O acordo
Estávamos sentados ao redor da fogueira, eu já estava na décima colherada da sopa de legumes de Kaydes, a comida era mesmo ruim, mas era melhor que muitas coisas que eu já havia comido, isto sem falar que era bem melhor do que passar fome. Talvez a comida dele não fosse tão horrivel, o problema é que eu acabara de ficar vários ciclos comendo a de Clint.
"Então.. o que achou?" Questiona Kaydes na expectativa. Escolho bem as palavras.
"Está melhor que certas refeições que eram servidas a mim na vila onde nasci."
"Há! Toma essa Lyan, você que tem um paladar de merda e não sabe o que é bom!"
"Claro! Meu paladar tem que ser de merda mesmo, porquê se não eu tenho certeza que nem descer a comida ia!" Kaydes joga um galho de árvore na direção de Lyan, ao qual desvia facilmente e logo depois direciona o olhar para mim. "Que lugar de merda é esse que você viveu em! Se a comida de lá é pior que a de Kaydes, acho que eles te deram lixo." Quase isso, penso comigo mesmo. Pelo menos não era frequente.
"Já que tocaste no assunto, de onde tú vens?" Arti fala comigo pela primeira vez. Quase solto as mesmas palavras que direcionei a Sely quando ela me fez a mesma pergunta, mas penso bem e acho melhor respondê-lo.
"Sou de uma vila ao extremo de Nouri, fica do lado oposto ao castelo e bem próximo ao mar grandium."
"Uma vila tranquila imagino." Ironiza ele em um tom cínico.
"Na maioria dos ciclos ela é." Arti me olha desconfiado.
"Se sua vila se apresentava tão tranquila, o que a trouxe a Edyn?"
"Não sou de pertencer a apenas um lugar, então, por quê não conhecer os reinos?" Respondo.
"Pretende voltar?"
"Ainda não me decidi, estou bem da forma que estou até o presente ciclo."
"Onde aprendeste a usar o arco Ely?" Sely intervém na conversa eliminando o clima tenso que pairava sobre mim e Arti. Sua voz era amigável ao contrário da de seu companheiro.
"Fui ensinada a usar o arco próximo aos 11 ciclos de vida, era uma maneira de ocupar meu tempo enquanto estava na vila. Mas a verdade é que naquele tempo não me interessei muito por ele. Quando completei 17 ciclos eu estava vagando pelos reinos e encontrei um hivess gentil que acabou por me ensinar tudo que sei."
"Que oportuno achar um grande mestre em uma aventura aleatória!" Ironiza Arti novamente.
"Tão oportuno quanto achar um grupo misterioso disposto a pagar uma exorbitante quantia de pins a uma arqueira desconhecida." Ouço Lyan e Kaydes abafarem um riso e Arti estala a língua claramente nervoso. Ele se levanta e sai andando em direção a floresta, se detém perto de Lyan e sussurra algo em seu ouvido.
"É mesmo? Não brinca! Isto é óbvio Arti, não tenta aparecer para mim só por que tá irritadinho." Lyan diz em resposta ao que Arti fala em seu ouvido.
"Só cumpra sua parte." Arti ignora a provocação de Lyan e entra em uma das tendas.
"Também já irei me retirar, peço perdão pela indelicadeza de Arti." Sely se vira para mim. "Ele não é sempre assim."
"Não?" Kaydes solta involuntariamente e logo depois tampa a boca. Sely o olha com reprovação. "Foi mal."
"Tenha um excelente passar na escuridão, se precisar de algo só me chamar e aquela proposta ainda está valendo!"
"Agradeço. Uma ótima escuridão para ti também." Sely se retira e vai em direção a sua tenda, que fica mais ao centro do acampamento.
"Vê se dorme! Não tô afim de acordar e ver um panda!" Lyan diz.
"Ainda estou tomando a medicação que a missa Nyla me receitou, só irei acordar se os Ligones passarem por aqui." O que são Ligones?
"Ótimo. Durma bem mini panda." Sely sorri para ele e adentra a tenda. Ficamos apenas eu, Kaydes, Lyan e o silencioso Kven.
"De quem é o turno?" Questiona Kaydes.
"Meu." Kven se pronuncia pela primeira vez.
"Na verdade.." Intervém Lyan "É meu."
"Certo." Kven se levanta e vai na direção da outra tenda disponível.
"Vá dormir Lyan." Kaydes diz sério e se levanta começando arrumar o que tirou do lugar para cozinhar.
"Não posso."
"Deixa eu adivinhar, Arti te mandou ficar pra vigiar ela." Kaydes aponta para mim. "Foi mal Ely, não estou no humor de ficar falando em códigos." Seu humor mudou drasticamente. Aceno com uma das mãos expressando que não me importo. Vejo Lyan dando de ombros. "Ahh.. pelos antigos! Que merda viu, você tá um bagaço e aquele imbecil manda VOCÊ ficar de vigia?"
"Ele ainda está acordado Kaydes." Lyan o repreende despreocupado.
"Tô pouco me lixando!" Kaydes bufa alto e respira fundo. "Certo, vou ficar também."
"Não precisa, dois cansados na alvorada será pior do que ter só um."
"Te perguntei?" Lyan ri do comentário de seu amigo.
"Acho que não vou conseguir te convencer."
"Nem tente!" Kaydes pisa forte e joga um pouco que restou da sua sopa nas raizes de uma árvore.
"O que ela te fez?" Questiona Lyan.
"Quem?" Kaydes olha para seu amigo confuso.
"A árvore. Já basta nós sofrendo com esse gosto horrível, agora quer matar a árvore? Acho que esse projeto de sopa não serve nem de nutriente."
"Vou ai te fazer engolir o que restou, maldito!"
"Você pode tentar." Lyan o provoca e o clima fica mais leve.
Os dois se provocavam mas a irritação anterior de Kaydes se fora, agora era uma brincadeira entre eles. Eu poderia dizer que os dois se conhecem desde que vieram a esse mundo, a intimidade dos dois ia além das minhas experiências, o companheirismo era notável.
Kaydes acaba de arrumar as coisas e eu aproveito para subir na árvore de minha escolha, pego Lyan a observando e depois direcionando o olhar para minhas trilhas, ele estava analisando o ângulo. Acredito que ele seja do tipo que aprende rápido.
Quando acabo de me ajeitar entre dois galhos bem grossos da árvore penduro minha aljava e o arco o próximo possível.
"Posso apagar?" Questiona Kaydes perto da fogueira.
"Por mim." Lyan responde acomodado com as costas apoiadas no tronco da árvore mais próxima a minha.
"Sim." Respondo. Kaydes apaga a fogueira e se senta no lado oposto ao de Lyan, fazendo eu ficar entre os dois.
"Tem uma coisa me incomodando."
"Tudo te incomoda Kaydes." Lyan diz em um tom mais baixo que o de antes.
"Fecha esse bico, não estava falando com você!"
"Como eu ia adivinhar? Tem uma seta na sua fala para direcionar o comentário? Foi mal está meio escuro, não consegui ver."
"Acho que vou dormir, péssima decisão ter decidido ficar!" Ouço Lyan abafando um riso. "Como eu ia dizendo, sua espada está me intrigando. Você sabe usar?" Imagino que a pergunta era para mim.
"Não." Minto novamente.
"É uma pena, seria útl se soubesse."
"Sinto muito."
"Sem problemas."
O silêncio aloja entre nós. Começo ouvir o barulho da floresta e este vem como um calmante para minha alma. A lua não brilhava tanto nesta escuridão e algumas nuvens as vezes a tampava, torço para que não chovesse, era um clima que não gostava de enfrentar. Ouço o vento batendo nas árvores e as folhas voando sendo levadas sem ter um destino, acho que viver assim era bom, pelo menos para mim estava sendo bastante satisfatório. Mas as vezes sentia falta de um lar para ficar, mas não da minha vila.
Fico ouvindo cada som por vários raios, o tempo passa e eu nem percebo. Quase pego no sono várias vezes, mas os roncos de Kaydes por mais baixos que sejam ainda me acordavam.
"Qual nome de seu mestre?" Ouço a voz de Lyan.
"Como sabia que eu estava acordada?" Questiono.
"Uma audição tão sensível quanto a sua não teria chances contra os roncos de Kaydes. Mas não se preocupe, não é sempre assim, ele só está cansado." Isto é um alívio, não sei o que seria de mim se fosse. Passaria a maioria de meus ciclos sem dormir.
"Vanther."
"Parece nome de velho."
"Nem tanto. Deve possuir cerca de 50 ciclos."
"Isto é ser velho."
"E tú? Teve algum?"
"Meu pai me ensinou, depois só me aperfeiçoei."
"Ele deve ser muito habilidoso."
"Sim." Lyan encerra o assunto. Não parecia estar a vontade de conversar sobre o pai, talvez ele fosse exigente demais, ou então um pai abusivo.
"O que são Ligones?" Questiono curiosa.
"Alguma coisa lhe passa despercebido?"
"Não com frequência."
"Faz milhares de raios que a palavra veio ao assunto e você ainda se lembra dela, você é estranha!" Permaneço em silêncio e ele continua. "Ligones é um grupo que toca na capital em dias de festas. Deve ser composto por umas 50 pessoas, acho que foi fundado uma organização de música na capital por causa deles, são bem famosos, são tantos instrumentos que o som percorre toda a capital."
"A capital parece ser festiva."
"Nos ciclos atuais é menos, mas em tempos antigos acredito que era a capital mais festiva dos três reinos."Não conheci muito das festividades de Edyn, meu interesse se aflora novamente. Me parecia sempre convidativo aprender um pouco mais.
"Se importaria de falar sobre elas?" Lyan permanece em silêncio e penso que ele pode não ter me ouvido, é quando sua voz volta a preencher o ambiente.
"Você não pode ver meu rosto agora, mas estou surpreso. Só para você saber."
"Por quê?"
"Você quase nunca diz nada, e quase nunca inicia uma conversa, parece um passo gigantesco você me pedir algo."
"Se for um incomodo, não precisa."
"Não é, só estou surpreso." Posso ouvir ele inspirando e expirando bem devagar. "Temos vários tipos de tradição, posso te dizer algumas mas apenas essa escuridão não será suficiente, mas a boa notícia é que teremos várias destas pela frente." Sinto em mim a empolgação que me preenche sempre que estou prestes a aprender mais, adquirir mais. "Mas, tenho uma condição."
"Qual?"
"Quando eu não quiser falar ou conversar, será a sua vez de me contar algo que eu não sei. Temos um acordo?" Pensei sobre o assunto e não via problema algum em fechá-lo.
"Sim."
"Bom, como você já me deu algo que eu não sabia, acho que é minha vez." Encosto a cabeça e me deito o máximo possível de forma que pudesse escutá-lo melhor. "Tem um que gosto bastante, acontece no primeiro período do início do ciclo de vida." Diz ele se referindo aos 30 primeiros ciclos de sol. "Renovo de conhecimento. Está tradição tem como finalidade começarmos o ciclo de vida sabendo mais que o anterior, então tiramos 7 ciclos de sol para partilhar e adquirir conhecimento. As ruas são enfeitadas com frases de várias pessoas, desde a mais nova até a mais velha. Elas são penduradas em um fio que percorre toda a extensão da capital, qualquer um tem o direito de pendurar seu pensamento, sua frase, seu conhecimento e tudo que desejar, com a regra de que não seja nada ofensivo e abusivo." Fecho os olhos tentando imaginar. A ideia de ter uma tradição assim transparece a ideia de criar um reino que tem um povo que pensa por si só. "Na capital temos as academias como você já deve saber, nestes dias elas fazem apresentações públicas sobre diversos temas e muitas pessoas decidem o que irão fazer no futuro graças a estas apresentações. No centro da praça montamos uma biblioteca enorme com alguns livros e pergaminhos providos das próprias academias, criamos dois ambientes, um para aqueles que irão ler, ao qual que tem poltronas, abajures e alguns estofados de penas gigantes. O outro ambiente é mais lúdico e o barulho é permitido, é onde as pessoas podem conversar sobre os livros que leram e os que querem ler e quando a escuridão vem chegando algumas peças de teatro são apresentadas, as vezes são crianças, as vezes são trupes profissionais e as vezes são amadores."
Minha mente vaga por dentre a capital e seus costumes enquanto Lyan fala sobre cada um deles. Edyn era diferente, claro que cada reino tem seus próprios costumes e por orgulho eles não costumavam copiar, mas era sempre satisfatório conhecer cada um deles. Ouço atentamente cada um dos detalhes sobre a tradição que circunda o reino durante o início do ciclo de vida, e tenho que dizer que talvez de todas as tradições que eu ouvira está fora a que mais tive curiosidade de presenciar.
"...Temos um ciclo ou dois direcionados apenas a música, esses ciclos são realmente incríveis e cheios de danças e sons que invadem cada canto da capital." Noto a animação de Lyan ao relatar as tradições, ele parecia mesmo apreciar cada uma delas, sua voz transmitia animação e admiração em cada palavra dita, percebo que poderia ficar além da alvorada apenas o escutando.
Notas: Olaaaa!
Tudo bem?
E ai o que acharam do acordo entre esses dois?
O que acharam da tradição? Imaginem uma semana inteira só falando de livros? Parece um sonho :3
Espero que estejam gostando.
Abraços!
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