A Lenda
Sai da taberna ainda estava escuro. Clint havia deixado tudo pronto no celeiro como tinha prometido. Eu já estava cavalgando pela trilha que decorei quando ainda era uma criança, rumo a um dos poucos rios que eu conhecia daquele reino.
A primeira vez que visitei Edyn, possuía apenas 6 ciclos de vida, me lembro de desenhar perfeitamente a trilha que levava a um rio congelado. Lembro-me de ficar maravilhada com o gelo, já que era a primeira vez que o vira. Ao redor do rio tinha árvores enormes e suas folhas estavam cobertas pela neve, o chão era coberto por branco com pequenos tons de verde e roxo que tentavam sobressair. Fiquei anestesiada com o ambiente como qualquer outra criança que nunca havia visto neve ficaria. Mas não expressei isso, eu não era uma criança comum e sabia disso. Olhava tudo com cuidado para que não fosse vista admirando cada parte da floresta. Qualquer tipo de sentimento era considerado fraqueza para as pessoas que haviam me criado. Estávamos em 20 adultos e 10 crianças, eu era a mais nova dentre eles e depois era Kilyel que tinha 10 ciclos. Normalmente eles não levavam crianças tão novas para viagens tão longas, mas esta em particular eles precisavam de mim, o motivo eu já não consigo mais me lembrar.
Andamos por vários raios sobre o solo branco, descobri que as cores roxas pertenciam a pequenas flores que floresciam mesmo naquele ambiente frio, e o verde a grama. As vezes eu via cores novas, como vermelho e amarelo, mas não dava tempo de reparar ao que elas pertenciam. Eu estava invisível, assim como deveria ser e estava orgulhosa de mim por o fazer tão bem. Foi então que um floco gelado caiu em meu rosto, eu não fazia ideia do que era.
Antes de sairmos de Nouri, Kilyel havia me contado tudo sobre a neve e a diferença da paisagem entre nosso reino e Edyn, alegando que estava ajudando a me preparar para o que eu iria ver. Mas ele não havia me contado sobre aquilo, parei de andar e olhei para cima e vi os flocos brancos caindo sobre mim. Ergui minha mão maravilhada com aquele floquinho já ansiosa para tocá-lo e no mesmo instante um chicote feito de couro encontrou minha mão, o frio fez com que queimasse ainda mais que o normal, o sangue jorrou pelas minhas mãos e manchou o chão branco. Olhei para lado e vi meu irmão com o chicote e apenas mexendo os lábios ele disse "fraca". Todos continuaram andando como se nada tivesse acontecido, um vulto passou ao meu lado e chutou minha perna com tanta força que cai, quando olhei pra cima era Kilyel, com o vasto sorriso de desdém no rosto. Foi então que percebi que ele havia orquestrado tudo, eu pensei que ele tinha me contado cada detalhe, então não teria mais com que me preocupar eu não seria pega de surpresa, ele deixou uma única coisa de fora e sabia que isto me faria hesitar. Andei durante três alvoradas com o pé deslocado, graças a Kilyel, e levei uma surra por deixar transparecer a dor, mas o único machucado visível era o corte na mão feito pelo chicote.
Eu ainda possuía uma sombra desbotada daquele corte na mão direita. Não me lembro de ter doído, fora apenas uma chicotada no final. Fora uma advertência e não uma punição, então não era lá grandes coisas.
Eu estava a caminho deste lago agora. Quando estava vindo em direção a vila reconheci a trilha que levava até ele. Como Edyn estava milagrosamente quente, o lago estaria descongelado, então a floresta em volta seria um ótimo habitat para animais.
A viagem duraria em torno de duas alvoradas a cavalo. A trilha estava deserta, mas era fácil de seguir, era larga e bem demarcada. É claro que seria, era um dos poucos lagos da redondeza, o acesso deveria ser fácil.
Cavalguei por vários raios, parei apenas quando o sol se foi e a escuridão veio novamente. Um pouco afastada da trilha escolhi uma árvore qualquer e prendi o cavalo. Peguei o saco de pano onde Clint tinha colocado a comida, havia comida suficiente para minha ida e volta. Peguei o pão e o cantil com água, bem no canto vi que também tinha colocado os biscoitos que ele havia assado da última vez que nos vimos. O agradeci mentalmente por colocá-los lá.
Logo depois de terminar a refeição coloquei meu arco encostado no troco da árvore, e espalhei algumas coisas bem visíveis pelo chão da floresta ao meu redor, deixando como sempre, dois caminhos disponíveis. Me deitei perto da mesma e fechei os olhos, sabendo que naquela escuridão as memórias com certeza viriam me vistar.
____***____
Sai da tenda e percebi que ainda estávamos em pleno raio de luz, a visão era a mesma de sempre, pessoas treinando com espadas e bestas e estavam lutando entre si. Esse era o nosso atual acampamento, vivíamos mudando de lugar, apesar de termos uma aldeia a qual retornar.
As pessoas treinavam com seus respectivos grupos e estes eram chamados de divisões. Minha divisão havia chegado um pouco antes da alvorada e apenas eu estava de pé.
Olhei em volta procurando Lidia, ela sempre sabia onde encontrar comida, a fome já me consumia. Avistei seus cabelos negros antes mesmo de ver seu rosto. Lidia era magra, seus olhos tinham um azul fosco e sua pele era branca, seu cabelo liso ficava na altura do ombro, suas características pertenciam inteiramente a Edyn, poderia até mesmo ser confundida com alguém da burguesia se não fosse por seus modos.
"Linus, você é tapado?! Já cansei de te dizer pra desviar desse golpe usando o quadril e não suas pernas, te derrubei seis vezes com o mesmo golpe. Sua estupidez me irrita!" Lidia gritava e ao mesmo tempo empurrava a cabeça do garoto com o pé.
"Graciosa como sempre."disse ao me aproximar. Lidia deu um pulo ao virar e se deparar comigo.
"Garota eu não ouvir você chegar." ela se virou e voltou a xingar Linus "agora saia da minha frente e vá treinar a porcaria desses seus quadris."
Linus pegou sua espada e saiu correndo, provavelmente porque tinha medo de apanhar ainda mais. Lidia olhou pra mim e me avaliou da cabeça aos pés.
"Quanto tempo?" perguntou ela, e não precisei nem mesmo pensar para saber do que se tratava.
"Não sei, duas alvoradas, talvez." respondi.
"Sua divisão é burra ou o que? Você não irá render se não comer!"
"Lidia, não precisa se dar de inocente, você sabe muito bem que não se trata de uma divisão burra."
"Tá bom, se trata de um irmão estúpido!" resmungou ela.
"Tanto faz. Você sabe onde posso pegar sem que ele perceba ? Acho que se eu ficar sem comer mais alguns raios eu irei desmaiar."
"Qual foi seu "desacato" desta vez ?" perguntou ela com a voz cheia de deboche.
"Importa?" perguntei tentando evitar a conversa.
"Quem tá roubando comida pra você sou eu. Então sim, importa!"
Lidia era o mais próximo de amiga que eu tinha, ela era grossa e impessoal, mas sempre que eu precisava ela estava disposta a ajudar.
"Algo a ver com desobedecer as ordens dele e ajudar alguém."
"Era necessário?" perguntou ela já sabendo a resposta.
"Sim, mas depois a "ajuda" furtivamente roubou uma parte da nossa comida. E foi mais um motivo pra eu ficar sem comer." Ela olhou pra mim e desviou o olhar voltando-o para o horizonte.
"Então dessa vez, você mereceu."
A verdade é que ela não roubou furtivamente a comida, eu a dei na calada da escuridão. A garota tinha aparecido na estrada enquanto alimentávamos nossos cavalos. Ela puxou a capa do meu irmão e pediu um pouco da comida dos cavalos, estava sozinha e era pele e osso. Dizia que havia perdido os pais e que precisava alimentar os irmãos mais novos, ela mesma parecia ter uns 12 ciclos, tendo assim o mesmo que eu. Meu irmão levantou o pé para chutar o rosto da garota, nesse momento eu a peguei e desviei nós duas do chute. Ele disse para eu soltá-la, sussurrei para a menina correr e voltar naquele mesmo lugar quando fosse escuridão. Ela correu e meu irmão ficou furioso, ele só não fez nada porque sabia que não poderia lutar contra mim, ele não conseguia mais me vencer. Quando foi escuridão peguei uma boa parte da comida e a dei. Quando todos levantaram ele percebeu que faltava comida e acusou a menina de tê-lo roubado, e disse que a culpa era minha, pois eu a tinha visto mais cedo e a deixei escapar. Ele sabia que ela não tinha roubado, nada passava pela minha guarda, mas ele preferia dizer que foi roubado ao invés de dizer que eu passei por cima de sua autoridade como líder da divisão. E assim fiquei proibida de comer até que ele permitisse.
"Sim, eu sei." assumi sabendo que a punição tinha sido justa, pelo menos desta vez.
"Seu irmão já te odeia. Não sei porque você ainda o provoca. Ele faria isto mesmo sem um motivo como este." disse ela com um tom de voz neutro.
"É exatamente por isso que eu faço o que eu quero. Se serei punida por algo, que seja ao menos por uma razão plausível." conclui.
Lidia ergueu o olhar e me esquadrinhou sem demonstrar o que se passava na sua cabeça. Deu de ombros e me guiou até uma tenda afastada do acampamento. Ela saiu da tenda e me deu um saco e disse:
"Isso é tudo que posso te dar sem que ninguém perceba."
"Obrigada." virei as costas e dei de cara com meu irmão com um sorriso de desdém no rosto.
"Eu sabia que viria procurá-la. É muito tempo para ficar sem comer, tinham certeza que não aguentaria."
Meu estômago revirou, já não sabia mais se era pela fome. A verdade é que havia regras entre nós, poderíamos lutar uns contra os outros livremente, desde que fosse nas mesmas condições, ou seja se um estivesse armado o outro também deveria estar. Se um estivesse machucado antes da luta o outro também deveria, mas havia formas de castigar alguém e isto acontecia quando se desacatava ordens ou então era considerado como uma forma de se educar. Ele não lutaria comigo, pois sabia que perderia, como ele mentiu sobre a forma que a comida fora levada, não teria como me bater e dizer que era para me educar na nossa cultura. Então só restava a última opção.
Eu podia ser mais forte mas ele era mais astuto. Sempre fora, eu estava com tanta fome que não pensei que tudo era um plano. Claro que ele não deixaria eu enganá-lo daquela forma.
"Lidia.." ele começou a falar e eu o interrompi.
"Ela não tem nada a ver com isso Kazin, já que não sabia que você tinha me proibido." ele analisou bem e olhou para Lidia.
"Não sei o que está acontecendo, só estou dando comida para ela, pensei que estava com fome por ter tido uma longa viagem." respondeu ela o mais desinteressada possível.
"Deixe-me esclarecer então. Ela me desobedeceu e por isso ficou proibida de comer até que eu ordenasse. Você realmente não sabia de nada !?" perguntou Kazin.
"E eu lá tenho cara de quem quer apanhar por alguém Kazin ? Ainda mais por uma criança." respondeu Lidia sem nenhum resquício de arrependimento.
"Não criamos crianças aqui! Criamos pessoas que possam lucrar." Kazin analisou bem Lidia e concluiu "Você não seria burra o suficiente para ajudá-la. Vamos!" ele pegou meu braço e me puxou.
Não precisei olhar pra trás, sabia que não faria diferença Lidia já estaria longe dali, é claro que eu já esperava que ela fizesse aquilo. Não é como se alguém fosse apanhar por mim.
Ele me levou até a tenda mais próxima e me empurrou, pegou o chicote e o estalou contra o chão.
"Tire a blusa irmãzinha. "
A dor veio aguda e dilacerante.
Acordei com o barulho de um galho se partindo, eu estava suado frio e por questão de poucos raios eu havia me esquecido do porquê. Continuei fingindo que estava dormindo para ver se o barulho tinha sido apenas minha imaginação. Foi quando ouvi algo perto do cavalo, peguei minha adaga que ficava na lateral da minha mochila e a lancei na direção do barulho. Um grito invadiu meus ouvidos no mesmo instante em que a adaga fincou no alvo.
_________________***________________
"Sua louca! O que pensa que está fazendo tiha?" perguntou o garoto.
Tiha? Não era um termo muito comum em Edyn. Mas eu o conhecia muito bem, ele era usado em conversas informais. Dependendo da forma como era falado podia ser interpretado até mesmo como um termo depreciativo.
"Sinta-se com sorte, a única coisa que fiz foi lhe ajudar."
"Ajudar!? Sua ideia de ajuda é extremamente diferente da minha, tiha. Na verdade tenho certeza que ninguém pensa que lançar adagas nas pessoas seja uma ajuda." respondeu ele enquanto enfaixava a mão com um pedaço da própria blusa.
"Talvez a ajuda se materialize na parte em que alguém tenta roubar meu cavalo, e mesmo assim eu ainda tenha a bondade de tirar a adaga da sua mão invés de enfiá-la no seu coração."
"Buff! Precisava rimar!? Exibida!"
"O que faz na floresta sozinho? E ainda por cima longe de seu reino?" perguntei a ele enquanto ele ainda encarava sua mão.
"Não é da sua conta! E como você sabe que não sou de Edyn? "
"Acho que seu comportamento por si já diz tudo. Você é de Nouri. Mas é o reino mais distante daqui, e um pininho barulhento como você não chegaria aqui sozinho."
Na verdade ele não fora barulhento. O galho o entregou, se não fosse por isso provavelmente ele teria levado meu cavalo embora.
"Pininho? Quem você acha que é para me chamar de pininho ? Tenha respeito sua tiha ranzinza! Já sou quase do seu tamanho e tenho 13 ciclos." concluiu ele nervoso.
Enquanto Edyn era um reino cordial, Nouri era seu exato oposto. Era um reino mais pobre e também mais bruto em todos os requesitos. As pessoas eram briguentas e a maior parte do vocabulário era composto por palavras extremamente ofensivas.
Olhei para o menino e vi que ele era mesmo uma criança, uma provavelmente criada por ladrões. Mas ladrões andavam em grupo, o que não fazia sentido algum.
"Onde está o resto dos rapinantes?" ele olhou para mim com os olhos arregalados.
Ladrões nunca gostavam de ser chamados de ladrões. Então eles se alto batizavam de rapinantes. Chama-lós assim era o mais próximo de respeito que alguém podia prestar ao estilo de vida deles. Mas é claro a maioria das pessoas não o fazia. Ladrões eram ladrões, para muitos não tinha respeito nenhum nisso.
"Sou só eu."
"Entendo." Fui até minha mochila e peguei um frasco âmbar e joguei para ele, que pegou sem hesitar.
"O que é isso tiha?"
"Para sua mão. Se não passar irá infeccionar. Troque a bandagem pelo menos duas vezes a cada alvorada e passe esse líquido quando o fizer. Eu tenho que ir. Bom passar pela escuridão."
Ele olhou para o frasco e não disse nada. Peguei minhas coisas e soltei o cavalo da árvore. Olhei mais uma vez para o garoto e montei no meu cavalo. Enquanto eu cavalgava o ouvi gritar.
"Ei tiha você deixou algo cair!"
Ri comigo mesma e me peguei imaginando que tipo de ladrão tentaria avisar que alguém havia perdido algo. Continuei minha cavalgada rumo ao lago.
________***________
Cheguei ao lago bem antes do que eu imaginava, tinha subestimado o cavalo de Nyla e a oportunidade de cavalgar sozinha. As vezes que vim até o lago foram com no mínimo vinte pessoas, e viajar em grupo era mais demorado. Já era escuridão quando cheguei. O clima estava morno e aconchegante. Aproveitei e escolhi um lugar cercado por árvores, deixei o cavalo beber água e logo depois o prendi.
Observei as redondezas e não vi ninguém nas proximidades. Tirei minha roupa, desenrolei o pano que prendia meu cabelo e entrei no lago. A água estava fria, tomei coragem e mergulhei água a dentro. Quando voltei a superfície recobrei o fôlego e repeti o ato. Fiz isso várias vezes, até me cansar e decidir apreciar o céu. Tinha uma quantidade razoável de estrelas e a lua era um fino feixe de luz. Muitas lendas haviam se perdido conforme o tempo se passou, mas me lembro perfeitamente de uma sobre a lua.
A lenda contava a história de uma menina que possuía cabelos cor de prata, ela tinha o dom de guiar e curar as pessoas. Ela ajudava a todos, mas isto lhe gerava um custo, toda vez que seus poderes utilizava, sua saúde piorava. As vezes até mesmo de cama ficava.
Sua família tentou fazer com que ela parasse, mas seu coração era cheio de amor, ela tinha prazer em ser a luz para aqueles que necessitavam de ajuda.
Até que um dia conheceu um menino, ele era alegre e cheio de energia, dizia que não precisava de sua magia, mas sim da companhia. Eles brincavam todos os dias e viviam um pelo outro sem precisar da magia.
A notícia de que existia uma garota especial em outro reino se espalhou e a inveja se apoderou de muitos. Numa terrível escuridão a vila foi atacada, e para proteger a menina a vida do garoto foi roubada. Ela chorou fortemente, pois ele era o único que ela nunca havia curado, mas seu ferimento era grave e por isso sua vida foi trocada. O menino acordou e viu o que ela tinha feito e nos últimos momentos ela disse que não podia mais curar mas que para sempre o iria acompanhar. Naquela escuridão uma esfera brilhante apareceu no céu e ele sabia que era a forma dela de a todos continuar a ajudar, dando luz ao caminho que a escuridão ia devorar.
Quando viva, ela se cansava, da mesma forma a esfera as vezes desaparecia para recuperar sua magia, e aos poucos seus poderes voltavam e uma esfera cheia completava. Todas as noites o garoto para ela olhava e seu nome balbuciava. O tempo se passou e os outros proclamavam que era Lua que se chamava.
Nunca se soube se era verdade ou não, mas acho que esta é a grande charada de uma lenda. Muitos diziam que as vezes via uma menina pequena com os cabelos pratas em grandes momentos de necessidade e por essa razão a lenda continuava viva. Mas eu não me importava qual era a origem de tudo aquilo, tudo no céu era mágico ao meu ver. Fiquei contando as estrelas e memorizando algumas delas, eu já havia decorado muitas de suas localizações e até mesmo alguns desenhos que formavam. Fiquei no lago até começar a tremer, quando sai peguei minhas coisas e após me secar coloquei minhas roupas. Penteei meus cabelos com os dedos e o sequei com o mesmo pano que havia secado o meu corpo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro