Um respiro pacífico: em um dia qualquer 13:00h.
O aeroporto estava cheio de indivíduos raivosos, pois a maioria dos voos estavam atrasados. As pessoas estavam impacientes e gritando para extravasar a raiva, porém, vociferavam com os atendentes dos guichês e seguranças; pessoas que, por sua vez, não tinham nada a ver com os atrasos.
Hermes, sentado em um banco, segurava a alça de sua mala em uma mão e um folheto com roteiro de viagens na outra. Estava ali seu itinerário, o qual ele prometeu seguir à risca. Suas vestes coloridas de gosto duvidoso e o colar de flores artificiais denunciavam o destino de sua viagem. Já as vestes pretas da mulher ao lado poderiam facilmente passar a impressão errônea de que se tratava de sua segurança particular; o que geralmente acontecia, para o desgosto dela.
Pel Amana estava ao lado dele observando as distintas reações e feições das pessoas, era parte de seu trabalho entender como seres humanos reagem em determinadas situações, sendo as que geram estresse as mais interessantes. Ela se aproveitava da discrição dos óculos escuros para fixar em determinadas pessoas sem passar pelo constrangimento de ser percebida como bisbilhoteira.
— Pel? — Hermes tentou captar a atenção da mulher pela décima vez.
— Ah, oi... Desculpa, me distraí. — Ela ergueu as sobrancelhas e franziu o cenho enquanto se desculpava.
— Eu sei. Olha só, estão chamando, é minha vez de embarcar.
— Beleza. Cuide-se, por favor. Ligue se tiver problemas e não esqueça... — Ela fez um breve suspense com a insinuação de um riso matreiro nos lábios.
— Eu sei. Eu sei. Ficará tudo bem, são só férias, tá mamãe? — disse ele rindo com seu próprio deboche.
— Ia dizer pra não esquecer de lavar atrás das orelhas! — Pel zombou lhe mostrando seu dedo médio.
Ele abanou a mão com movimento para fora, em gesto de dispensa e se levantou de onde estava sentado a tanto tempo que já tinha as nádegas dormentes. Depois do abraço de despedida, Hermes, o grande assistente, rumou para o portão de embarque sob os olhos cuidadosos da parceira. Ela esperou o avião decolar para deixar o aeroporto e rumar para casa, pois aquela noite era especial, havia uma apresentação à qual queria ir, precisava relaxar e aquela parecia ser a oportunidade perfeita.
A noite caiu e Pel Amana podia ser vista na plateia de um espetáculo. Era uma peça musical encenada pelo famoso dançarino chamado Hassan Mubarak. O homem em questão estava sobre o palco vestindo calças brancas largas e um colete azul com bordas douradas e dançava divinamente, cada movimento era feito com maestria e arrancava ora suspiros e ora lágrimas de emoção dos espectadores compenetrados, pois, aliada à performance corporal de movimentos incisivos, leves e majestosos em sua execução ele inseria um pouco do seu talento como cantor.
A voz grave assumiu um tom piedoso, que penetrava na alma, durante os passos de dabke, momento em que ele se movia de maneira rítmica sob um feixe de luz com o restante do palco em total escuridão. Em determinada altura ele parou olhando o público e as luzes se apagaram, o som de um violino magistralmente tocado ecoou na escuridão, o som era lamurioso com notas prolongadas, logo ouviu-se uma flauta unir-se à melodia e então vagarosamente as luzes se acenderam para tonalidades quentes revelando sobre o palco Hassan já vestido com um belo terno preto, com uma rosa vermelha presa na lapela. Mesmo com o rosto inclinado para baixo era possível perceber suas feições quase completamente simétricas, de traços retos e um pouco finos. Perdia-se, porém, o olhar de grandes íris escuras, ornado por longos cílios que trabalhavam como molduras para os olhos grandes e intensos.
Do outro lado do palco havia uma mulher cativante em um vestido vermelho esvoaçante, trazia os braços e as orelhas muito adornados por argolas douradas que contrastavam com sua pele parda com subtom de oliva. Ela também transmitia a intensidade e o drama dos quais a canção falava. Ambos aproximaram-se do centro do palco com os olhares fixados em pontos distintos da plateia e caminharam um ao redor do outro, fitando fixamente os respectivos parceiros de dança, como se através do olhar temessem dizer algo e interromper o outro, que aguardava o momento oportuno para abrir o coração.
Pel Amana amava tango e ver uma apresentação daquele estilo, executada por um astro como Hassan, que executava com maestria sua performance, era um prazer inigualável. Ela olhou rapidamente para os lados e percebeu algumas pessoas enxugando os olhos marejados. Sorriu discretamente e mirou os dançarinos envolvidos um pelos braços do outro.
Sentiu um toque em seu ombro, virou-se imediatamente para o lado e notou uma pessoa que antes não estava ali. O capuz preto cobria todo o rosto, mas deixava para fora parte dos cabelos cacheados de cor clara. As unhas arredondadas e caprichosamente aparadas repousavam sobre um envelope branco pousado no colo da misteriosa pessoa. Pel Amana identificou a pulseira propositalmente visível no pulso esquerdo, os padrões geométricos eram específicos demais para serem repetidos por qualquer pessoa.
— Mas será possível? O que faz aqui? — sussurrou a detetive inclinando-se para o lado da mulher ocultada pelo capuz.
— Poderia dizer que é um prazer revê-la, mas estaria mentindo — cochichou a mulher virando o rosto para ela.
As feições estavam diferentes desde a última vez que se viram, mas a detetive ocultista também havia mudado. Ambas se observaram por um tempo e relaxaram seus corpos nas poltronas novamente. Pel Amana sabia que Angra não estava ali por nada, deveria ser algo urgente ou importante, mas queria terminar de ver a apresentação, mesmo sob a pressão psicológica que a presença da mulher exercia sobre ela. Nitidamente incomodada, a detetive remexeu-se no assento e bufou antes de levantar.
Caminhou pelo espaço entre as poltronas até chegar ao corredor, seguida de perto pela visitante indesejada. Abriu as portas duplas da sala e alcançou o saguão principal, parou voltada para Angra e enfiou as mãos nos bolsos para expressar o quanto estava descontente com sua presença. Infelizmente sua experiência prazerosa de assistir ao show tinha sido interrompida.
— Fala de vez o que você quer. Está pensando em entregar currículo para ser a minha sombra?
— Pegue! — disse a mulher entregando-lhe o envelope.
Pel Amana abriu o papel apressadamente, quase rasgando, fazendo o som ecoar pelo corredor, e olhou o conteúdo. Sorriu antes de despejar sobre sua mão em concha três sementes achatadas e brancas.
— Isso é uma ameaça?
— Talvez! — disse a mulher sorrindo.
— Olha aqui, Angra... — os ombros de Pel Amana assumiram uma postura tensa enquanto sua voz começava a indicar um perigoso alerta.
— Pode chamar de Vanessa, afinal você também atende por codinomes, não é? — Parecia um ato de proximidade, mas era claro que Angra queria amainar o ânimo da detetive.
— Que seja! O que quer com isso, Vanessa? — Pel suspirou, exasperada enquanto mostrava as sementes.
A mulher sorriu e retirou o capuz revelando sua cabeleira castanha, tal como os olhos delineados com uma fina linha curva que terminava numa ponta dupla, sendo que uma delas quase tocava a sobrancelha. Ela olhou ao redor para se certificar de que ninguém as veria ou ouviria e quando fitou a detetive mostrou seus olhos em chamas.
— Você me tirou Tsukuyomi e nunca se lamentou por isso — cobrou ela.
— Olha só, a balança está um pouco desequilibrada aqui, ele matou a minha esposa. E não fiz nada contra você, foram apenas efeitos colaterais.
— Uma ova! Você me deve por isso e eu vim cobrar. — Angra cruzou os braços na frente do peito e começou a bater um pé aceleradamente.
A detetive suspirou por longos e intermináveis quatro segundos e a encarou por algum tempo, os olhos da mulher queimavam como uma fogueira da Inquisição, mas seu rosto mostrava parte da tristeza que não conseguia esconder. Ela meneou com a cabeça e perguntou:
— O que eu preciso fazer pra ficar quite com você?
— Mate Hassan Mubarak.
As palavras ecoaram no fundo dos ouvidos da detetive, que teve de se certificar diversas vezes se não havia ouvido errado. Ela tentava esconder o espanto e a confusão, mas Angra estava diante dela aguardando sua resposta e Pel sabia que a mulher não iria embora sem um acordo ou sem uma promessa de vingança.
— Por que deveria fazer isso? Ele é um bom homem. Tá... meio galinha pelo que dizem as páginas virtuais e revistas de fofocas, mas elas sempre exageram.
— Ele é pior do que imagina e está destinado a fazer algo terrivelmente cruel. Eu vi no fogo, Pel Amana, e o fogo não mente.
— Posso saber o que é?
— Não. Dessa vez vai ter que confiar em mim. Só precisa saber que a segurança desse mundo depende da morte dele. — A afirmação de Vanessa foi categórica e a chama em seus olhos apagou-se lentamente.
A detetive não percebeu nem uma tremida hesitação na voz da mulher que estava determinada a passar o recado. Apesar da mágoa, Vanessa nunca havia feito nada contra a detetive depois dela ter aprisionado seu amado, então não encontrou motivos para duvidar e negar a missão.
— Tá legal, mas é o seguinte... Depois disso, acabam-se nossas diferenças, tudo bem? — A mulher concordou com um aceno de cabeça. — Certo.
— Só mais uma coisa... Ele é ardiloso, se não o matar logo, ele vai te confundir. Ele faz isso muito bem.
Pel Amana acenou positivamente e a mulher a deixou no saguão e rumou para a avenida, quando a detetive voltou à sala, a apresentação já havia terminado e o elenco agradecia ao público.
De volta ao seu escritório de investigações ocultistas, Pel Amana buscava na internet, e com seus contatos, toda e qualquer informação sobre o homem que deveria matar. Para que o fizesse bastaria um disparo e tudo estaria terminado, mas ela queria entender os motivos da missão, queria saber pelo que estava lutando; afinal, as mídias sociais e as revistas de fofocas mostravam Hassan como um artista talentoso, um homem intenso que vivia muitos relacionamentos, um pouco extravagante e ostensivo, mas também um grande filantropo que atuava como voluntário em abrigos para crianças órfãs.
Os contatos na polícia lhe disseram que o homem tinha a ficha limpa, apesar de algumas infrações de trânsito e multas por perturbação da paz com suas constantes festas, nada havia em seu histórico criminal que justificasse uma desconfiança.
Através de uma extensa pesquisa e cruzamento de dados a detetive descobriu que Hassan era filho de um poderoso xeique que residia em Dubai. Hakim Mubarak não era exatamente o exemplo de integridade, seus envolvimentos com distintos braços da máfia lhe rendiam milhares de dólares por dia, suas empresas estavam sempre no alvo das mídias por conta de constantes denúncias de trabalho escravo e inserção de substâncias nocivas em produtos destinados ao público infantil. No entanto, aparentemente Hassan só entrava em contato com o pai nas datas religiosas indispensáveis e desde que se mudara para a América do Sul para viver seu sonho, não tivera mais contato com as empresas da família. O filho do xeique havia estudado química e até feito um mestrado em neuroquímica, mas deixou tudo de lado quando seus vídeos de dança viralizaram e foi convidado para integrar um dos maiores grupos de dança argentinos, desde então, vivia como um artista playboy colecionando matches e aparições em capas de revistas.
Pel Amana estava cansada de reler as mesmas informações em todos os sites, havia algo de podre rondando aquele homem e ela precisava saber o que era antes que ele fizesse à humanidade um mal irreparável; sendo ele filho de quem era, ela não achava difícil disso acontecer. Com um pouco de incentivo certo, leia-se monetário, conseguiu com alguns hackers as informações que não apareceriam na superfície da internet. Hassan possuía algumas empresas registradas em nomes falsos ou de pessoas que emprestaram seus nomes para ele, a maioria era do ramo farmacêutico e enviava medicamentos para países pobres da África.
Desgraçado!
Não contente com as informações de sua parte física, queria saber um pouco sobre a espiritualidade do homem, mas para isso teria de usar métodos um pouco incomuns e como tinha pressa, decidiu apelar.
Em sua imensa coleção de itens mágicos havia uma garrafa especial, a qual prendia Ifrit, um jinn perverso que assombrou as terras árabes séculos atrás. Era o fofoqueiro perfeito para a ocasião. Ela abriu o armário e pegou o vasilhame encarando os olhos negros com fendas vermelhas que se moviam lentamente para se equiparar aos seus.
— Tenho algumas perguntas para você. — Ela evitou olhar demais nos olhos dele, pois não queria se perder nas palavras.
— Vai fazer seu último desejo? — perguntou a massa negra com veios cor de laranja que se movia dentro do recipiente como uma nuvem carregada de lava.
— Não.
— Então não direi nada.
— Isso não é problema.
Ela abriu a porta do armário, colocou a garrafa na prateleira e segurou a maçaneta enquanto procurava por suas chaves nos bolsos.
— Espera! — bradou o jinn com sua potente voz rasgada. — O que quer saber?
— Viu como a gente sempre chega a um acordo? — disse ela sorrindo e dando uma breve piscadela. — Quero saber tudo sobre Hassan Mubarak, principalmente sobre o seu lado espiritual.
— Só vou te responder perguntas diretas, três perguntas para ser mais exato e minhas respostas serão somente sim ou não. Se quiser mais que isso terá de fazer seu desejo.
Ela ponderou durante alguns segundos e não encontrou alternativa melhor, o tempo estava passando e o mundo corria perigo.
— Está bem.
Como o caso caíra no colo dela, Pel não estava assim tão preparada para a ocasião, porém, devia pensar rápido porque o trato com um jinn é sempre tortuoso e eles desistem de supetão. Para quem se imagina em uma situação hipotética, acha fácil escolher perguntas cujas respostas sejam sim ou não, mas com a imensa pressão do peso de uma possível morte sobre os ombros, a situação ganha uma conotação grotesca de fazer o estômago revirar.
A mulher segurou o queixo com o polegar e o indicador dobrado enquanto a outra mão estava na cintura. Os olhos do jinn cintilavam e ele assistia em silêncio opressor o processo de escolha de Pel Amana. O olhar dela se perdeu em um infinito particular por um momento enquanto sua figura parecia se dissolver na penumbra do ambiente.
— Seu tempo está acabando, Pel Amana. Tic-tac... — o jinn provocou de forma sugestiva.
Pel inspirou com força porque era louca, mas não desvairada.
— Minha primeira pergunta é: Hassan pode temer por uma possível visita da minha parte?
— Sim. — A resposta do jinn veio imediata, curta e sem emoção.
Pel Amana não gostou daquela resposta porque para que Hassan temesse por sua visita, era pressuposto que ele já soubesse de sua existência. Qual era o problema dele com uma detetive? A testa dela se enrugou em uma interrogação tensa.
— Hassan Mubarak tem problemas com a justiça? — Pel fez sua segunda pergunta.
— Sim, muitos. — O jinn extrapolou uma palavra na resposta e Pel Amana tombou um pouco a cabeça, apertando os lábios. Aquela situação tomava uma direção mais sombria do que ela poderia imaginar enquanto via o homem bailar sobre o palco.
Pel estava desgostosa demais. Não tinha ligação emocional para se sentir pesarosa, mas também não queria acreditar que Hassan era essa pessoa tão horrível ao ponto de merecer morrer.
A terceira pergunta saiu e deixou um gosto amargo na língua da detetive.
— Se eu não colocar fim na vida de Hassan, haverá consequência avassaladora para o mundo?
— Sim.
No fundo Pel Amana ficou arrasada. Empurrou as portas do armário com força e trancou o jinn no escuro outra vez. Viu seu reflexo em uma superfície espelhada, estava tensa na expressão como se sentia. Não matava por esporte e não queria apagar um CPF por motivo leviano, porém não via escolha que não fosse aquela.
Pel Amana sentou-se na frente do computador e pesquisou pela possível localização de Hassan naquela noite. Nada encontrou nas mídias sociais, mas viu que no dia seguinte ele tinha planejado visitar o restaurante novo de uma chef de cozinha que era amiga dele. Era inauguração e a ida de Hassan serviria como uma enorme propaganda de divulgação do estabelecimento de culinária vegana a preço acessível. De fato, a mídia estava em polvorosa, assim como a multidão de fãs que Hassan tinha.
O rosto de Pel Amana, iluminado pela luz do monitor, ficou enfeitado por um sorriso irônico. Ele ajudava na face descoberta e destruía na face oculta. Não era diferente de boa parte das celebridades.
A detetive abriu o aplicativo de pedidos e solicitou a entrega de uma marmita. Estava exausta de toda aquela intriga que veio como um arroubo de desgraça. Não tinha paz nem quando estava usufruindo de um lazer. Catou uma cerveja no frigobar que ficava oculto debaixo de sua mesa, escondido e quase inutilizado; queria gozar ao máximo de sua humanidade. Colocou a garrafa long-neck sobre a mesa, abriu com o dente e cuspiu a tampa ao mesmo tempo em que digitava com ambas as mãos, procurando o mapa da localidade do restaurante novo e uma forma de encurralar Hassan.
Não usaria de nada espiritual porque o homem era apenas um homem.
Pel tomou um gole da cerveja e sorriu porque ela já tinha um plano. Sentiu saudades de Hermes, queria que ele estivesse ali para implicar com seus passos.
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
Olá pessoas, como estão?
E aí o que acharam desse início?
Não esqueçam de deixar comentários e votos para nos ajudar a aparecer para mais pessoas.
Beijos!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro