Capítulo 24
"Toda a dor e verdade eu uso como uma ferida de batalha
Tão envergonhada, tão confusa.
Eu estava quebrada e machucada.
Pois agora sou uma guerreira,
agora tenho uma pele mais grossa.
Sou uma guerreira, sou mais forte do que eu já fui.
E a minha armadura é feita de aço, você não pode entrar.
Há uma parte de mim que não consegue voltar.
A garotinha cresceu rápido demais.
Bastou uma vez, eu nunca vou ser a mesma".
Warrior – Demi Lovato
Foi um alívio quando finalmente tive alta do hospital depois de permanecer internada nele por alguns dias, e melhor ainda foi ter voltado para minha casa e ser paparicada pela minha mãe, quando estamos fragilizados não há nada melhor do que o colo da nossa mãe e sua compreensão. Tomar um banho no meu banheiro e descansar na minha cama, apesar das lembranças do que houve ali ainda serem recentes.
Concordei com o pedido da minha mãe em retomar a terapia ainda que a contragosto, mas se ela acreditava que realmente seria o melhor para mim, eu não ia discutir depois do que causei a ela.
Deletei todas as minhas contas das redes sociais naquele mesmo dia em que iria desaparecer, só não exclui o what'app por que tinha deixado gravados alguns áudios que minha mãe iria escutar quando fosse procurar por repostas, eles foram enviados para um número antigo dela.
Não podia deixar que minha mãe soubesse que eu me sentia com raiva por não ter dado certo, ela jamais me perdoaria se ouvisse isso de mim. Mas essa era a verdade, era assim que me sentia por dentro, oca, vazia, sobrevivendo no piloto automático.
Em poucos dias iria retomar a escola e com certeza a essa altura do campeonato todo mundo devia saber o que aconteceu comigo, especialmente por que Cat me confessou que discutiu com o Caio quando soube da minha tentativa e o Noah também o enfrentou e revelou a verdade, portanto, a escola com certeza devia ter conhecimento do que eu fiz e iriam me infernizar por isso.
Eu ainda tinha o resto do segundo ano para terminar e finalmente ir para o terceiro, mas nesse momento não tinha mais certeza de nada, eu caminhava em direção a algo obscuro, estava cada vez mais perdida em mim mesma.
Se eu já tinha um jeito meio melancólico de ser, agora isso devia estar potencializado e eu não faria o menor esforço para mudar isso por que não tinha mais forças. Mamãe acredita que eu tenha voltado a ter depressão como tive quando meu pai foi embora e nos abandonou, que o bullying teria sido o gatilho que desencadeou isso e quer me acompanhar na terapia, mas eu não quis ser um estorvo para ela, e lhe garanti que minha amiga faria esse papel e lhe colocaria a par de tudo.
Ainda consigo me lembrar do desespero dela ao falar com meu pai depois de tantos anos por que ao parecia ela devia ter contado a ele, e quando melhorei ele deve ter ligado em busca de notícias, que engraçado isso! Ele nunca ligou nos meus aniversários ou nos natais, simplesmente esqueceu de mim, e agora que eu quase morri ele resolve dar sinal de vida e que aparentemente se preocupa.
Eu ouvi a conversa deles no quintal de casa na primeira noite em que voltei do hospital, mamãe chorava e dizia que não queria me internar, só faria isso se houvesse mais uma tentativa ou algo parecido.
E imaginar que ela pensou nessa hipótese me magoou um pouco, eu já não tinha concordado em fazer a droga da terapia, o que mais ela queria? Foi naquele dia que explodi com ela como nunca fiz antes, tive um ataque de raiva e joguei o celular dela longe.
" Você não vai falar com esse desgraçado que deixou a gente sem eira nem beira! Ele não merece saber se eu tô viva ou morta. Eu o odeio! Se ele morrer eu não vou sentir falta. Ele que se vire com a sua nova família. Eu toquei a minha vida em frente como ele fez, então por que mexer nessa ferida agora? Entendeu, Mãe? ". Ela arregalou os olhos pela minha reação inesperada, abriu a boca e colocou as mãos sobre seus lábios estupefata pela minha atitude agressiva.
" Ele precisava saber, Estela. Ainda que tenha feito mal a nós, ainda é seu pai e eu não podia esconder isso dele.".
" Se eu tivesse morrido nem mesmo assim queria que ele se aproximasse de mim. Ele não me ama, então ótimo! Que se preocupe com sua mulher e suas novas filhas. Eu já enterrei meu pai quando eu tinha sete anos".
" Você quase quebrou meu celular, olha isso! A tela até trincou. Nunca te vi assim".
" Há coisas que a gente engole por muito tempo, dona Fátima. Mas um dia de tanto encher transborda, sinto muito pelo meu ataque, mas a culpa é sua por ter falado com ele.". Estava com tanta raiva que dei um soco na porta e o estrondo que isso causou assustou ainda mais a minha mãe.
Sentindo vergonha pela minha reação explosiva eu dei as costas a ela, corri e me tranquei no meu quarto e ali chorei até ficar exausta e dormir.
Infelizmente aquela não foi a primeira vez em que agi com agressividade com ela e me machucava saber que eu a feria sem querer, eu me tornei uma pessoa ríspida, do tipo que responde com quatro pedras na mão.
Na primeira consulta com a terapeuta escolhida por ela relatei tudo que aconteceu e a doutora Marisa Fernandes foi bastante gentil e compreensiva, calma e fez com que me sentisse acolhida em seu consultório naquela tarde ensolarada de setembro. Eu não estava animada para a consulta, mas tentei disfarçar o quanto pude quando Cat chegou em minha casa para me buscar, e irmos juntas conforme o combinado. O edifício onde a clínica Aba fica localizada é no bairro Green Valey em Alphaville, e pelo que minha mãe me contou é uma das melhores clínicas próximas de nós. A psicóloga era experiente nesses casos e ela acreditava piamente que iria me ajudar.
Ao chegarmos no prédio notei que ele era elegante e com vidros azuis marinho espelhados por fora, e na recepção fizemos nosso cadastro para ter autorização para subir por que ali também haviam outras empresas em outros andares. A clínica ficava no quarto andar, no número 500.
Pegamos o elevador e a Cat se estremeceu de frio pelo ar condicionado, então desamarrou a blusa de moletom vermelha da cintura e a vestiu.
— Não fique tão nervosa, amiga. Acho que a doutora será bem simpática pelo que sua mãe me contou quando conversou com ela pelo telefone e lhe pareceu bem solícita. — assenti e sorri para ela.
Em poucos minutos chegamos ao andar da clínica que ficava no fim do corredor, e lá fomos atendidos por uma gentil recepcionista que se chamava Nathaly. Ela era branca e ruiva, e foi bastante simpática conosco. Após preencher a guia para atendimento pelo convênio da minha mãe, ficamos sentadas nas poltronas marrons aguardando que eu fosse chamada.
Meia hora depois meu nome foi dito e fui encaminhada para a sala da terapeuta.
Marisa era loira, seus cabelos eram curtos na altura dos ombros em um elegante corte Chanel, os olhos verdes, usava uma blusa social branca de seda e muito elegante, uma calça preta pantalona e um belo salto preto scarpin. Ela me pediu que deitasse no divã bege se eu me sentisse mais a vontade assim, e eu o fiz.
Cat sentou numa cadeira um pouco distante de nós por que queria que eu me sentisse tranquila para falar e fingisse que ela não estava ali, pois só viera por que eu pedi que me apoiasse.
— Como está, Estela? — perguntou Marisa enquanto pegava sua prancheta sobre a mesa e se preparava para me atender.
— Vou bem na medida do possível.
— Descreva melhor isso.
— Quer que eu seja mais específica?
— Acho que a sua amiga não vai se importar e se vocês se conhecem tão bem como parece, garanto que não há nada que você queira esconder dela, certo?
— Somos melhores amigas, mas nem todo mundo conta tudo para seus amigos.
— Quero entender como realmente se sente, e como vamos proceder na terapia, preciso te conhecer bem para escolher o método que vamos usar, a fim que você alcance melhoras significativas no seu caso.
— Como minha mãe deve ter falado previamente quando conversou com você, moramos apenas eu e ela desde que meu pai foi embora quando eu tinha seis anos, e isso me deixou bastante desestabilizada, depois tive alguns problemas na escola com apresentação em público e fiz acompanhamento para tratar a ansiedade e segui tomando a medicação, não faz muito tempo que eu tinha parado a terapia quando achei que estava bem, e só usava os remédios em caso de alguma crise. Acontece que tudo ia dentro da normalidade no primeiro ano da escola que eu estudo, até que neste ano as coisas mudaram quando me aproximei de um garoto, a gente se apaixonou, eu acho, pelo menos da minha parte foi real. — não pude evitar que lágrimas escorressem ao ter que falar daquela ferida. — Mas para ele parece que não foi bem assim, eu só fui uma aposta, o típico da garota nerd que gosta do cara popular, e ele a usa e descarta, sabe? Em seguida uma foto da gente na primeira vez que dormimos juntos vazou na internet, eu estava dormindo com uma camisa dele, era muito comprometedora, e isso me rendeu perseguição e comentários ofensivos na escola e na internet, e eu não aguentei tanta pressão e acabei entrando em desespero, me desculpa. — mais uma vez minha voz ficou embargada e eu chorei. Cat ficou comovida e veio me abraçar.
— Por favor, espere uns minutos até eu possa acalmá-la, dona Marisa. Aí ela continua o relato. — pediu ela. A psicóloga aquiesceu e foi pegar um copo de água para mim.
Após uns cinco minutos pelo que percebi no relógio branco pendurado na parede próxima a janela com persianas em tom claro da sala, voltei a contar a minha história até o momento da tentativa de suicídio.
— Já tinha pensado em suicídio outra vez? — quis saber a psicóloga.
— Não, essa foi a primeira vez. Eu fiquei pesquisando um tempão na internet quais os métodos para fazer isso, mas eu queria algo que não fosse tão doloroso como enforcamento ou cortar alguma veia, então por isso escolhi a alta dosagem de remédios.
— Sabia que a cada pessoa que se suicida ou tenta o suicídio, em torno de três a cinco pessoas próximas a ela são afetadas e vão precisar de acompanhamento psicológico? Os sobreviventes são impactados e muitos acabam desenvolvendo depressão também pelo cansaço ou pela busca constante de respostas para o ato. É um efeito dominó nas famílias.
— Eu não sabia disso, doutora. Não era minha intenção.
— Eu acredito nisso, mas já atendi outros pacientes adolescentes com casos parecidos com o seu e seus familiares foram afetados pelo que houve. Toda família sofre quando um dos membros tem algum transtorno psicológico.
— Como assim? O que quer dizer com isso?
— Pelo que a sua mãe me contou e pelo que eu ouvi de você, tenho uma suspeita de diagnóstico, mas eu preciso antes confirmar isso com um psiquiatra por que sozinha não posso dar seu diagnóstico em casos de possíveis traços de um transtorno como o de personalidade limítrofe ou boderline. A sua mãe descobriu que você tem cortes nas costas, ela viu sem querer um dia desses, e pelo que ela imaginou não se referia a machucados por acidentes quando encontrou lâminas na sua gaveta, o que significa que você anda se cortando, mocinha. E isso é muito sério.
— Não acredito que ela me espionou!
— Ela fez isso para o seu bem, preciso que você passe com um psiquiatra para te acompanhar, passar a medicação e aí eu entro com a terapia comportamental e cognitiva. Vamos trabalhar juntos para te ajudar e você vai sair dessa.
— Eu tô ficando doida então?
— Não, se você realmente tiver isso como desconfio, vamos te explicar os sintomas e tentar entender quais se aplicam ao seu caso e como vamos proceder para te dar auxílio no tratamento. Não se preocupe. Hoje é só a primeira consulta para eu entender mais sobre você, logo mais as nossas conversas vão fluir mais, não tenha medo de expressar quando sentir raiva ou tristeza por que isso faz parte de você e não deve reprimir suas emoções. Eu estou à sua disposição caso precise de mim pode me enviar alguma mensagem no celular.
Ficamos o restante do tempo conversando sobre os sintomas que eu apresentava de depressão e como precisava aprender a me reconhecer a partir de agora para lutar contra os pensamentos negativos e intrusivos que ela identificou em mim. E eu necessitava cada vez mais me apegar a esperança de dias melhores para seguir em frente.
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