Chamas fraternas - Parte II
ATO III
— Kinkara está vindo. Precisamos nos preparar agora! — Vâgis diz com urgência, abrindo rapidamente uma porta escondida na cabana.
— Por que ele está atrás de você? — Pergunto, enquanto sigo Vâgis e Shapes escada abaixo.
Vâgis, com olhar intenso, acende uma tocha, iluminando o caminho. — Lembra que me perguntou o motivo de eu ter ficado dezoito anos isolado em Miramer? Kinkara é o motivo.
Chegamos a outra porta no fim dos degraus. — E por que ele está te perseguindo? — Insisto.
Sem hesitar, ele abre a porta, revelando uma sala escura, com correntes nas paredes e no chão. À direita, uma espada de tom sanguíneo brilha, ao lado de uma haste verde-escuro repleta de símbolos. — Não temos tempo para isso. Ele está quase aqui! — Shapes interrompe, pegando sua lança, Mahorfi, com rapidez.
— Mas nós o despistamos na floresta, não? — Questiono, tentando entender a gravidade da situação.
Vâgis, empunhando a espada flamejante, responde em tom grave e olhos sombrios: — Kinkara pode nos rastrear pelo cheiro, mesmo a quilômetros de distância. A floresta apenas as deu um breve respiro.
A luz da espada reflete nos olhos cor de mel de Vâgis, fazendo-os brilhar intensamente. Seu corpo esguio, embora musculoso, parece preparado para a batalha. As veias em seus antebraços e peitoral ainda mais proeminentes devido à adrenalina.
Shapes, preparada para o confronto, declara. — Você deve ficar aqui, Wara. Vâgis e eu lidaremos com Kinkara.
— Não! Eu quero ajudar. Eu tenho uma arma! — Protesto, com olhos suplicantes, mostrando adaga, dada por Báron, por baixo de meu manto.
Shapes começa a responder, mas é interrompida pelo som estridente da porta da cabana sendo arrancada. — Ele está aqui! — Ela sussurra com urgência, empurrando-me para a sala.
Antes que eu possa protestar, eles fecham a porta atrás de mim e sobem as escadas, preparados para enfrentar a ameaça iminente.
— Não ficarei presa novamente — murmuro, determinada. Vasculhando a sala, buscando algo pesado que possa me ajudar a quebrar a maçaneta.
A luz da tocha revela paredes de pedra úmida, com musgo crescendo nas fendas. As correntes, algumas enferrujadas, pendem das paredes e do teto, fazendo um som metálico suave quando se movem. No canto, vejo uma prateleira de madeira desgastada, com frascos de vidro contendo líquidos de cores variadas e alguns pergaminhos enrolados.
Ao lado da prateleira, um baú antigo de madeira, com detalhes em arcríris, chama minha atenção. Corro até ele, esperando encontrar algo útil. Ao abri-lo, descubro uma variedade de ferramentas: martelos, panos, pinças e outros instrumentos que não reconheço. Pego um martelo pesado, sentindo seu peso reconfortante em minha mão.
Quando prestes a desferir golpe na maçaneta, explosão ensurdecedora irrompe, fazendo a sala tremer violentamente, lançando-me para trás. A porta, agora destroçada, cai pesadamente sobre mim, aprisionando-me. A fumaça espessa e acre da explosão invade meus pulmões, fazendo-me tossir e arder os olhos.
Com esforço, empurro a porta, sentindo cada fibra do meu corpo gritar de dor. Finalmente livre, me arrasto até as escadas, usando a parede como apoio.
Enquanto subo, a voz de Vâgis corta o ar denso — Desista... — abafada pela fumaça e pelo crepitar das chamas. Ele soa distante, mas seu tom carrega uma urgência que acelera ainda mais meu coração.
A fumaça espessa envolve tudo, tornando quase impossível discernir qualquer coisa. — Onde eles estão? — A pergunta ecoa em minha mente enquanto tento me orientar.
Lutando contra a asfixia, envolvo-me rapidamente com meu manto, usando-o como barreira improvisada contra o calor abrasador da cabana em chamas. Ainda assim, sinto o calor lamber levemente minha pele por baixo do tecido. — Cof! Cof! — Tento respirar, mas o ar é puro veneno. Meus olhos lacrimejam e ardem, e a sensação de desorientação me domina. — Preciso sair daqui.
Com a proteção parcial do meu manto, consigo encontrar uma saída e tropeço para fora da cabana, inspirando profundamente o ar fresco.
Levanto os olhos e vejo Vâgis, sua postura imponente empunhando sua espada contra Kinkara com corte profundo e sangrento em seu rosto.
Kinkara ri, o som cruel e zombeteiro. — Ficou fraco com o passar dos anos, irmão — provoca, e diante dos meus olhos, a pele ao redor da ferida começa a se mover, como se estivesse viva. As bordas do corte sangrento começam a se juntar, lentamente a princípio, e depois com rapidez surpreendente. O sangue que antes escorria é absorvido de volta, e a pele, antes rasgada, agora se funde, tornando-se lisa e intacta. Em questão de segundos, não há mais vestígios da ferida, apenas a pele pálida e imaculada de Kinkara. A regeneração é tão completa e rápida que, por um momento, questiono se realmente vi a ferida ou se foi apenas uma ilusão.
— Não quero te machucar, Kinkara — diz Vâgis, sua voz exalando melancolia com acréscimo de preocupação, com os olhos fixos no adversário.
Kinkara solta uma risada amarga, seus olhos brilhando com malícia. — Tarde demais para isso! — Ele rosna, lançando-se em direção a Vâgis com sua velocidade anormal.
Vâgis, percebendo o movimento de Kinkara no último segundo, se joga para o lado, sentindo as garras afiadas de Kinkara rasparem o ar onde ele estava apenas um momento antes. Ele rola no chão, usando o impulso para se levantar rapidamente. Sem perder tempo, e aproveitando a abertura deixada pelo ataque falho de Kinkara, Vâgis avança, sua espada cintilante descrevendo um arco perfeito no ar antes de cravar profundamente no peito da criatura. Sangue jorra, manchando o chão e os combatentes.
Kinkara olha para baixo, para a lâmina ensanguentada que o perfura, e depois para Vâgis, um sorriso macabro se formando em seus lábios. — Hahaha! — Ele ri, a voz soando como o arranhar de ossos. — Você acha que isso pode me deter?
Com frieza maligna, Kinkara chuta o peito de Vâgis, mantendo a espada presa em seu peito, logo em seguida, Kinkara a arranca de seu peito e, num movimento quase borrado de tão rápido, ele a arremessa contra Vâgis, que por sua vez, esquiva-se habilmente, e a espada voa, desaparecendo no meio da densa floresta.
Vâgis, no entanto, não parece preocupado. — Digo o mesmo Kinkara — Ele levanta a mão, e laço de fogo surge, ligando-se ao seu antebraço. Com puxão firme, a espada é atraída de volta, como ímã, para sua mão, banhada em chamas e sangue.
Kinkara, no entanto, não dá tempo para Vâgis se recompor. Ele investe novamente, desta vez bem mais veloz, suas garras rasgando o ar. Vâgis tenta se defender, mas o ataque é tão rápido que ele só consegue desviar parcialmente, sentindo as garras de Kinkara arranharem seu abdômen, paralisando-o repentinamente, e Kinkara aproveita, cravando sua garra profundamente no peito de Vâgis.
— NÃO! — O grito angustiado de Shapes corta o ar, ecoando pela floresta, cada nota carregada de terror e fúria.
Com velocidade surpreendente, ela lança a haste em direção a Kinkara. Mas ele desvia facilmente com sorriso zombeteiro. Sem perder tempo, ele crava sua garra na mão esquerda de Vâgis, fazendo o sangue jorrar. Vâgis solta um urro de dor, seus olhos se enchendo de agonia.
Shapes, com os olhos flamejantes de raiva, avança contra Kinkara. Ela se move como em uma coreografia mortal, esquivando-se dos ataques brutais de Kinkara, sentindo o vento do ataque passar a centímetros de seu rosto. Em um movimento fluido, ela recupera sua haste do chão e, aproveitando o momento de desequilíbrio de Kinkara, perfura o abdômen da criatura com precisão assassina. Mas, para seu horror, Kinkara não demonstra nenhuma reação de dor, ele apenas ri, o som gutural e macabro.
Com sorriso cruel, Kinkara lentamente retira a haste de seu abdômen, que começa a se regenerar diante dos olhos chocados de Shapes. Ele ergue a haste, agora banhada em seu sangue escuro, e a aponta ameaçadoramente para Shapes, mas antes que pudesse atacar, rajada de fogo, feroz e abrasadora, o atinge, envolvendo-o em chamas e fazendo-o recuar com rugido de surpresa.
Vâgis, com a espada envolta em chamas, se levanta lentamente, cada músculo de seu corpo se contraindo com esforço. Seus olhos queimam com uma ira incontrolável. Ele respira pesadamente, seu nariz achatado se alargando a cada respiração pesada, enquanto seus cabelos ruivos, desalinhados e suados, colam-se à sua testa pequena. O suor misturado com sangue escorrendo até seus finos lábios.
— Não preciso de ajuda, Shapes! — Vâgis declara, sua voz carregada de autoridade. — A luta é entre mim e Kinkara. — Ele então incendeia sua mão esquerda, as labaredas dançando em torno de seus dedos. — Fique aqui e proteja Wara. — Seus olhos encontram os meus, transmitindo sua preocupação mesmo diante da tensão. Com um movimento brusco, ele extingue o fogo de sua mão, agora miraculosamente curada. Girando a espada em sua mão, testando seu peso, e assumindo uma postura defensiva, pronto para o próximo ataque.
A atmosfera ao redor de Vâgis se torna quase insuportável, exalando calor tão intenso que murcha instantaneamente as flores e derrete os troncos das árvores próximos, como se estivessem sob o olhar direto do sol.
— Se acalme, Féugnis — Vâgis sussurra para sua espada, sua voz um pedido suave em meio ao caos. A lâmina, antes incandescente, começa a esfriar, mas ainda mantém seu brilho ardente.
A floresta ao redor da cabana em tumulto. As chamas, alimentadas pela intensidade do confronto, espalham-se rapidamente, consumindo tudo em seu caminho. As árvores mais próximas, com suas folhas secas e cascas ressecadas, imcendiam-se quase instantaneamente, transformando-se em tochas gigantes que iluminam a noite.
O crepitar do fogo é macabro, e a fumaça espessa se eleva, formando uma cortina opaca que obscurece tanto a Gáilus quanto as estrelas.
A cada segundo, o calor aumentando cada vez mais, chegando a murchar e desintegrar as flores mais distantes de Vâgis, sob a intensidade infernal das chamas. O aroma de madeira queimada impregnando o ar, misturando-se com o cheiro do sangue derramado.
As sombras projetadas pelas chamas se movem freneticamente nas árvores circundantes, criando espetáculo macabro de luz e escuridão.
Em meio ao caos, o chão, antes firme sob os pés, agora é quente e traiçoeiro, com raízes e folhas transformados em brasas que queimam qualquer coisa que se aventure sobre elas.
A natureza, em sua fúria e beleza, tornou-se um espectador do confronto, adicionando uma camada adicional de perigo e urgência à batalha já intensa.
Shapes, com os olhos atentos e cautelosos, assume uma postura defensiva, os pés firmemente plantados no chão e a haste pronta para ser usada. — Fique atrás de mim, Wara! — Ela ordena, seu tom autoritário, enquanto seus olhos vasculham a floresta em chamas, tentando discernir qualquer movimento.
A fumaça das chamas começa a se intensificar ao nosso redor. O ar torna-se pesado e sufocante, e cada respiração é uma luta.
A fumaça ficando tão densa que mal consigo ver Shapes, mesmo estando tão perto dela.
Shapes se enrijece, e mesmo sem vê-la claramente, posso sentir sua tensão. — Há algo na fumaça — ela murmura, sua voz carregada de apreensão.
A fumaça começa a se mover de maneira estranha, formando padrões e redemoinhos que não parecem naturais. Tento me concentrar, tentando discernir qualquer forma ou movimento, mas tudo é um borrão cinzento.
E então, de repente, um vórtice se forma na fumaça, e uma figura emerge. Shapes, claramente surpresa, exclama: — Korla?! — sua voz misturando alívio e confusão. — O que está fazendo aqui?
Korla, a deusa misteriosa, responde rapidamente, seu tom urgente. — Não há tempo para explicar. Kinkara está em Miramer! — Claramente atrasada para o evento.
— Sabemos. Vâgis está o confrontando agora mesmo — informo a Korla que frange a curta testa ao me ver.
— Como... Como ainda está viva? — Ela pergunta, claramente perplexa, como se estivesse vendo uma ilusão. — Eu juro que te vi... — Suas palavras são abruptamente interrompidas quando uma bola de fogo se aproxima em sua direção, dissipando toda fumaça e ameaçando engoli-la.
Shapes se lança na frente de Korla, desviando a bola de fogo com movimento ágil de sua haste. No entanto, antes que Shapes possa se recompor, Kinkara surge das sombras, sua figura ameaçadora dominando a cena. Com rapidez, ele corta de raspão uma das pernas de Shapes e, em um golpe contínuo, arranha meu rosto.
A dor é instantânea, mas o que vem a seguir é ainda mais aterrorizante: sensação gelada se espalha pelo local do arranhão, e em questão de segundos, sinto meu corpo inteiro ficar pesado e rígido. Uma paralisia avassaladora toma conta de mim, e eu caio no chão, incapaz de me mover ou falar. — Isso não pode estar acontecendo — penso, lutando contra a paralisia. Meus olhos, os únicos que ainda conseguem se mover, arregalados em terror, enquanto eu assisto, impotente, ao que se desenrola diante de mim.
Kinkara, com sorriso sádico, se aproxima de Korla. — Olá, antiga amiga... — Ele zomba, levantando sua garra para desferir o golpe final.
Mas, antes que ele possa atacar, saraivada de flechas flamejantes atingem suas costas. As chamas se espalhando rapidamente por seu corpo, fazendo sua pele crepitar e queimar, enquanto ele tenta desesperadamente se livrar do fogo que o consome e o impede de regenerar.
— AFASTE-SE DELAS! — O grito de Vâgis rasga o ar, carregado de fúria. Com velocidade impressionante, ele se lança sobre Kinkara, cravando sua espada nas costas da criatura com tanta força que o som da lâmina perfurando a carne é audível.
Em continuidade, ele canaliza uma explosão de fogo através da lâmina, fazendo Kinkara, incapaz de regenerar, gritar em agonia. Quase simultaneamente usando a espada como alavanca, Vâgis arremessa Kinkara com uma força brutal contra um tronco de árvore, que estala e range sob o impacto, enquanto chamas vorazes envolvem a criatura.
Correndo até nós, Vâgis se ajoelha rapidamente ao lado de Shapes, sua expressão carregada de preocupação. Ele tira um pequeno frasco de seu bolso, despejando um líquido vermelho e espesso na boca de Shapes. Em seguida, ele faz o mesmo comigo. O líquido tem um gosto metálico e quente, e quase imediatamente, uma sensação de calor se espalha pelo meu corpo, dissipando a paralisia e trazendo de volta a sensação em meus membros.
— Vocês estão bem? — Pergunta, com olhar atento no corpo de Kinkara.
— O que... o que foi isso? — pergunto, minha voz trêmula, ainda tentando processar o que acabou de acontecer.
— O Sangue de Kinkara — Vâgis responde, sua voz suave, mas carregada de gravidade. — É o único antídoto para o veneno paralisante de suas garras.
Ele se levanta e caminha lentamente até o corpo de Kinkara, que jaz perto do tronco carbonizado, sua pele queimada e chamuscada. As emoções travam uma guerra em seu rosto: raiva, tristeza, culpa, enquanto levanta sua espada. — Me perdoa, irmão — ele sussurra, sua voz quebrada. — Eu ainda não consigo. — cravando a espada no tronco e, com esforço visível, levantando o corpo de Kinkara, os músculos de seus braços tensos sob o peso, enquanto o coloca cuidadosamente sobre suas costas, preparando-se para levá-lo embora.
— O que você está fazendo? — Minha voz soa mais aguda do que eu pretendia, a ansiedade evidente em cada palavra.
Ele pausa por um momento, seus olhos se perdendo na cabana, agora em ruínas, fumaça subindo de suas entranhas. — Vou prendê-lo na cela sob a cabana. — Sua voz é firme, mas posso detectar uma nota de hesitação.
— Prendê-lo? — O pânico, essa emoção tão incômoda, faz meu coração pulsar rapidamente. — Acabe com ele agora, enquanto ele está vulnerável! — As palavras saem em um jorro, o medo tornando-as quase incoerentes.
Vâgis se vira lentamente para mim, seus olhos, antes tão cheios de fúria, agora transbordam de tristeza. — Wara, eu entendo seu terror. Realmente entendo. Mas nunca, jamais, me peça para matar meu próprio irmão.
Suas palavras me fazem sentir como se estivesse à beira de um precipício, encarando o vazio. Meus olhos se avermelhando, não de tristeza, mas de frustração. Quero gritar, implorar para que ele acabe com a ameaça que Kinkara representa, mas as palavras ficam presas, sufocadas pelo peso da sua decisão.
Com um suspiro que parece carregar o peso de mil mundos, ele passa por mim. Observo, imóvel, enquanto ele desce as escadas quebradas da cabana, carregando consigo o fardo de seu irmão. A luz das chamas, testemunhas silenciosas da efemeridade da vida, dança em sua silhueta, conferindo-lhe uma aura quase mística.
Confrontada com a realidade inescapável da condição existencial, sinto um vazio que ecoa no infinito de meu ser. O silêncio da floresta, pontuado apenas pelo crepitar das chamas, serve como lembrete da solidão inerente à existência.
Iguais, no entanto diferentes. Unidos pelos primordiais, separados na história primordial. O destino do irmão que se esvairá por seu sangue. A vingança que nascerá em prol da morte da vingança.
Féugnis – arma divina de Vâgis. A espada Féugnis é uma obra-prima de ourivesaria e forja, um emblema resplandecente de poder. Sua lâmina é larga e reta, uma cascata de metal que brilha com um vermelho incandescente, aprisionando a própria essência do fogo dentro de seu metal. Ornamentos em alto relevo percorrem toda a extensão da lâmina, intrincados padrões que evocam símbolos de complexidade primordial, todos banhados em um dourado que brilha contra o calor da lâmina. O cabo é robusto e envolto em couro vermelho-escuro, proporcionando uma pegada firme. A guarda possui um design elaborado, com curvas e pontas que se estendem de forma elegante e simétrica, protegendo a mão do portador com sua estrutura metálica. Incrustados na guarda, há cristais arcririsianos vermelhos. No pomo, um ornamento similar aos da guarda dá equilíbrio à espada e serve como um ponto final para a visão majestosa que é Féugnis. A Espada contém uma propriedade incendiária singular, capaz de incinerar o que toca com um simples corte, emanando calor suficiente para rivalizar com o próprio Sol. Em repouso, seu fogo aguarda, mas, sob comando ou desejo, ela desperta em chamas vorazes, deixando intocado apenas Vâgis, seu legítimo portador. Aqueles que se atrevem a empunhar Féugnis sem seu consentimento são marcados por um destino cruel, consumidos lentamente por uma conflagração interna.
Mahorfi – arma divina de Shapes. Longa haste de aparência ornamental. O cabo de tonalidade verde-musgo é longo, feito de um metal escuro, adornado com símbolos e padrões geométricos que emitem um brilho azulado, exalando sua essência divina. Em intervalos regulares ao longo do cabo, há discos embutidos com símbolos diversos. A lâmina da lança, fixada no topo do cabo, é larga e pontiaguda, com gravuras que combinam com o estilo do cabo. Nascida exclusivamente para as mãos de Shapes. Esta lança possui um poder extraordinário: ao perfurar seu alvo, bloqueia qualquer habilidade de regeneração ou uso dos poderes de criação da vítima. Mais do que um mero instrumento de guerra, a Lança Mahorfi é uma extensão da própria deusa Shapes, compartilhando uma conexão profunda e consciente com sua criadora. Formada a partir de uma parte do corpo de Shapes, ela transcende a definição de uma arma, tornando-se um ser quase vivo.
ATO IV
— Por que está chorando? — Pergunto a Vâgis ao sair da cela onde prendeu Kinkara.
A cela, apertada e repugnante, tem suas paredes invadidas pelo mofo, e suas correntes envoltas por espessa camada de vegetação.
Vâgis desvia o olhar, enxugando as lágrimas, claramente constrangido por ter sido flagrado em tal estado. Ele pausa por um momento, olhando para o vazio, antes de finalmente responder:
— Kinkara pode ter se tornado um monstro, mas nunca deixará de ser meu irmão.
— O que aconteceu com ele? — Pergunto.
Vâgis suspira profundamente, o peso da memória claramente o oprimindo. — Já se passaram dezoito anos, mas ainda me assombra em sonhos, tão vívidos como se tivesse acontecido ontem — diz ele, mantendo-se de costas para mim, sua postura rígida e tensa. A angústia em sua voz é palpável. — Como eu desejaria ter o poder de reverter tudo aquilo. Mas agora... é tarde demais.
Ele se vira lentamente, seus olhos encontrando os meus, carregados de uma tristeza profunda. — Shapes e Korla nos esperam na cabana — informa, tentando desviar do assunto doloroso.
Antes que ele possa se afastar, agarro sua mão, sentindo sua pele quente e áspera. — Espera, Vâgis! Você deveria ficar aqui, perto de Kinkara. E se ele tentar escapar? — Minha voz denota preocupação, e nossos olhos se encontram novamente.
Vâgis pausa, seus olhos sondando os meus com uma intensidade penetrante. — Báron gosta bastante de você, Wara — ele expõe.
Surpresa solto sua mão, sentindo uma onda de calor invadir meu rosto, fazendo minhas bochechas queimarem. — Por que disse isso? — Questiono.
Ele suspira, parecendo escolher cuidadosamente suas palavras. — Antes de partir, Báron me fez prometer que cuidaria de você. Pode parecer um simples pedido, mas ele raramente pede algo a alguém. Seu orgulho sempre o impede.
Onda de nostalgia me atinge, e minha voz sai suave, quase um sussurro. — Gostaria de poder encontrá-lo novamente um dia — confesso, as memórias de nossa conversa no amanhecer ainda frescas em minha mente. Desejando algumas vezes por voltar àquela manhã e de lá nunca ter saído.
Vâgis hesita, sua mão começando a brilhar com um clarão intenso. — Não sei se posso cumprir a promessa que fiz a Báron — admite, as chamas dançando em sua palma. — Estas chamas que deveriam te proteger, são as mesmas chamas que transformaram Kinkara no que ele é agora.
Instintivamente, dou um passo à frente, mas a intensidade das chamas cresce, formando uma barreira entre nós. — Fique onde está — ele adverte. — Não quero te machucar.
Desafio o perigo, e avanço ainda mais perto. — Sei que não irá, você prometeu a Báron que me protegeria. Confio em você. — Fecho meus olhos e me aproximo, e quando os abro novamente, as chamas se extinguiram. — O que quer que tenha acontecido com Kinkara, não é sua culpa.
Vâgis balança a cabeça em negação. — É sim, Wara. Era para ser apenas uma brincadeira. Mas como eu poderia prever que Vanker reagiria daquela forma?
— Vanker? — pergunto, surpresa.
Vâgis desvia o olhar, como se estivesse sendo consumido por memórias dolorosas. Ignorando minha pergunta e continuando: — Eu não tinha ideia de que Vanker tinha aversão ao fogo — ele confessa, seus olhos encontrando os meus, carregados de pesar. — Eu só queria brincar com ele, mas algo se acendeu em Vanker... e ele... ele matou Kinkara.
Minha respiração fica presa na garganta. — Ele... matou Kinkara?
Vâgis engole em seco, seus olhos brilhando com lágrimas não derramadas. — Foi minha culpa, Wara. Por minha culpa, meu irmão estava morto! — Sua voz quebra, e ele parece lutar para manter a compostura. — Eu não podia simplesmente assistir. Eu tinha que fazer algo, qualquer coisa. Não podia ver meu irmão morrer na minha frente. Tinha que salvá-lo. Deveria salvá-lo. Por isso, não pensei direito, na verdade, nem hesitei, peguei todas as frutas primordiais que carregava e as coloquei em sua boca, forçando-o a mastigar, esperando... implorando para que seu coração voltasse a bater.
Vâgis faz uma pausa, respirando fundo, tentando controlar a emoção. — Por um momento, pensei que o tivesse trazido de volta, que tudo ficaria bem. Achei que o tinha salvo, Wara. Achei mesmo.
Observo suas mãos, notando o leve tremor que as acomete, sinal claro do tormento interno que ele enfrenta.
Vâgis fecha os olhos por um momento, como se estivesse revivendo a cena. — Nunca o ouvi gritar daquela forma. Ele gritava... não... não eram apenas gritos... eram berros desesperados, pedidos de socorro que rasgavam a noite. Ele clamava por minha ajuda, e eu me sentia impotente, paralisado.
Coloco minha mão em seu braço, tentando oferecer algum conforto. — Vâgis, você não precisa...
Mas ele me interrompe, seus olhos, antes perdidos, agora fixos nos meus, carregados de dor. — Ele me encarou, Wara. No meio de sua agonia, ele encontrou forças para me olhar nos olhos e suplicou, com todo o amor que compartilhávamos, que eu o libertasse daquela dor. Meu irmão me olhou no fundo do meus olhos e implorou para que eu o matasse.
Lágrima solitária escapa de seus olhos, descendo lentamente por sua face, e ao tocar o chão, um calor emana dela, e as flores ao redor murcham instantaneamente, como se sentissem a intensidade da dor contida naquela gota.
— Ele era a personificação da bondade, da empatia. E eu... eu o transformei em um monstro.
Fico sem palavras, sentindo o peso da confissão de Vâgis. A atmosfera ao nosso redor torna-se pesada, carregada de remorso e tristeza.
Os olhos de Vâgis se tornando ainda mais sombrios. — O que mais me dilacerou por dentro foi a decisão que tomei. Com o coração pesado, cravei minha espada em seu peito, acreditando que estaria libertando-o daquela tortura. — Sua voz treme, e ele olha para baixo, como se pudesse ver a cena se desenrolando diante de seus olhos novamente.
Eu sinto um nó na garganta, imaginando a dor de tal decisão. Mas o que ele diz a seguir me deixa ainda mais atordoada.
— E depois... depois de tudo, ele se levantou. Minha espada ainda estava lá, cravada, mas ele se levantou com um olhar que nunca tinha visto antes. Um olhar... maligno, distorcido pelo sofrimento e pela raiva.
Minha respiração fica pesada, e eu rapidamente coloco minha mão sobre a dele, tentando transmitir algum conforto. — Por favor, Vâgis, não precisa continuar. — Minha voz é quase um sussurro.
Ele olha para mim, seus olhos agora nublados pelas lágrimas não derramadas. Por um momento, parece que ele vai dizer algo, mas em vez disso, apenas acena com a cabeça.
— Melhor irmos — diz Vâgis, com frieza que esconde a tempestade de emoções por baixo.
Caminhamos juntos em silêncio até a cabana. O trajeto é um testemunho mudo da destruição: o solo, manchado de sangue e as árvores ao redor carbonizadas, seus troncos retorcidos e negros, com ramos quebrados espalhados pelo chão, alguns ainda soltando fumaça, testemunhando a intensidade do fogo que as consumiu.
À medida que nos aproximamos da cabana, o cheiro acre de queimado se intensifica. A estrutura, que antes se destacava como um abrigo acolhedor em meio à floresta, agora está irreconhecível, em ruínas, com a maioria de sua estrutura reduzida a cinzas e escombros.
— Você chegou mais cedo do que esperávamos — comunica Vâgis à Korla.
— A situação com Kinkara me fez antecipar minha vinda. Mas já que estou aqui, ficarei — responde Korla.
Shapes, sentada na grama e absorta na tarefa de limpar sua lança com pedaços de folhas, levanta a voz: — Ainda temos alguns meses antes da partida de Vâgis.
Ele acena, retirando sua espada e entregando-a à Shapes. — Enquanto isso, posso mostrar a você e a Wara Miramer. E precisamos reforçar a cabana onde Kinkara está preso — diz ele, observando Shapes deslizar a espada na bainha artesanal, tecida com cipós e adornada com folhas de tonalidades pretas e vermelhas.
Shapes, colocando a espada recém-embainhada ao lado de sua lança, se levanta e estica os músculos. — Reconstruiremos a cabana a partir das cinzas da antiga — ela propõe, lançando olhar significativo para os escombros. — Só espero que ela não retorne as cinzas.
Vâgis sorri, um sorriso tímido e melancólico, ainda marcado pela tristeza recente. — Faremos o nosso melhor, sem dúvida — ele assegura, mas seus olhos não escondem sua incomensurável tristeza.
Sorriso ilusório de pensamentos tendenciosos. Abandonado. Torturado ao vê-lo padecer, sem nada poder fazer. Queria salvá-lo, conquanto seu corpo tentasse torturá-lo. Segurando para não chorar. Preferindo morrer a seu lado permanecer. Não o odiando, embora sendo obrigado a odiar. Amando-o, contudo ansiando por matá-lo.
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