — E o que o pessimismo fará por nós? — Pergunta, inclinando a cabeça levemente.
— Pergunto o mesmo para sua esperança! — Retruco, indignado com sua tolice.
Zulfiqar por outro lado, alheio a essa raiva, responde: — O pessimismo nos prende, Ózis. A esperança, por outro lado, nos dá a coragem de enfrentar o desconhecido. Não se trata de ser ingenuamente otimista, Ózis. Trata-se de reconhecer que o futuro ainda não está determinado. E é nosso dever moldá-lo.
Embora não o mostre, sinto profunda admiração pela perseverança de Zulfiqar. Há orgulho silencioso em mim por tê-lo como irmão. No entanto, a sombra da traição sempre se faz presente quando penso nele dessa maneira.
— Talvez, tenha razão. Embora não te darei o prazer de dizer isso em voz alta — penso, em partes, ofuscado pela persistência e otimismo de Zulfiqar. — Onde vai agora? — Questiono, observando o se afastar.
Zulfiqar com olhar decidido, responde. — Vou encontrar Gálidus. Pois não será parado e reclamando da nossa situação que sairemos daqui — diz, virando-se e caminhando para longe com sua postura firme e esperançosa.
A imagem de Zulfiqar, caminhando com esperança, permanece vívida em minha mente. Porém sua inspiradora esperança que caminhou consigo, de alguma forma, parece tê-lo abandonado, deixando-o à deriva em sua melancólica jornada.
À medida que essa memória se desvanece, sou trazido de volta ao presente, a realidade diante de mim é dolorosamente diferente.
Zulfiqar para abruptamente. Sua postura, antes tão firme e confiante, agora é curva, como se esmagada pelo peso insuportável de incontáveis tristezas. A mudança é tão drástica que mal o reconheço.
— Sabe, Ózis — começa Zulfiqar, sua voz mais suave e triste, a cabeça baixa —, nunca fui verdadeiramente esperançoso.
Sua afirmação gera silêncio opressivo entre nós.
— Apenas fingia ser otimista — Zulfiqar continua, a voz quase um sussurro levado pelo vento. — Sempre me perguntei: se eu não carregasse essa esperança, quem o faria?
Sua voz se quebra ligeiramente, e ele dá passo hesitante à frente. — A esperança, em sua essência, pode ser o derradeiro mal. Ela prolonga nosso tormento, nos fazendo ansiar por um amanhã melhor enquanto nos cega para as correntes que nos prendem hoje. Eu usava essa máscara de otimismo, não por acreditar verdadeiramente nela, mas porque temia o vazio que viria sem ela.
Zulfiqar para novamente, e imagino as emoções que cruzam seu rosto, mesmo sem vê-lo. — E agora, me pergunto: será que essa esperança, que tanto cultivei, não foi o que realmente nos manteve acorrentados por tanto tempo?
— Não é verdade! Não acredito em você! Era e, ainda é, o deus mais esperançoso que conheço! Se não fosse por sua perseverança em sair de Salacrum, talvez ainda estivéssemos presos lá! — Expresso indignado com suas palavras.
Acelero o passo, alcançando-o e parando ao seu lado. Mesmo sem ele se virar, sinto a intensidade de seu olhar sobre mim. Quando finalmente nossos olhos se encontram, vejo profunda tristeza neles. Essa tristeza, vinda de Zulfiqar, me indigna.
— Eu sei o que aconteceu contigo, Zulfiqar! — Exclamo, minha voz carregada de frustração e desapontamento. — Tornou-se um fraco que só sabe se lamentar, que se perdeu em sua própria tristeza! — Paro, observando a figura de Zulfiqar se distanciar, suas costas revelando uma derrota silenciosa.
Ele hesita por um momento, sua voz quase inaudível contra o vento. — Talvez você esteja certo...
E essa sua resposta me frusta ainda mais.
— QUE MALDITA POSTURA É ESSA, ZULFIQAR? — Interrompo, a raiva fervendo em minhas palavras. Mesmo de costas, posso ver a tensão em seus ombros, a maneira como eles estão abaixados como uma profunda depressão. — Onde está o deus destemido e resiliente que eu tinha orgulho de chamar de irmão?
Acelero o passo, diminuindo a distância entre nós novamente, minha respiração pesada ecoando minha frustração. — Não é hora de se afundar em autopiedade! Nossos irmãos estão vivos, em algum lugar, lutando para nos encontrar. Não podemos, não devemos decepcioná-los com essa sua miserável desesperança!
De repente, Zulfiqar interrompe seus passos, como se minhas palavras tivessem atingido um ponto sensível. No entanto, não diminuo meu ritmo. Passo por ele com determinação, mantendo minha postura altiva e a cabeça erguida, recusando-me a dar-lhe o benefício de meu olhar. — Se você escolheu abandonar a esperança, então permaneça aí, imerso nessa nefasta solidão e morra afogado em lamentos! — digo, minha voz carregada de desdém. — Talvez, ao se afogar em seus próprios lamentos, você finalmente aprenda a nadar contra a cruel correnteza da vida.
A distância entre nós aumenta, assim como o silêncio, apenas o som de meus passos resolutos ecoando. Deixando Zulfiqar sozinho com seus pensamentos. Estou determinado a encontrar Hucta e Léteru, a não me deixar ser arrastado pela desesperança de Zulfiqar.
Contudo, algo me impede, e pauso minha caminhada uma última vez, e declaro, sem me virar: — E, apesar de tudo, mesmo com essa sua fraqueza momentânea, eu ainda acredito em você, Zulfiqar. — Admito. — Mas não vou carregar essa esperança sozinho, porque sei que um dia você vai lembrar quem realmente é. Então, não demore demais.
Com essas últimas palavras, continuo em frente.
E, quase perdido no vento, ouço o sussurro suave de Zulfiqar. — Obrigado, Ózis.
Essas palavras, inesperadas e carregadas de emoção, fazem com que pequenas lágrimas brotem em meus olhos. No entanto, mantenho meu ritmo, continuando a me afastar, sem permitir que qualquer hesitação me detenha.
ATO II
Ao entrar no abrigo de Hucta, sou imediatamente envolvido por sensação agradável de abrigo. O ar, fresco e úmido, acaricia minha pele, trazendo consigo aroma terroso de pedra molhada e musgo. — Há tempos que não sou acolhido por um local longe do Sol e Gáilus de Gáudium. — penso. Admirando as paredes, meticulosamente esculpidas nas rochas do lugar. Elas irradiam brilho azulado e suave que, ao refletir nas poças d’água espalhadas pelo chão, criam padrões dançantes que me lembram ondas sob a luz da Gáilus. banhando o ambiente com luminosidade etérea.
— Onde está Léteru? — pergunto ansiosamente.
— Siga-me — responde Hucta, conduzindo-nos por um corredor até um quarto. Nele, Léteru repousa, sua figura serena coberta por um pano alvo.
Com olhar preocupado, questiono: — O que aconteceu com ele?
Hucta, com resposta breve e indiferente, diz: — Não sei. Cruzei com ele em Gáudium, e ele mal conseguia murmurar algumas palavras antes de desabar em meus braços.
— Ele deve ter passado dias nos procurando — penso, lançando olhar grato a Hucta. — Agradeço por ter cuidado dele...
Hucta me corta, deixando o cômodo sem mais explicações. De longe, sua voz soa, levemente sarcástica: — Não precisa agradecer. Só pegarei alguns dos cristais arcririsianos como pagamento pelo meu esforço.
Inquieto, digo a Zulfiqar: — Fique com Léteru. Vou garantir que ela não leve todas as armaduras e armas dele.
Zulfiqar assente silenciosamente. Enquanto me encaminho para a saída, noto seu olhar pensativo, ainda marcado pelo nosso último empasse.
O som sutil de gotas de água pingando preenche meus ouvidos, criando melodia hipnótica, enquanto caminho pela caverna de Hucta, cujo design rústico me envolve.
O musgo sob meus pés amortece cada passo, e seu aroma fresco e terroso transporta minha mente para os bosques de Zaranler.
Ao erguer os olhos, fico maravilhado com o teto: uma abóbada rochosa pontilhada de pequenos orifícios, por onde feixes de luz se infiltram, criando atmosfera que me remete ao céu estrelado.
Ao avançar mais para o interior, noto pequenas estalactites pendendo do teto, algumas das quais gotejam lentamente, alimentando pequenas bacias de pedra esculpidas no chão. O som da água, combinado com o murmúrio suave do vento que se infiltra pelas frestas, traz sensação de tranquilidade e introspecção.
A sensação é interrompida pela voz desinteressada de Hucta, que ressoa pela caverna. — Veio verificar se estou saqueando seus pertences? — Ela questiona, sem eufemismo.
Ao me aproximar, vejo Hucta agachada, examinando atentamente a bolsa repleta de cristais arcririsianos.
— Você tem um jeito peculiar — comento, adotando sua forma direta de falar.
Ela se ergue, sobrancelhas arqueadas em surpresa. — É assim que agradecem por um favor? Com observações atrevidas?
Com firmeza, retruco: — Não estava falando de sua aparência. — E, de fato, não poderia; a beleza inegável de Hucta é evidente em cada traço de sua fisionomia divina.
Ao observar Hucta de perto, sinto o universo inteiro convergindo em sua figura. Sua pele alva, quase translúcida, brilha sutilmente à luz da caverna, é como o véu etéreo que separa o conhecido do desconhecido, o finito do infinito. — Ela parece a personificação da luz estelar — penso, enquanto meu olhar percorre os contornos suaves de seu rosto.
Seu queixo, delicadamente arqueado, exala dignidade, e me pego pensando: — Há algo escondido sob essa superfície serena.
Mas são seus olhos que me hipnotizam: um azul tão puro e claro, como se guardassem o próprio céu. — Meus olhos parecem escuros perto do seu. — A intensidade da linha preta ao redor deles só intensifica seu brilho.
Suas orelhas, miúdas e curvas, mal são visíveis sob os longos e lisos cabelos castanhos. E seus lábios... carnudos e formosos, parecem esconder um sentimento.
Ao descer o olhar, sou imediatamente cativado pela sinuosidade do corpo de Hucta. Seu tronco esbelto, reminiscente das curvas suaves de dunas modeladas pelo vento, segue uma silhueta estilo ampulheta, que desperta em mim um desejo carnal.
Seus seios, pequenos e delicados, parecem convidar o toque, como pétalas macias de uma flor rara. A luz da caverna realça cada contorno de seu corpo, e sinto um calor crescente, uma atração magnética que me puxa para mais perto dela.
Cada curva, cada sombra, cada detalhe de sua forma me faz pensar em carícias e sussurros. A maneira como sua pele parece macia e convidativa, a promessa de calor e intimidade que seu corpo insinua, tudo em Hucta me atrai de uma maneira que não consigo, nem quero, resistir.
Mas sou puxado de volta à realidade pelo olhar expectante de Hucta, que aguarda minha resposta.
— Me refiro a sua personalidade — digo, tentando disfarçar o rubor que sinto subindo. — Você age como se não se importasse conosco, mas ainda assim cuidou de Léteru.
— Foi por...
Hucta começa, sua voz quase um sussurro, mas antes que possa terminar, interrompo-a. Meus passos resolutos ecoam na caverna enquanto me aproximo dela, a firmeza em minha voz contrastando com a suavidade da dela.
— Esperava mais franqueza de uma deusa como você. — Seus olhos se estreitam levemente, surpresa e talvez um pouco irritada por ser cortada.
Sem lhe dar espaço para responder, inclino-me em sua direção. — Pode dizer que é por causa desta bolsa — digo, erguendo a bolsa de cristais ao seu lado com um movimento fluido, observando a máscara de indiferença que Hucta tenta manter. Mas, sob a superfície, vejo seus músculos tensos, uma reação sutil à minha ousadia. — Mas sinto que esses cristais, essas armas, essas armaduras, não possuem verdadeiro valor para você. — continuo, minha voz suave, mas carregada de certeza.
Hucta tenta manter sua postura desinteressada, mas vejo uma centelha de verdade em seus olhos, uma que ela tenta esconder. Ela inspira profundamente, como se estivesse se preparando para um contra-ataque verbal.
— Se fosse apenas indiferença, teria oferecido abrigo a Léteru e nada mais. Mas você cuidou dele... — digo, observando cada nuance de sua reação.
Hucta me interrompe, com pitada de sarcasmo tingindo sua voz, seus olhos faiscando com desafio. — Você pensa que sabe tudo, mas...
— E o pano branco que cobria Léteru? — Retruco rapidamente, silenciando-a.
Observo a mudança sutil em sua expressão, um vislumbre de vulnerabilidade. Seus olhos desviam dos meus por breve momento, e sua postura, antes tão confiante, agora parece um pouco mais retraída. — Você... — começo, mas sou abruptamente interrompido pelo chamado urgente de Zulfiqar, sua voz ecoando pela caverna.
Com passos rápidos, sigo Hucta de volta ao quarto, a preocupação pesando em meu peito. — O que houve? — pergunto.
Zulfiqar, com os olhos fixos em Léteru, responde: — Parece que ele está acordando!
— Hódino... — Léteru murmura, ainda entre o sonho e a realidade. Sua voz contém amargura profunda, e ele se agita na cama, como se estivesse lutando com um pesadelo.
Franzo a testa, com o nome mencionado. — Já ouvi esse nome antes — penso, revirando minhas memórias. Mas a clareza me escapa. — Talvez esteja me confundindo — penso, não conseguindo lembrar de onde.
Léteru pisca, voltando lentamente à consciência. — Me perdoa, por favor... — ele sussurra, parecendo desorientado.
— Por favor, me perdoe... — murmura Léteru acordando desorientado.
— Está tudo bem com você? — pergunto, preocupado.
Léteru esfrega os olhos, parecendo confuso. — Ózis? — Ele se senta, afastando o pano branco que cobria seu corpo.
— Sim, sou eu — respondo.
Zulfiqar, com olhar inquisitivo, interrompe: — Você estava desacordado. Algum deus de Máterum te atacou?
Antes que Léteru possa responder, insisto: — Há quanto tempo está tentando nos encontrar?
Hucta, incomodada com as perguntas, intervém: — Calma! Ele mal acordou. Deem a ele um tempo antes de fazer tantas perguntas...
— Não preciso de descanso — interrompe Léteru, levantando-se. — Zulfiqar, você está certo. Fui atacado por dois deuses de Máterum. Mas eles não são mais uma ameaça. — Ele caminha até a porta do abrigo e a abre, deixando entrar a luz. — Vim a Gáudium porque quero lutar ao lado de vocês nesta guerra.
— Isso é uma ótima notícia! — exclamo, seguindo-o para fora.
Léteru olha para o céu de Gáudium, seus olhos refletindo determinação e melancolia. — Embora, possa ser que esta seja uma batalha fadada à derrota.
— Mesmo que seja — respondo, olhando firmemente para ele —, lutarei até meu último suspiro. — Percebendo leve sorriso cruzar o rosto de Léteru.
— O que te motivou a se juntar a nós? — Zulfiqar pergunta, curioso.
Léteru pausa por um momento, refletindo. — O ataque dos deuses de Máterum desempenhou um papel, sim. Mas o verdadeiro motivo vai além disso. Faz tanto tempo que não cruzo com outros deuses... Eu havia esquecido o peso da solidão. — Ele se vira para Hucta, com gratidão em seus olhos. — Agradeço por ter me acolhido.
— Obri... — Hucta começa a responder, mas é interrompida.
— Consideraria se juntar a nós nesta batalha? — Léteru pergunta, pegando-a de surpresa com a proposta inesperada.
— Você está brincando? — Hucta responde, claramente surpresa. — Mal nos conhecemos. Por que eu arriscaria minha vida por uma guerra que não tem nada a ver comigo?
Ela se vira e entra no abrigo, retornando com uma bolsa repleta de armas e armaduras feitas de cristais arcririsianos.
— Eu te ajudei por compaixão, talvez até por um impulso momentâneo. Mas não confunda minha ação com bondade ou insensatez. Não sou tola a ponto de entrar em uma guerra sem motivo. Ainda mais por deuses grossos que vivem me interrompendo!
Ela deixa a bolsa cair com baque surdo.
— Pegue suas coisas e vá embora com seus amigos. Vocês já estão causando barulho demais. Ao contrário de você, valorizo minha paz e silêncio.
Com isso, ela fecha a porta com firmeza.
— O que foi isso? — murmuro, ainda tentando processar a reação de Hucta.
Zulfiqar, distraído, começa a vasculhar a bolsa, seus olhos brilhando ao ver as armaduras e armas. — Isso pode ser muito útil! — ele comenta, claramente impressionado.
Mas então, ele para, seu entusiasmo dando lugar a expressão sombria. — Passamos semanas em Gáudium procurando nossos irmãos e não encontramos sinal algum deles. Com tantas armas e...
— Diga de uma vez! — interrompo, a frustração evidente em minha voz. — Diga que você acha inútil procurá-los, que eles estão mortos!
Ele hesita, buscando as palavras certas. — Eu não quis...
— Estou farto de...
— CHEGA, ÓZIS! — ele explode, silenciando-me com sua exasperação.
Zulfiqar pausa, seus olhos se enchendo de um brilho, o qual pensava ter sido extinguido. — Você me fez ver o quão fraco eu estava sendo, cedendo ao desespero. Eu sou seu irmão, Ózis. Sei que mandou não te chamar mais assim, mas você é meu irmão e assim sempre será. Lamento profundamente por tê-lo traído durante nossa primeira rebelião. Eu deveria ter estado ao seu lado, mas em vez disso, o apunhalei pelas costas. Eu falhei com você, meu irmão — sua voz vacila nas últimas palavras, carregada de emoção e arrependimento.
Ele fecha os olhos por um momento, tentando recuperar o controle. Quando os abre novamente, o brilho está mais nítido. — Mas prometo que não vou te decepcionar novamente. Léteru estava certo em Arcríris. Nossos irmãos estão em Dívum, e estão vivos! Então vamos até lá nos reunir com eles.
Observo-o. A dor de sua confissão, o brilho de esperança de volta em seus olhos, e a promessa de um reencontro. Meu coração se aperta com sentimento de alívio e esperança, mas tento manter meu rosto neutro, escondendo a profundidade dos meus sentimentos.
— E qual é o plano? — Léteru questiona, com expressão pensativa. — Vamos simplesmente ir a Dívum e vasculhar o vasto planeta à procura deles? — Ele mal dá tempo para uma resposta, e continua rapidamente. — Precisamos pensar estrategicamente antes de agir impulsivamente.
Zulfiqar assente, olhando ao redor, como se avaliasse o ambiente. — Antes de mais nada, precisamos de um lugar seguro para nos refugiarmos e nos prepararmos para a viagem a Dívum.
Subitamente, a porta se abre com rangido, revelando Hucta com expressão indecifrável. — Não tenho intenção de me envolver nessa guerra — ela começa, pausando por um momento para avaliar nossas reações. — Mas posso oferecer abrigo por alguns dias.
Agradeço, tentando esconder a esperança em minha voz: — Sua ajuda é inestimável para nós.
Hucta levanta uma sobrancelha, um sorriso irônico brincando em seus lábios. — Tenho certeza de que é. Mas espero uma retribuição por este favor no futuro. — Com isso, ela se vira e entra no abrigo, deixando a porta aberta como convite silencioso.
Antes de seguirmos Hucta para dentro do abrigo, Zulfiqar, com expressão de curiosidade, questiona Léteru enquanto vasculha sua bolsa: — Quem foram os deuses que te atacaram em Arcríris?
Léteru hesita por um momento. — Fui confrontado por uma deusa chamada Dynes e por uma entidade peculiar, que não acredito ser um deus, de nome Térax.
Zulfiqar, ao encontrar elmo negro com espinhos pontiagudos na bolsa, comenta: — De fato, não era. — Ele levanta o elmo, examinando-o sob a luz. — Ele é um dos planetas que Máterum infundiu com vida. Chamamo-os de planetas-vivos.
Enquanto Zulfiqar admira a espada de arcríris escuro que encontrou junto ao elmo, acrescento: — Assim como Toihid e Moam.
Zulfiqar olha para Léteru, buscando sua aprovação para ficar com os itens, que assente.
Pensativo, comento: — Conhecemos Dynes há muito tempo. Sempre foi claro que ela escolheria o lado de Máterum na guerra.
Zulfiqar assente, acrescentando: — E o mesmo vale para sua irmã, Muntera.
A menção de Muntera, desencadeando ideia em minha mente. — Espere um momento! — penso. — Muntera é, sem dúvida, a deusa mais leal a Máterum. Mas se ela acreditar que sua irmã está desaparecida ou em perigo, ela pode se desviar de Máterum para procurá-la.
Interrompendo minha reflexão com pergunta para Léteru.
— Léteru, Dynes está morta?
Léteru hesita. — Não... Mas pode estar. Quando a vi pela última vez, ela estava mortalmente ferida. É improvável que ela tenha sobrevivido.
— Isso pode ser a chave para nossa vantagem — digo. — Se encontrarmos Muntera e insinuarmos que sabemos do paradeiro de Dynes, podemos manipulá-la.
Zulfiqar franze a testa, cético. — Muntera é devota a Máterum. Você acha que ela realmente nos ajudaria?
— Ela é leal a Máterum, sim. Mas há alguém que ela ama mais que Máterum. E esse alguém é sua irmã Dynes! Se fizermos Muntera acreditar que temos informações sobre Dynes, ela pode se tornar uma aliada, mesmo que temporária — argumento.
Léteru acena, pensativo. — Posso declarar que só eu sei a localização de Dynes.
Zulfiqar pondera. — Precisamos ser cautelosos. Muntera é não só leal, mas também uma estrategista habilidosa e uma guerreira formidável. Se vamos jogar esse jogo, precisamos estar vários passos à frente dela. Mas primeiro, devemos nos reunir com nossos irmãos. Com eles ao nosso lado, estaremos em uma posição mais forte.
Aceno em concordância. Satisfeito ao ver de volta o vislumbre de esperança brilhando nos olhos de Zulfiqar.
De repente, voz familiar ressoa, fazendo todos nós nos virarmos em surpresa. — Acho que isso não será um grande problema. — A presença inesperada daquela figura reacende a chama da esperança nos olhos dos deuses presentes.
— URUM! — Eu e Zulfiqar exclamamos em uníssono, reconhecendo a voz e a figura que agora se revela diante de nós.
ATO III
O ambiente é uma pintura viva da natureza em sua forma mais pura e intocada. O gramado, um manto verdíssimo que se estende como um tecido suave sobre a terra, é salpicado por flores de inúmeras cores e formas.
Cada flor parece ter sido pintada com pinceladas cuidadosas de um artista divino, desabrochando sob o calor suave do Sol.
Ao longe, uma floresta densa e mista se estende, com árvores de diversas espécies que se erguem orgulhosamente em direção ao céu, suas folhas formando um dossel que brinca com os raios solares, criando jogo de luz e sombra sobre o solo florestal. O contraste entre a clareira aberta e a floresta fechada cria borda natural, delineando santuário promissor.
Com os olhos varrendo o horizonte verdejante que se estende à nossa frente, proclamo: — Este lugar é perfeito para nossa fortaleza.
Zulfiqar, com franzir de sobrancelhas cético, cruza os braços e balança a cabeça, claramente desaprovando a ideia. — Ainda não acredito que vai obedecer os planos de Theos — retruca ele, sua voz carregada de desconfiança. Sua desaprovação é visível, e vejo o cenho de Urum se aprofundar em resposta.
Urum, que até então observava a interação entre nós, decide intervir. — Também não entendo — diz ele. — Se ficarmos separados dos outros, ficaremos mais vulneráveis. Não importa a fortaleza que construiremos, ela não será capaz de deter Máterum.
Permaneço em silêncio, a exaustão de dias repetindo a mesma discussão pesa sobre meus ombros. A brisa carrega as palavras não ditas entre nós, enquanto os outros parecem segurar a respiração para não entender.
— Lesus, Urum e Léteru, procurem por materiais que possam nos ser úteis! — diz Zulfiqar, seu tom autoritário rasgando o silêncio. Ele se ajoelha suavemente sobre o gramado, colocando seu elmo de espinhos na grama. — Preciso de um momento a sós com Ózis.
Sem esperar resposta, meus olhos seguem Zulfiqar enquanto ele crava sua espada ao lado do elmo, a lâmina enterrando-se na terra. — Não adianta, Zulfiqar! Minha decisão permanece a mesma — digo, trocando olhares com ele.
— Por que se recusa a ouvir o segredo de Theos, Ózis? — questiona Zulfiqar, com confusão em sua voz, mas também traço de desespero.
Segredo contado por Urum a Zulfiqar, mas o qual não faço questão de escutar.
— Se o seu segredo tem o poder de semear raiva em meu coração contra meu irmão, como a traição que me fez sentir por você; prefiro permanecer na ignorância. Estou cansado de cultivar o ódio contra aqueles que amo — digo, as palavras saem carregadas de um cansaço profundo.
Zulfiqar não desiste. — Theos guarda outros segredos, além do que Urum me revelou. Segredos que...
É a gota d’água. Meu grito de exaustão interrompe sua fala, ecoando pela clareira. — BASTA! Não me importa o que Theos fez. Até poucos dias, pensávamos que todos nossos irmãos estavam mortos. Não quero saber do segredo de Theos. Não deixe que essa sombra caia sobre a alegria de ter descoberto que meu irmão está vivo.
Zulfiqar sacode a cabeça em desaprovação, sua expressão é de desalento. — Tolice, Ózis — murmura, quase para si mesmo, como se lamentasse uma batalha perdida.
Enquanto a tensão entre nós permanece, Urum retorna da floresta acompanhado por Lesus e Léteru, carregando tronco robusto entre eles. A madeira é depositada no chão e as folhas ao redor tremem com o impacto.
— Temos armas, armaduras e deuses o suficiente. O que mais falta para avançarmos contra Malbork? — Lesus intervém, a urgência em sua voz desvia momentaneamente a nossa atenção do desacordo fervilhante.
Léteru, com expressão ponderada, acrescenta — É por isso que o plano de Theos se apresenta como o melhor caminho — articula ele, sua voz carrega certa firmeza. — Estamos enfrentando o ser mais poderoso de todos. Um confronto direto seria suicídio, precisamos ser estratégicos. Atacá-lo quando menos esperar, ou contra-atacar de uma maneira que o deixe sem defesas.
— E porquê construir uma fortaleza? — Lesus questiona.
— Uma fortaleza seria um baluarte valioso, servindo tanto como uma defesa robusta quanto um meio de distração — Léteru responde.
Em concordância, assinto com a cabeça e continuo. — Não deveríamos atacar precipitadamente, mas esperar por uma nova investida dele.
Lesus balança a cabeça em conformidade. — Talvez, tenha razão. Ao menos assim estaremos mais resguardados — sua concordância traz uma lufada de alívio, ainda que momentânea, ao clima tenso que nos envolve.
No entanto, a indignação de Zulfiqar surge como tempestade, desafiando a calmaria breve. — Vocês não estão raciocinando com clareza. Malbork tem sido edificada por mais de um século e, ainda assim, não foi concluída. Como imaginam que vão erguer esta fortaleza em tão pouco tempo e com recursos tão escassos?
Urum se alinha ao lado de Zulfiqar e argumenta: — Zulfiqar tem um ponto. A construção dessa fortaleza vai demandar tempo e esforços consideráveis.
Zulfiqar completa com tom sério. — Tempo e esforços que talvez não tenhamos.
Léteru, com expressão pensativa, interroga, — Então, o que faremos?
Zulfiqar, com seriedade em sua voz, declara. — Devemos nos reunir com nossos irmãos em Dívum.
Com o tom elevado em minha voz, exclamo — Já disse que minha decisão está tomada, Zulfiqar! — minha voz reverbera pelo ambiente.
Zulfiqar rebate, o desafio em seus olhos é tão afiado quanto a lâmina de sua espada. — Você pode estar decidido, mas nós não compartilhamos da sua decisão. E você não é o líder aqui, Ózis!
Com a amargura tingindo cada sílaba, retruco — E você seria?
— Se acalmem! — intercede Léteru, sua voz é um apelo à razão. — As desavenças não nos trarão a vitória e...
Urum, com gesto assertivo, interrompe Léteru, sugerindo que não se meta na fervente discussão.
— Estou farto de sua obstinação cega — dispara Zulfiqar, a voz trêmula com emoções contidas. — Estou ciente do erro colossal que cometi com a minha traição. Sei que o perdão é um campo que jamais florescerá entre nós. Mas décadas se arrastaram desde aquele fatídico erro, Ózis! Desisto de esperar seu perdão!
A paciência, um fio tênue que me segurava, se rompe. Avanço em direção a Zulfiqar, o rosto marcado pela ira que borbulha em meu peito. — Faz bem em desistir, pois o perdão é um presente que você jamais receberá de mim — vocifero, minhas mãos encontram a gola de cipó de sua túnica.
— Vá em frente, me bata se é isso que vai te trazer alguma paz! — exclama Zulfiqar, a coragem em seus olhos não dá espaço para o medo. — Mas isso não mudará a verdade de que você está errado.
A frustração acumulada transborda e, com movimento brusco, empurro Zulfiqar para trás, liberando-o de meu aperto. O cansaço das incessantes disputas me consome, mas não o suficiente para extinguir o fogo da discordância que queima entre nós, ameaçando consumir o pouco de coesão que ainda resta em nosso fragmentado grupo.
Zulfiqar, no entanto, não se detém. — Você precisa conhecer a verdade...
Mas não permito que continue. — Você quer descobrir a verdade, Zulfiqar?! — inquiro, agarrando-o novamente pela gola com uma fúria que treme em cada fibra do meu ser. — Sempre que escuto sua voz, eu sinto nojo. Me dá ânsia. — Aperto a gola de cipó com mais força, as palavras fervendo de minha garganta. — Em Salacrum, cada amanhecer eu ansiava pela sua morte. A lembrança de nossos momentos juntos... me dá ojeriza. É inacreditável pensar que um dia eu te amei.
As palavras seguintes parecem brotar do abismo de amargura e ressentimento que se alojou em meu coração. Ergo a mão, fechando-a em um punho que palpita com a ânsia de descarregar anos de traição e desapontamento acumulados. O punho está pronto para desferir a ira reprimida, mas algo mais profundo, uma dor crua e não cicatrizada, segura o ímpeto vingativo, revelando emoções conflitantes que engolem o resquício de controle que ainda me resta.
— Sofri muito com a decisão do nosso pai ao nos aprisionar, mas nada se compara ao rancor que sua traição incutiu em meu peito — desabafo, a voz embargada pelas emoções que se rompem.
Sangue escorre de minha mão, o rubro das gotas marcando o solo entre nós como testemunha muda de nossa desintegração. — Naquele dia, todo meu amor se tornou ódio.
Urum age rapidamente, segurando Lesus que estava prestes a intervir. Seus olhos, contudo, estão fixos na minha mão trêmula que ainda agarra a gola de Zulfiqar, uma imagem tremulante da batalha interna que se desenrola em mim.
— Sabe o que é ainda mais torturante? Sabe qual é a verdade que me atormenta noite após noite? — questiono, a voz quebrada revelando a ferida ainda exposta.
— O que? — Zulfiqar questiona, não se abalando com minhas palavras, ou ao menos, não demonstrando.
Lentamente, solto a gola de Zulfiqar, e ao baixar a mão ensanguentada, nossos olhares se encontram, o tormento refletido na profundidade de nossas almas torturadas. — Eu ainda te amo... e odeio cada partícula de meu ser por isso.
A expressão séria de Zulfiqar se quebrando com minha confissão.
— Odeio... — interrompido por Zulfiqar que me envolve em um abraço apertado, um gesto desesperado para curar as cicatrizes que nos marcaram por eras intermináveis. — Odeio te amar — concluo com lágrimas.
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