Chamas fratenas - Parte I
ATO I (Wara)
O ar da noite é fresco, e a trilha, iluminada apenas pelas tochas, emite um brilho suave. As sombras dançam nas árvores ao redor, criando um ambiente místico.
Ao meu redor, Miramer se revela como um jardim encantado. Dália de variadas cores pendem de árvores altas, suas pétalas delicadas refletindo a luz das tochas. Samambaias crescem em abundância, suas folhas verdes e frondosas cobrindo o chão da floresta. Pequenos lírios d’água flutuam em poças tranquilas, suas flores brancas contrastando com a escuridão da água.
Enquanto caminho, uma curiosidade insaciável me leva a me inclinar em direção a uma flor que chama minha atenção. Tento ter uma visão mais clara da flor, que cintila sob o manto do anoitecer. Seu brilho azulado parece dançar com a brisa suave que passa. Mas, antes que possa tocá-la, sinto o braço de Vâgis se esticar abruptamente na minha frente, bloqueando minha passagem.
— Cuidado! — Ele exclama, e vejo uma preocupação profunda refletida em seus olhos. — Essa é uma Vângalis!
— Vângalis? — Pergunto, ainda encantada com a beleza da flor.
A mão firme de Vâgis aperta a minha, um gesto que me faz perceber a seriedade de sua advertência. — Fica longe dela! Ela pode criar alucinações e te deixar paranoica.
Ele começa a me puxar suavemente pela trilha, mas minha mente ainda está naquela flor misteriosa. No entanto, respeitando seu aviso, decido mudar o assunto.
— Vâgis, posso te fazer uma pergunta? — Pergunto.
Ele assente, mas continua a andar a um ritmo constante.
A trilha se estreita, e tochas posicionadas estrategicamente iluminam nosso caminho com brilho dourado.
— Por que ficou dezoito anos isolado em Miramer? — Questiono, esperando que ele compartilhe um pouco de sua história.
Vâgis hesita, e vejo mudança abrupta em sua expressão. Seus olhos, normalmente tão abertos e expressivos, tornam-se escudos inescrutáveis. Ele desvia o olhar e sinto uma tensão no ar. — Perdão, Wara. Mas não desejo falar sobre isso — sua resposta é suave, mas firme.
— Talvez tenha ido longe demais com minha curiosidade — penso, sentindo-me um pouco culpada. — Sinto muito por perguntar...
— Não sinta. Mas pode me perguntar sobre qualquer outra coisa relacionada a Miramer e eu te responderei — Ele me oferece um sorriso, mas há uma tristeza em seus olhos que não posso deixar de notar.
Aproveitando o momento, e sem deixar o silêncio se instalar, deixo minha curiosidade tomar a frente.
— O que são os animais? Por que eles só existem em Miramer? Por que eles não vivem em Malbork, por exemplo?
— São criaturas maravilhosas, Wara — responde com acalorado brilho no olhar. — Miramer é um mosaico de vida, contendo milhares de espécies que não encontrará em nenhum outro lugar. Em minha concepção, é a criação mais pura e diversificada de Máterum. Mas, assim como os monstros de Salacrum, eles têm seus perigos. Por isso, estão confinados no jardim de Miramer.
— Mas por que ainda não os vi aqui?
— Estamos em uma parte de Miramer onde eles não podem entrar. Máterum, em sua infinita sabedoria, delineou este espaço como um santuário, um refúgio para os deuses, uma pausa na vastidão selvagem.
— E por que Máterum os criou?
Nesse momento, noto cipós entrelaçados bloqueando nosso caminho. Vâgis, sem perder o ritmo, conjura uma esfera de fogo e os incinera.
— Não posso responder por Máterum — ele responde, sua voz carregada de humildade. — Mas posso tentar entender sua mente. Suponho que tenha sido por medo... Um medo profundo do futuro amaldiçoado que criou em sua mente.
— Medo? — pergunto, pendurada em suas palavras.
— Antes da criação dos animais, Máterum enfrentou muitos desentendimentos com seus filhos, tanto os primeiros, os deuses renegados, quanto os que ficaram ao seu lado. Suponho que criou os animais como um refúgio, uma tentativa de preencher um vazio que nem mesmo o Universo pode escapar.
— Refúgio?
— Sim, um refúgio da solidão. Talvez, ele tema que todos os deuses, eventualmente, o abandonarão; como seus filhos fizeram. E na ausência de diálogo com os monstros, que são seres descontrolados, ele criou os animais. Seres que poderiam acompanhá-lo, seres que poderiam preencher o silêncio ensurdecedor da eternidade. Não permitindo que se sentisse outra vez sozinho.
— Por que Máterum teme tanto a solidão? — Questiono, tentando imaginar a vastidão da existência de um ser tão poderoso.
Vâgis olha para o céu estrelado, como se buscasse respostas nas constelações.
— Imagine, Wara — Vâgis começa, pegando um pedaço de madeira e o incendiando. —, ser o Universo. Existir por eras, milhões... bilhões de anos, tudo isso na solidão. Máterum viveu ecos de solidão antes de nós, deuses, virmos à existência. Certamente, ele teme retornar a esse abismo de isolamento.
Iluminando a interseção à frente, seguimos pela trilha da esquerda.
— Consigo entendê-lo — murmura. — Vivi apenas dezoito anos em Miramer na companhia dos animais, Shapes e Trogy, mas, ainda assim, diversas vezes me senti só. Não consigo nem me imaginar vivendo séculos no vazio, sem ninguém para dialogar, pensar ou, quem sabe, amar. A solidão, Wara, é um vazio que nem mesmo deuses podem preencher completamente.
— Não guarda rancor de Máterum por tê-lo afastado dos outros deuses? — Indago.
Vâgis sorri, um sorriso triste e sábio.
— Nem um pouco. Compreendo o erro que cometi e devo somente perdão a Máterum, não rancor.
— Essa Shapes que mencionou, é ela o alguém que gostará da minha presença? — Questiono, meus olhos capturando a silhueta de uma estrutura imponente que começa a se destacar à medida que nos aproximamos.
— De fato. Como Mélus em Malbork, Shapes ficou na liderança da construção de Miramer. Ela escolheu o isolamento de Miramer há mais de seis décadas.
— Mélus? — Me pergunto. Mas focando em Shapes, decidindo saciar minha curiosidade em outro momento.[CG1]
À medida que Vâgis intensifica a chama da tocha, o ambiente ao redor se ilumina, revelando majestosa cabana, com paredes de um marrom profundo e envelhecido, aninhada em um bosque de árvores centenárias, onde suas raízes se entrelaçam como se para proteger o lugar.
Flores de cores vibrantes e formas exóticas adornam o telhado e as janelas, exalando um perfume suave que se mistura com o aroma da madeira.
— Diferente de mim e Máterum, Shapes encontrou paz na solidão. Máterum a convidou inúmeras vezes para retornar a Malbork, mas ela sempre escolheu a serenidade de Miramer ao invés do tumulto de conviver com os outros deuses em Malbork.
— Ela deve ser uma deusa de poucas palavras, então.
Ao nos aproximarmos da entrada, noto que a cabana é ainda mais impressionante de perto. Pequenas tochas, cuidadosamente posicionadas, iluminam o caminho e as paredes, criando um mosaico de sombras dançantes.
— Pelo contrário — Vâgis diz com sorriso enigmático, — ela é a deusa mais vivaz e alegre que já conheci.
Com gesto gracioso, Vâgis apaga a tocha principal, confiando na iluminação suave das tochas menores. Ele abre a porta da cabana, convidando-me a entrar.
Ao adentrar a cabana, sou imediatamente envolvida por um ambiente de esplendor e magia. O interior é uma combinação harmoniosa de elegância rústica e sofisticação. O chão é de madeira polida, refletindo a luz suave das tochas que iluminam o espaço. O teto,é adornado com cristais arcririsianos dourados que cintilam e refratam a luz, criando um efeito caleidoscópico.
No centro do salão, imensa pintura espiral domina a parede, seus tons escuros contrastando com o ponto central de cor rosada, quase como se estivesse pulsando com vida própria. O aroma no ar é uma mistura intoxicante de madeira antiga, flores frescas e toque sutil de incenso.
Ao me virar, sou imediatamente capturada pela presença imponente de Shapes. Ela se destaca não apenas por sua estatura, mas pela aura de confiança e graça que a envolve.
— Como é linda — ela murmura, seus olhos esverdeados, claros como a água de uma lagoa tropical, fixos nos meus, brilhando com uma curiosidade genuína. — Não sei se elogio seus radiantes olhos ou suas esplendorosas sardas.
Sua voz é como uma melodia, suave e envolvente, fazendo-me sentir embalada por uma canção antiga.
Sua pele é de um tom profundo e rico, lembrando-me do veludo da meia-noite, contrastando lindamente com seus olhos luminosos.
— Obrigada — agradeço, permitindo que leve rubor colora minhas bochechas, enquanto desvio brevemente o olhar, um sutil indicativo de minha timidez diante de sua presença tão deslumbrante e imponente, que me faz sentir pequena e um pouco deslocada.
Shapes é uma visão a ser contemplada. Seu corpo esbelto é uma combinação de força e graça, cada curva e contorno esculpido como se por um mestre artesão. Seus ombros são graciosamente arredondados, levando a braços tonificados que sugerem que ela é tão capaz de ação quanto de beleza. Seu peito é firme e elevado, e sua barriga é uma exibição suave de músculos bem definidos, indicando horas de dedicação e treinamento.
A cintura dela afunila de forma elegante, antes de se expandir para quadris curvilíneos que acentuam sua feminilidade. Suas pernas, longas e torneadas, carregam o tipo de força que fala de agilidade e velocidade.
— Faz décadas que não contemplo outra deusa, às vezes, parece que sou a única — brinca, revelando um sorriso com dentes alinhados e brancos como pérolas. Seu sorriso é contagiante, e não posso deixar de sorrir de volta.
Fico especialmente encantada com a maneira como a luz da cabana realça os contornos de seu rosto. Seu maxilar é definido, mas suavemente arqueado. Sua testa, lisa e levemente curvada, é emoldurada por cachos castanho-escuros que caem desordenadamente sobre seus ombros. Suas orelhas, delicadamente afinadas, e seu nariz, miúdo e levemente arredondado, adicionam ao seu charme.
— Talvez, não seja tão ruim viver em Miramer — expresso, com pequeno sorriso. — Parece que os melhores deuses escolheram este lugar como lar.
Shapes e Vâgis riem, e por um momento, sinto uma conexão genuína com eles. Shapes, com sua personalidade vibrante, e Vâgis, com sua sabedoria tranquila, são um contraste interessante, mas ambos são igualmente cativantes.
— Já teve a oportunidade de conhecer as maravilhas de Miramer? — Shapes pergunta, passando os dedos por seus cacheados cabelos castanho-escuro, uma expressão de expectativa em seu rosto.
— Ainda não — respondo, hesitante. — Fui informada de que eles não podem acessar esta parte de Miramer.
Shapes sorri, seus olhos brilhando com entusiasmo. — Então você está com sorte. Estava justamente me preparando para visitá-los. Tenho certeza de que ficará fascinada.
Vâgis, observando a crescente escuridão lá fora, interrompe com nota de cautela. — Não está muito escuro para irmos à área dos animais?
— Quem disse que você foi convidado? — Retruca Shapes com olhar travesso, seu tom debochado. — Wara parece ansiosa para conhecê-los, e eu posso garantir que voltaremos antes da primeira luz.
Vâgis suspira, e se acomoda em uma cadeira próxima, apoiando a cabeça contra a parede. — Como quiser, mas tenha cuidado. A noite de Miramer é traiçoeira. — fechando os olhos e cochilando.
— “A noite de Miramer é traiçoeira” — replica Shapes com tom exagerado, arrancando minha risada enquanto pega uma tocha da parede. — Vâgis, certas vezes, é muito sério e enigmático — Ela pisca para mim, e o som de nossas risadas preenche o ar enquanto seguimos pela trilha.
ATO II
— Vâgis mencionou que você prefere a solidão de Miramer a agitação de Malbork. Por quê? — pergunto.
Shapes, iluminando o caminho com sua tocha, responde em tom ríspido: — Você é bem curiosa, não é?
— Desculpe, não quis ser invasiva — digo, sentindo-me um pouco envergonhada.
Ela ri suavemente. — Estou brincando, Wara. Não se preocupe.
Chegando à interseção e seguindo desta vez a trilha da direita.
— Sabe, eu nunca fui muito fã de conflitos. E Malbork... bem, está cheio. Desde que cheguei lá, há sete décadas, Máterum sempre foi gentil comigo. Mas havia uma tristeza em seus olhos que eu não conseguia ignorar.
— Então, foi Máterum o problema?
— Não. O problema, se assim posso chamá-lo, foi Ézus.
— Ézus? — indago, franzindo a testa. — Não cheguei a conhecê-lo — segurando tocha oferecida por Shapes. — Na verdade, nasci há poucos meses. Em Malbork, só tive contato com Báron e Void.
Shapes acena, iluminando o caminho à nossa frente.
— Dos dois, só conheço Báron. Ele veio a Miramer algumas vezes com Máterum. Sempre tão imponente em sua sublime armadura — sua voz revelando leve interesse por ele.
— É bastante sublime — reflito com sorriso tímido se formando em meus lábios ao lembrar de nossa viagem.
Shapes observa meu rosto por um momento, um sorriso malicioso se formando. — Parece que alguém está pensativa.
Coro levemente, mas antes que possa responder, ela continua. — Quanto a Ézus, nunca entendi completamente seus motivos. Mas seu desprezo pelos filhos de Máterum, aqueles confinados em Salacrum, era hiperbólico. Foi ele quem os intitulou de “deuses renegados”.
Vasto campo se estende diante de nós, dominado por um portão monumental no centro.
— Seu rancor era tanto que persuadiu a deusa recém-nascida, Korla, a odiar os deuses renegados, mesmo sem ela nunca tê-los conhecido. — Shapes diz, uma sombra de tristeza cruzando seu rosto. — Ele os pintou como seres cruéis e egoístas, entre outras coisas.
Com empurrão firme, Shapes abre o portão, revelando o que está além: miríade de vângalis, com seu brilho azulado, iluminando o ambiente, transformando a noite em dia e lançando um manto etéreo sobre tudo.
— E eles eram? — Questiono.
— Cuidado com as flores — adverte Shapes, seus olhos alertas enquanto caminha com cuidado entre elas, guiando-me pelo caminho. — Então, eu nunca os conheci pessoalmente. Assim, não posso afirmar se as palavras de Ézus eram verdadeiras ou apenas veneno destilado. Mas também não posso negar completamente suas alegações.
— Mas você nunca sentiu vontade de voltar para Malbork, mesmo que por um breve momento?
Ela suspira suavemente, o som quase perdido no brilho cintilante ao nosso redor. — Confesso que sim, por um tempo. Mas depois... — Ela pausa, buscando as palavras certas. — acabei mudando de ideia.
— Por quê? Algo aconteceu?
— Nossa, você é muito curiosa mesmo — expressa Shapes com leve risada. — Depois da declaração de guerra dos filhos de Máterum, percebi que Malbork, com suas tensões e conflitos, não era mais o lugar para mim. Se antes era um desafio viver lá, agora com essa guerra deve ser insuportável.
Enquanto caminhamos, os sons da floresta começam a se tornar mais audíveis. O farfalhar das folhas, o sussurro do vento entre os galhos e, acima de tudo, uma melodia distante que me era familiar.
Paro abruptamente, fazendo Shapes olhar para mim com surpresa. — Reconheço esse som — digo, estreitando os olhos, tentando captar de onde vem. — Ouvi quando entrei em Miramer.
Shapes, desconfiada, inclina a cabeça ligeiramente para o lado, como se seus ouvidos buscassem pistas no ar ao nosso redor. O som de um canto melódico surge, preenchendo a floresta com uma nota cristalina, tão pura que parece reverberar entre as árvores. É um chamado hipnotizante, que faz o ambiente ao nosso redor parecer mais quieto, como se a floresta aguardasse o próximo verso.
— Ah, o sabiá-laranjeira — comenta Shapes com sorriso. — Eles têm uma melodia especial. O canto deles é uma das maravilhas de Miramer.
Fecho os olhos, deixando o som me envolver, o peito se expandindo com a beleza daquela música natural.
— É tão lindo — murmuro, sentindo uma breve tranquilidade invadir meus sentidos, como se o mundo fosse apenas a melodia e nada mais.
Mas essa calmaria logo se quebra. O sorriso de Shapes desaparece, substituído por uma leve contração em sua mandíbula. Seus olhos se estreitam, as sobrancelhas arqueiam apenas um pouco, mas o suficiente para despertar um alarme em mim.
— O que foi? — Pergunto, sentindo uma leve tensão se enroscar no ar entre nós.
Shapes hesita, a expressão ainda pensativa. Seus lábios se apertam antes de finalmente falar, sua voz agora mais baixa, quase como se estivesse conversando consigo mesma. — Estranho... eles costumam cantar mais entre o amanhecer e o entardecer...
Ela interrompe o pensamento com um leve balançar de cabeça, mas seus olhos ainda varrem a floresta ao redor. O silêncio que se segue parece mais denso do que antes, como se até mesmo a floresta estivesse à espreita, esperando por algo.
— Deve ser nada... — conclui, sua voz soando casual, mas há uma tensão subjacente em suas palavras. Ela força um sorriso, embora seus olhos revelem uma cautela que não consigo ignorar.
Em seguida, avisto ao longe enorme criatura deitada no chão, apressando-me em direção a ela, com Shapes ao meu lado.
— É um dos animais? — Questiono.
— É um touro — responde Shapes, fazendo um sinal para que eu espere. — Ele parece estar dormindo. Se acordarmos, pode se enfurecer e nos atacar — parando abruptamente, seus olhos se arregalando. — Espere! Aquilo é sangue escorrendo de suas costas?
De repente, grunhidos abafados ecoam por trás da carcaça do animal. Shapes rapidamente me puxa para trás de uma árvore próxima.
— Não faça barulho! Outro animal está se alimentando do cadáver — comunica Shapes agachando-se e dando a volta no animal.
— O que é...
— Fique quieta! — ela sussurra, espiando cautelosamente por trás do tronco.
Arriscando um olhar, meu coração quase para ao testemunhar a visão diante de mim. Uma criatura albina, coberta por pelagem negra espessa, devora vorazmente as entranhas do touro. Seus enormes olhos violetas, quase brilhando na penumbra, contrastam fortemente com sua pele pálida.
Meus olhos se arregalam, incapazes de desviar daquela cena grotesca. A boca da criatura é uma abertura circular, repleta de centenas de dentes afiados que rasgam a carne com uma facilidade que me faz estremecer. Suas orelhas pontudas se movem sutilmente, captando cada som ao redor. Mas o que mais me assusta são suas garras. Em vez de mãos, longas e terríveis garras negras, com cerca de um metro de comprimento, rasgam a carne do touro. Seu maxilar arredondado se move com uma força brutal, triturando os ossos do animal.
Minha respiração se torna rápida e superficial, e sinto uma pressão crescente em meu peito. Parte de mim quer gritar, correr, fazer qualquer coisa para escapar daquela visão, mas estou paralisada pelo medo. A realidade da situação é clara: estou diante de um predador, e sou a presa.
Shapes rapidamente me puxa para trás do arbusto, tapando minha boca para abafar qualquer som involuntário que eu possa fazer. Sinto sua mão trêmula contra minha pele, e percebo que, apesar de sua experiência e conhecimento, ela também está assustada.
— Precisamos sair daqui agora! — ela sussurra com urgência.
— O que é aquela criatura? — pergunto, minha voz tremendo.
Shapes olha em volta, como se esperasse que a criatura pudesse ouvir nossa conversa. Ela respira fundo, tentando se acalmar, mas seu olhar ainda está fixo na direção da criatura. — Não temos tempo. Precisamos avisar Vâgis que ele está aqui! — diz ela, puxando meu braço com força, seus dedos apertando minha pele.
— “Ele”? Quem? — pergunto, confusa, mas também alarmada pela reação de Shapes.
Shapes para por um momento, olhando profundamente em meus olhos, como se quisesse que eu entendesse a gravidade da situação sem que ela precisasse dizer uma palavra. — Kinkara... — ela sussurra, e o puro terror em sua voz me faz entender que estamos em grave perigo.
Subitamente, Kinkara avança em nossa direção, seus olhos violetas focados e letais. Com uma agilidade surpreendente, Shapes rapidamente reparte as flores vângalis em sua frente, liberando denso gás azulado no ar.
— TAPA O NARIZ! — ela grita, fazendo o mesmo.
Kinkara, inalando o gás, imediatamente começa a cambalear, seus olhos antes focados agora parecem perdidos.
— Onde está Vâgis? — Kinkara questiona, sua voz distorcida, como se estivesse em transe.
Aproveitando a confusão de Kinkara, ela agarra meu braço e corre. — Vamos! — ela insiste. — O veneno da vângalis não durará muito tempo em Kinkara. Precisamos ganhar distância!
Atrás de nós, os rugidos confusos e frustrados de Kinkara ecoam, enquanto ele golpeia o ar, ainda sob o efeito das alucinações. — GRR! HAA!
Shapes, com sua mão firmemente entrelaçada na minha, corre pela floresta densa de Miramer. A escuridão é quase total, com apenas o brilho azulado das flores vângalis iluminando nosso caminho. Nossos pés se chocam contra raízes salientes e pedras ocultas, fazendo-nos tropeçar várias vezes.
O som de galhos quebrando atrás de nós indica que Kinkara está se aproximando. Shapes me puxa por um caminho estreito, onde espinhos arranham nossa pele. O ar é denso e úmido, tornando a respiração difícil.
De repente, chegamos a um riacho de águas rápidas. Shapes não hesita e pula, puxando-me junto. A correnteza é forte, e por um momento, sinto que seremos levadas, mas Shapes consegue nos puxar para a margem oposta.
A floresta agora se torna mais íngreme, e começamos a subir uma colina. O terreno é escorregadio, mas o rugido de Kinkara ecoando pela floresta, mais próximo do que nunca, nos força a continuar.
No topo da colina, Shapes me puxa para trás de grande pedra, ofegante. O som de Kinkara se torna mais distante, mas ainda podemos ouvir sua fúria.
O cansaço me alcança, mas antes que eu possa expressá-lo, Shapes olha para mim, seu rosto suado e olhos inquietos. — Temos que continuar. Não podemos deixá-lo nos encontrar.
E sem mais tempo a perder, continuamos a correr, nossos pulmões queimando e nossos músculos gritando por descanso. A floresta começa a clarear um pouco, e à distância, vejo uma luz fraca brilhando entre as árvores. Shapes aponta na direção da luz, e nós aceleramos o passo.
— É a cabana! — Grito, minha voz carregada de alívio.
Vângalis - flor notória, facilmente identificável por suas pétalas de um azul fluorescente intenso que parece brilhar mesmo na penumbra da floresta. Sua característica mais intrigante é a defesa química que emprega quando ameaçada: ao ser arrancada da raiz, a Vângalis libera gás venenoso, sutil mas potente. Este gás é único por afetar seres de poder divino, como os deuses, induzindo alucinações vívidas e desorientadoras.
Shapes
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro