Rapinantes
Olhei para a janela e após pressionar os olhos com uma das mãos tentei enxergar através da mesma, ainda parecia estar escuro, mas quando meus olhos se adaptaram percebi que na verdade o céu estava acinzentado. Bocejei, coloquei minhas mãos atrás da cabeça e encarei o teto. Minha mente não parava desde que sai de Tenma, sempre me trazendo memórias de tempos antigos. Podia ter algo a ver com a maneira com que deixei o reino, ou por estar sozinha novamente. Eu não sabia ao certo. Mas não estava nem um pouco confortável com a situação. Então me levantei abruptamente da cama e peguei meu arco, eu precisava me concentrar em outra coisa.
Fui para parte de trás da taberna e com uma pedra que encontrei no caminho comecei a fazer pequenos círculos aleatórios nos troncos das árvores. Assim que terminei fiquei no centro dos alvos e armei meu arco com uma flecha. O silêncio e a calma veio até minha mente no mesmo instante, tudo que ouvia era o som do vento, das árvores balançando e de galhos batendo. Soltei a primeira flecha e esta cortou o ar velozmente perfurando o primeiro alvo. Levei a mão direita as costas e peguei outra flecha dentro da aljava e esta voou até seu alvo ainda mais rápido que a anterior. Levei a mão a aljava novamente e o vento soprou mais forte, me fazendo ter meus primeiros calafrios desde que cheguei a Edyn, o clima estava frio. Inspirei fundo e ignorei o pequeno incômodo do frio e limpei minha mente, como resultado a flecha acertou o centro do círculo. Fiquei perdida naquele momento por vários raios, apenas ouvindo o som das coisas a minha volta e da minha flecha perfurando o ar. O arco fazia parte do meu corpo e a flecha era sua extensão. Nada me trazia tanta calma. Estava totalmente concentrada no meu próximo alvo quando ouvi alguém pigarreando atrás de mim. Virei meu arco por puro instinto mirando em direção a origem do som.
"Acho que não sou um PININHO tão barulhento assim" o garoto da floresta estava parado em pé com um sorriso de triunfo no rosto "Que isso tiha não mereço nem mesmo um olhar de surpresa? Você é sempre tão inexpressiva?"
"Está me seguindo agora?" eu estava surpresa, não ouvira ele chegando, mas obviamente não deixaria que tomasse conhecimento desse fato.
"Na verdade sim, sou bom com rastros, foi moleza. Mas você demorou para voltar, então estava escondido por aí. Nesse meio tempo decidi que você me devia ao menos uma refeição, você sabe.. para compensar o que fez." Disse ele levantando a mão enfaixada.".. além de que eu vi o quanto de carne você trouxe, deve estar cheia de pins."
"E o que o faz pensar que vou usá-las com você?"
"Algo a ver com você ser uma ladra, e acho que o pessoal dessa vila não vai gostar muito de saber disto."
"Deixa eu ver se entendi. Um pininho que tem a metade da minha altura e de meus ciclos, desarmado está me chantageando?"
"Tenho mais que a metade da sua altura sua tiha sem educação" disse ele nervoso.
Suspirei fundo e me virei para recolher minhas flechas. Enquanto ele falava sem parar sobre eu não o estar levando a sério, e que ia fofocar para a vila inteira que eu não passava de uma ladrazinha. Retirei a última flecha e coloquei na aljava. Me virei para encará-lo e ele se calou no mesmo instante.
"Se pegar qualquer coisa, seja ela qual for, eu te garanto que não terei piedade da sua mão desta vez. Estamos de acordo?" ele engoliu em seco e acenou com a cabeça "Qual seu nome?"
"Tray"
"Ely"
"Já to sabendo" disse ele agora retomando um pouco da cor que tinha esvanecido do seu rosto alguns raios atrás.
"Então vamos."
O ciclo de sol já estava em sua metade, sendo assim era o momento de comer alguma refeição na taberna, levei Tray para dentro da taberna e mandei ele se sentar em uma mesa qualquer, me sentei na cadeira a sua frente. Sua petulância agora se extinguira, sua cabeça estava abaixada observando os dedos de sua mão. Agora que tinha luz para observá-lo minhas certezas sobre seu reino eram evidenciadas. Tray tinha todas as características físicas de Nouri. Seus olhos eram de verde escuro, seus cabelos de cor castanho desciam até os ombros formando grandes cachos, sua pele era clara, mas não tanto quanto as dos morados de Edyn. Ele estava extremamente magro, mas ainda sim via-se pequenos músculos definidos nos braços.
"Até quando vai ficar me encarando? Sua tiha pervertida." disse ele sem tirar os olhos das mãos. Direcionei meus olhos para o mesmo lugar.
"Como está?" Ele levantou a cabeça me olhando com um olhar confuso.
"Suas mãos" respondi a sua confusão apontando para o machucado que eu mesma fizera.
"Estaria melhor se uma louca não tivesse fincado uma adaga nela."
"Acredito que isto seja verdade." sorri de canto para ele ao qual ele retribuiu sem graça. Foi quando Amber saiu da cozinha tagarelando como sempre.
"Clint me faz um favor, volta para Tenma, já não aguento mais ouvir suas reclamações."
"Quer mesmo que eu volte? E quem irá trazer pão e biscoito para você toda alvorada?"
Amber olhou para ele e mostrou a língua, acredito que era um sinal de que havia sido derrotada desta vez. Clint por sua vez ria em triunfo. Os dois estavam tão submersos em seus próprios mundos que nem mesmo haviam notado minha presença e de Tray e quando o fizeram Amber soltou um pequeno grito.
"Pelos reinos! Que susto." disse Amber colocando a mão no coração, Clint começou a rir discretamente.
"Saudações" eu disse.
"A ti também." disseram os dois em uníssono. Fora Clint o primeiro a direcionar o olhar para o garoto sentado a minha frente.
"Saudações..." disse Clint em um tom de entonação.
"Tray" respondeu o garoto.
"Tray? Conhecido seu Ely?"
"Não exatamente. O encontrei do lado de fora e o trouxe para uma refeição."
Clint como esperado, me olhou desconfiado, mas nada disse. Amber por outro lado já foi se sentando na cadeira vazia.
"Há! Nouri certo? Entendi do porque se compadeceu do garoto. Ele é do seu reino." Disse Amber enquanto esquadrinhava Tray. Ele me olhou confuso e pela primeira vez desde que nos vimos começou a me observar. Eu por outro lado apenas dei de ombros.
"A refeição ainda vai demorar um pouco, vou trazer algo para ele enquanto isso." Disse Clint enquanto voltava para a cozinha.
"Então hivess Tray, o que o trás o Edyn?" perguntou Amber interessada.
"Hivess?" ele me olhou confuso. Então era a primeira vez que ele vinha a Edyn.
"É tratamento formal daqui, é uma forma educada de tratar um desconhecido." expliquei a ele.
"Ahh..." ele voltou a olhar para Amber ".. hum.. uma visita."
"Ele e tímido Ely. Não se parece nada com o que ouvi falar sobre os habitantes de Nouri. Nem você nem ele." dei de ombros novamente. Tray podia estar constrangido, mas acredito que isto tinha mais a ver com o fato de eu estar lhe proporcionando comida, do que esta ser de fato sua personalidade. Acho que ele não acreditava que seria tão fácil me convencer a gastar pins em sua refeição, por tal motivo, o peguei de guarda baixa. Ladrões não pediam, eles roubavam.
"O quê ouviu falar de Nouri?" perguntou o garoto.
"Poucas coisas, ouvi que é um reino quente, ao contrário deste. Também ouvi que as pessoas são..." ela se interrompeu e ficou pensativa, tentando encontrar as palavras ".. acho que posso dizer, indelicadas." ela ficou olhando de mim para Tray com medo de ter nos ofendido. E esta era outra grande diferença entre os dois reinos, o povo de Nouri não pensaria duas vezes para dizer algo para outra pessoa, mesmo se isto pudessem lhe causar desconforto.
"Indelicadas?" Tray agora olhava seriamente para Amber ao qual ficou extremamente apreensiva, como medo de realmente tê-lo ofendido. Mas no instante seguinte um alívio transparece em seu rosto porque Tray começa a gargalhar, vi então sua verdadeira personalidade se revelando novamente "Já ouvi várias formas de se referir a nós, mas indelicada é a primeira vez, acho que o pessoal não estava exagerando quando falaram que vocês eram muito certinhos." disse ele sem parar de rir.
"Não somos assim tão certinhos" Amber cruzou os braços e fez bico. Tray agora ria ainda mais.
"São sim. Mas na próxima vez pode usar, rude, malcriados, ranzinzo, selvagens, ignorantes, boçais.. eu podia passar o ciclo inteiro lhe dizendo palavras bem piores que estas, mas acho que você já entendeu o recado." Amber continuou de braços cruzados e fazendo bico, acho que ela se intitulava rebelde e ouvir dizer que era certinha, tinha sido um golpe no seu ego, se Clint estivesse aqui, estaria rindo da cara dela. "E só para esclarecer, eu não sou tímido, estava apenas admirando sua beleza." terminou ele piscando para Amber ao qual soltou os braços e riu com o elogio.
"Esqueceu de falar atirados." disse a ele, Tray apenas sorriu em resposta.
As pessoas de Nouri não eram conhecidas por serem "atirados" como eu havia sugerido, acredito que este tipo de pessoa existe em todos os reinos, independente da cultura. Mas ladrões eram ensinados a serem charmosos e galanteadores, já que tais coisas sempre podiam vir a calhar em um golpe. Mas havia todo tipo de ladrão, e cada um era ensinado a agir de forma diferente. Tray era novo, mas era bom em tudo que fazia, muito melhor que muitos ladrões que eu vira a conhecer. O que tornava a situação ainda mais estranha.
"O que aconteceu com sua mão?" perguntou Amber preocupada ao ver o pano com alguns rastros de sangue.
"Nada demais, apenas encontrou um destino infeliz com algo voador" disse ele mas sem olhar para mim.
"Algo voador? Um animal?"
"Perto disso, beeem perto" disse ele rindo, mas agora direcionando o olhar para mim.
"Nyla sabe muito sobre plantas curativas, se quiser ela pode dar uma olhada."
"Nyla?"
"Sim, ela é minha tia e dona desta taberna."
"Se ela ouvisse você dizendo isso provavelmente levaria um peteleco na orelha agora." disse Clint ao aparecer pela porta com uma bandeja na mão, trazendo biscoitos e leite.
"Provável, ela não gosta muito de ser chamada de tia" explicou Amber para Tray.
"Acho que tem mais a ver com o fato de não gostar de ser SUA tia."
"Mentira! Não acredite nesse cozinheiro mentiroso Tray"
"Você é o cozinheiro?" perguntou o garoto admirado.
"Sim, por quê?"
"Nada, pensei que todo cozinheiro era gordo." Tray pegou sua comida e mordeu o biscoito. Amber por sua vez estava gargalhando.
"Contemple seu futuro Clint Wandrs, já vejo uma leve protuberância por baixo desta camisa."
"Se eu fosse você se preocuparia mais com a sua do que com a minha, afinal você come duas vezes mais que eu."
"Naahh, ela está bem" disse Tray com o biscoito na boca.
"Já disse que gosto deste garoto? Você é meu novo preferido."
"Pronto, mais um para alimentar seu ego enorme." Clint colocou a mão na cabeça balançando-a de um lado para o outro.
"Ela é sempre tão calada?" perguntou Tray mudando totalmente de assunto, mas ainda com a boca cheia.
"Quem? Ely?" Amber olhou para mim e continuou "Na verdade, sim. Mas acho que nos acostumamos, mas ela nos ajuda muito."
"Não sou do tipo falante" direcionei o olhar para Tray.
"Percebi."
"É exatamente por isso que falo que ela não se parece nada com um habitante de Nouri, agora você..." Amber voltou o olhar para Tray "...já mudei de ideia, talvez seja mesmo de lá, és muito folgado"
"Essa palavra ai já ouvi, se saiu melhor agora Srta. certinha." Tray parou de falar e sorriu ao ver o bico de Amber e retomou a fala logo em seguida "Viveu em Nouri por quanto ciclos tiha?"
"14" respondi, mas ouvi Amber perguntando baixinho para Clint sobre o tiha, este balançou a cabeça em negativa. "Da mesma forma que vocês usam hivess e missa por aqui, para expressar formalidade, tiha é usado em Nouri, mas no sentindo contrário.É um termo informal e as vezes depreciativo para se referir a uma mulher."
"Não leve para pessoal tiha, eu não levei" disse ele dando de ombros. Mas eu sabia que tinha levado, ninguém ignora o fato de ser perfurado por uma adaga.
"Não levei, não há com o quê se preocupar"
"Então como a tiha viveu tantos ciclos naquele reino e mesmo assim é tão.." ele olhou para Amber e sorriu de orelha a orelha "..certinha?"
"Não sei, acho que sempre fui calada." a imagem do meu irmão invadiu minha mente involuntariamente. Minha mente está a percorrer memórias incovenientes novamente.
"Bom, não leve a tiha ali como base. Nouri é povoado por pessoas que não ligam para a opinião alheia, sendo assim somos totalmente brutos, mas charmosos se serve de consolo."
"É verdade." confirmei.
"Cheguei a conclusão que Tenma é o meio termo." disse Clint pensativo "Não conheço Nouri, mas pela discrição de vocês percebo que ele seria o total oposto daqui, enquanto Tenma não é nem um, nem outro."
"Sua observação faz total sentido, também penso em Tenma desta forma."
"Acredito ter aprendido mais sobre o mundo nesses últimos ciclos de sol do que em todos meus de vida." disse Amber animada.
"A conversa está muito produtiva, mas tenho que ir terminar de preparar a refeição." Clint se levantou e foi para a cozinha.
"Eu tenho que limpar o deque" disse Amber revirando os olhos. "Vejo vocês em alguns raios."
"Até mais." disse Tray.
"Vejo a ti em alguns raios." Eu disse enquanto Amber caminhava para a porta que dava para a parte externa da taberna.
"Então tiha, Nouri, quem diria?! Não é atoa que sabia de onde eu era lá na floresta."
"Qualquer um que conhece aquele reino sabe diferenciar seus habitantes."
"Bom eu não diria que você é de lá apesar dos olhos verdes. Não consigo ver seu cabelo, o que dificulta um pouco, obviamente deve ser um ninho de algum animal selvagem, algo mal cuidado que a faz mantê-lo sempre escondido."
"Algo assim."
"Sério? Alguma coisa neste mundo consegue mudar essa sua cara de coruja?"
"Coruja?"
"Sim, nunca expressa nada, fica lá só admirando e soltando uns barulhos de vez em quando." me contive para não rir com a comparação.
"Poucas coisas conseguem. São vários ciclos de prática."
"Retiro o que eu disse, você não é uma rapinante, principalmente por ter nascido em Nouri. Nenhum de nós é criado desta forma. Somos manipuladores e encantadores, você por outro lado é fria demais. Apesar que pode ter aprendido isto nos outros ciclos que não estava por lá. Não duvidaria que você seria capaz disso, o que a torna mutável, importante característica de um ladrão. Ahhhhhh... tô confuso." Tray coloca a cabeça entre as mãos. Os ladrões também eram ensinados a ler as pessoas, e acredito que não conseguir fazer isto era frustante. Principalmente para ele, que parecia ter consciência de que era bom no que fazia.
"Não se torture tanto. Não tem nada demais para saber sobre mim."
"Não me entenda mal tiha, não tô afim de saber nada sobre você, só gosto de adivinhar as coisas." disse ele confirmando minhas suspeitas.
"Imaginei."
"Entendo o cabelo mal cuidado, mas qual é a das roupas? Não tenho nenhum pista sobre isso."
"Para alguém que não quer saber nada sobre mim você pergunta bastante."
"Sou curioso, grande defeito." disse ele enquanto tomava o resto do leite que estava na caneca.
"Me sinto a vontade com elas só isso."
"Harram sei."
"E tú? Vai me dizer o que fazes neste reino sem ninguém? Ou devo presumir que isto é uma armadilha? Tem pessoas escondidas pela vila, prontos para pregar um golpe nesta taberna?" O confrontei sem delongas.
"Não, já te disse estou sozinho."
"Tú já deves saber que confiar em um ladrão é tão sábio quanto estender a mão ha um tigre."
"Tá dizendo que não acredita em mim?"
"Preciso mesmo responder?"
"Preferia quando você tava aí calada. Eu fugi. Satisfeita?" O encarei encorajando-o a continuar "Roubei uma coisa que não devia, agora estão atrás de mim, meus pais me ajudaram a escapar. E não se preocupe tenho certeza que não seguiram meus rastros, não vão me achar aqui." Disse a última frase como se conseguisse ler meus pensamentos.
Eu sabia que ele não havia de dizer o que tinha roubado, e na verdade, confesso que não estava interessada. Dei de ombros dando por satisfeita com sua explicação. Só queria garantir que meu refúgio temporário continuasse sendo um refúgio.
"E quando vai embora?" Perguntei.
"Ainda não sei tiha. Achei a vila amigável, talvez eu fique por aqui."
Antes que eu me pronunciasse Clint apareceu com a refeição e colocou em nossa mesa.
"Desejo a vocês uma excelente refeição" sem esperar nossa resposta, Clint saiu em direção a porta que dava passagem para a parte externa da taberna. Tray já estava devorando a comida.
"Não sei como pude viver 13 ciclos de vida sem conhecer o sabor dessa comida. O cozinheiro é um artista." Ele parou subtamente e olhou com censura para mim ".. nunca diga a ele que eu falei isso."
Peguei minha refeição e comecei a comer. Era coelho, estava muito bem feito, mas não se compara ao cervo da escuridão anterior.
Notas: Olá!
Tudo bom?
Nosso pininho está de volta! Espero que comecem a gostar do Tray tanto quanto eu já gosto dele!! Aproveitem!
Espero que estejam gostando da história, não apareço sempre aqui no final, mas saibam que estou lendo cada um de seus comentários!
Abraços!
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