A maldição do eterno retorno
A maldição do eterno retorno
Pricila Elspeth
O dia amanheceu e com ele o infernal barulho do trânsito paulista. O sol se espremeu pelas frestas das persianas e dardejou para dentro do quarto iluminando um espelho na parede oposta, fazendo com que a incidência luminosa refletida acordasse a detetive ocultista.
Ela levantou-se balbuciando algumas rabugices e dirigiu-se ao banheiro, após o banho desceu para a copa e encontrou uma caneca fumegante sobre a mesa e debaixo dela um bilhete assinado por seu assistente.
"(Dite) Pel, precisei sair pra resolver um assunto (pessoal) urgente. Espero que fique bem sem mim e compre (peixe) atum para o almoço, quero experimentar uma receita que (aprendi) vi esses dias. Ass: O maravilhoso insuperável Hermes."
Pel largou o bilhete sobre a mesa e bebericou o cappuccino com baunilha, sorriu e debruçou-se sobre a mesa. Seus pensamentos a levavam para longe daquele lugar e daquele momento; o sol brilhava com um belo mar esverdeado de fundo, à sua frente sentava-se a mulher mais amada do universo. O sorriso e os olhos profundos de sua namorada a faziam instantaneamente feliz, sem que ela pudesse explicar a origem e a duração de tal felicidade.
O telefone tocou e a tirou de seu recanto onírico. Ela pegou o celular e observou o número por alguns instantes; era da delegacia.
— Pel Amana — disse ela em tom seco.
— Que maravilha! Pel, preciso que venha até a delegacia dar uma olhadinha numa coisa.
— Vou me arrumar e passo aí, me dê uns quarenta minutos. — Encerrou a ligação e terminou a bebida que ainda estava quente.
Enquanto pilotava sua moto em direção ao departamento policial, notou o sol escurecendo, porém, não havia nuvens no céu. Uma tonalidade avermelhada cobriu a cidade e pouco a pouco as extremidades de todas as construções que tinha em seu campo de visão, se tornaram bruxuleantes, como se fossem feitas de fogo.
Pel Amana freou a moto, tirou o capacete e olhou ao redor. Tudo o que via estava completamente distorcido, nada mais parecia ser concreto, mas sim de plasma; porém não qualquer plasma, mas sim aquele oriundo das labaredas infernais. A detetive desceu do veículo e ainda incrédula no que via, pegou o telefone no bolso, discou o número de Hermes, mas a ligação não foi concluída, não havia rede de telefonia disponível.
Mas como? Não senti nenhuma membrana mágica em meu caminho.
Pel Amana retirou do bolso do casaco um colar feito de sementes sagradas e o colocou ao redor do pescoço, e imediatamente o colar de Nhanderuvuçú começou vibrar incontrolavelmente. Engoliu em seco, Estou mesmo no inferno, pensou ela.
Os prédios altos ao seu redor ardiam em chamas vermelhas, os carros estacionados tinham uma aparência decadente e também eram cobertos por chamas que lembravam gramíneas balançando com a ação dos ventos. O próprio ar ardia, queimada como se ela estivesse envolta por chamas, o hálito do inferno não tostava só sua pele, mas as queimaduras atingiam sua alma, como se estivesse sendo consumida de dentro para fora.
Não posso ficar aqui, preciso abrir um portal e voltar.
Pel procurou nos bolsos do casaco um giz, mas não encontrou nenhum. O desespero a pegou de jeito; os ossos da face começaram a tilintar, como se estivesse com frio, mas era apenas pânico. Seus músculos tremiam e vibravam toda a carne ao redor deles, um arrepio pavoroso lhe subiu pela coluna eriçando todos os pelos de seu corpo, Pel Amana sentia o coração pulsando forte e sentia a jugular saltando como se fosse romper a qualquer momento, também suava frio e o sangue lhe fugia das mãos.
Um som de metal se retorcendo ecoou pela cidade, Pel olhou ao redor buscando a fonte, mas era impossível determina-la, seus sentidos estavam atordoados, o medo de ficar presa a impedia de raciocinar e perceber com exatidão. Um leve tremor pode ser sentido por ela no momento em que apoiou as mãos nos quadris para pensar em uma solução. O tremor aumentou de intensidade e frequência, logo ela percebeu que eram passos; passos de algo muito grande.
Uma imensa sombra cobriu a luminosidade rubra, o que a fez olhar para trás deparando-se com uma massa de músculos em chamas; Astaroth, o tesoureiro e acusador do inferno estava diante dela, montado num dragão com cauda de escorpião e pinças no lugar das patas dianteiras.
O próprio demônio portava uma serpente enrolada em seu braço esquerdo, cuja qual ele segurava a cabeça, com a outra mão conduzia sua montaria, que expelia fogo negro ao seu comando. O lorde infernal portava uma coroa de rubi negro cravejada com diamantes dourados. Os olhos do ser infernal brilharam ao verem Pel Amana diante dele.
— Não posso acreditar em meus olhos — debochou o demônio —, você aqui?
— Muito engraçado, otário! — Pel sacou a pistola com munição santa e mirou para Astaroth. — Por que me trouxe aqui?
— Não trouxe.
Pel arrepiou-se diante da afirmação. Engoliu em seco e viu inúmeros diabretes surgindo por sobre o ombro do demônio carmesim.
— Mas já que está aqui...podemos nos divertir um pouco — disse o lorde infernal antes de emitir uma sinistra gargalhada que ecoou por todo o distrito.
Os diabretes saltaram de cima do dragão e do próprio Astaroth, indo em direção à detetive. Com uma mira impecável ela eliminou a primeira onda, até ouvir o 'click' da arma vazia. Virou-se e pôs-se a correr em direção a um enorme prédio que marcava o mais famoso cruzamento de São Paulo.
A horda de diabretes se movia em direção a ela como uma onda oceânica, com a diferença que as águas não gritam injurias e rimas profanas tentando abalar o psicológico de quem está em seu caminho; os dentes pontiagudos raspando uns nos outros emitiam um som agudo e estarrecedor, as línguas sedentas por sangue batiam nos dentes e por vezes do lado de fora das bocas das horripilas criaturas e emitiam um som molhado e pegajoso.
Pel esticava suas pernas ao máximo tentando alcançar a construção antes que a horda de mini demônios chegasse a ela, enquanto isso, escutava a hedionda gargalhada estrondosa do maldito controlador de diabretes.
— Você é acusada de assassinato, desrespeito às entidades superiores, traição celestial, abandono de incapazes, tentativa de suicídio, exploração emocional e psicológica de incontáveis seres humanos, utilizar forças sobrenaturais sem a permissão de seus genitores e tudo para proveito próprio, também acuso-lhe de invadir a mansão infernal de Lorde Lusbel e manchar meu território com sua abjeta presença — gritava o demônio com sua voz rasgada e ululante.
Cada palavra que Pel Amana ouvia, fazia com que seus pés pesassem cada vez mais, seus músculos enfraquecessem e seu fôlego diminuísse; logo ela se viu quase arrastando-se em direção ao edifício em chamas. Não o alcançaria a tempo.
Sentiu algo agarrar sua perna e lutou para se desvencilhar daquilo, mas logo sentiu mais e mais mãos segurando diferentes partes de seu corpo, arrastando-a para trás, para dentro de uma imensa nuvem de dentes pontiagudos e afiados.
Pel sentiu seu sangue gelado, seus batimentos cardíacos estavam tão acelerados que sentia as têmporas pulsando, os pulmões estavam cheios de ar, mas não conseguiam libera-lo, logo sentiu incontáveis mordidas por todo o corpo. Os dentes cravavam na carne e com facilidade arrancavam nacos de seu corpo. Ela gritou antes de tudo ficar escuro e silencioso.
***
Uma buzina alta a despertou violentamente. Pel saltou da cama esbaforida, suada e com o coração quase saindo pela boca. Olhou ao redor e constatou estar em seu quarto; em relativa segurança.
Espiou pelas frestas das persianas e observou a cidade tomada por um caótico e familiar trânsito matinal; suspirou com a mão pousada sobre o peito, sorriu com o canto da boca e rumou para o banheiro, após o banho desceu para a copa.
Assim que entrou no pequeno cômodo deparou-se com a mesa arrumada, uma caneca fumegante e um bilhete embaixo dela. Pel engoliu em seco e passou os olhos pelo papel, era o mesmo bilhete.
O quê? Premonição? Desde quando?
O telefone tocou e ela reconheceu o número da delegacia, ao ouvir as mesmas palavras ela teve certeza de que estava revivendo a mesma manhã. Colocou o colar de Nhanderuvuçú, a gargantilha com a pentagrama de ouro de Salomão e o anel de prata de Judas. Sentia-se preparada, mas não antes de colocar no suporte da moto sua espada e uma pistola em cada coldre.
Pilotou em direção à delegacia e quando cruzou a Avenida São João toda a paisagem ao seu redor mudou instantaneamente, deixando de ser concreto e metal para ser plasma infernal. Derrapou a moto e parou de lado no meio da rua, virou-se para o prédio de onde Astaroth saíra da última vez e observou por algum tempo.
O ar distorceu, como se ondas de calor ainda maiores do que as que a rodeava se aproximasse do local. Logo os chifres dourados do dragão negro despontavam por trás do edifício, o som metálico ecoou e eis que o demônio apareceu montado em seu animalzinho de estimação.
— Ora, ora, mas que surpresa agradável... — ironizou o demônio ao vê-la.
— Qual é a sua? Por que estou aqui? — gritou ela sacando a espada.
— E eu que sei? Você veio até mim por vontade própria e pagará por essa audácia.
Os diabretes surgiram por trás do imenso lorde infernal, guinchando e saltitando, com seus dentes e asas batendo; lembrando e muito um enxame descontrolado.
Merda!, pensou ela antes de começar a correr.
— Você está em déficit com o inferno, minha cara. Eu lhe acuso de...
— Eu já sei, seu cusão — Pel Amana virou-se e disparou mirando Astaroth. O projétil acertou a coroa e a inclinou para o lado, arrancando da cara do patife o sorriso que começara a esboçar.
Ele apontou a mulher e imediatamente os diabretes voaram em sua direção. Pel virava-se para trás constantemente para atirar contra o enxame rubro, mas suas munições não eram suficiente para tantos resquícios de almas corrompidas. Ela usou todas as suas forças para correr em direção ao prédio da esquina, cuja porta estava aberta.
Uma mãozinha a agarrou pelo ombro, Pel girou o corpo erguendo a espada e dilacerando o braço do diabrete que a tocara. Seus pés tocaram novamente o chão e sua velocidade aumentara.
Porém, uma mão agarrou seu tornozelo, levando-a ao chão. Quando caiu largou a espada e a viu se afastar resvalando pelo asfalto em chamas até fincar-se numa árvore repleta de cabeças que choravam copiosamente. Ela girou o corpo e tentou chutar os diabretes que lutavam por espaço e pelo direito ao primeiro pedaço, no entanto, eram muitos e suas forças logo se esvaíram.
O primeiro golpe atingiu-a no braço arrancando-lhe um naco de carne e ao ver o sangue jorrar em pequenos jatos, ela empalideceu, ao contrário dos demoniozinhos, que se agitaram ainda mais. Pel sentiu as infinitas dentadas fincando-se em seu corpo e totalmente indefesa, gritou até morrer.
***
O sol esgueirou-se pelas persianas e refletiu-se no espelho para incidir sobre o rosto da detetive. Ela despertou assustada, jogando para o lado a manta que a cobria, olhou ao redor e se viu em seu quarto. Apoiou a face nas mãos e respirou fundo. Pegou o telefone no móvel de cabeceira e ligou para o assistente, porém, ele não atendeu.
Porra!, pensou ela antes de descer as escadas às pressas. Parou no portal da copa e viu a caneca fumegando com o bilhete embaixo dela, engoliu em seco e correu para seu arsenal.
Os inúmeros objetos possuíam funções distintas e cada um era muito específico, Pel queria algo que pudesse abrir um portal instantaneamente, mas não encontrava. Seu corpo arrepiou-se quando sentiu um vento álgido soprar em suas costas, ela levantou-se e ponderou sobre aquilo.
Já senti isso antes...
O telefone tocou e ela viu o número da delegacia, atirou o aparelho na parede e urrou inconformada. Posso não atender o chamado e aguardar para ver o que acontece, ou posso verificar e cair novamente no inferno. O que me intriga é o fato de voltar no tempo...ah, filho de uma mãe.
Ela olhou o telefone despedaçado e estapeou a testa com violência. Subiu correndo e montou em sua moto, dirigiu para o cruzamento e logo estava diante da paisagem infernal.
Desceu do veículo e aguardou a chegada do lorde infernal, que não demorou muito para aparecer. Ela o encarou, fechou os olhos e abriu os braços. A horda de diabretes a consumiu quase que instantaneamente.
***
Ao despertar a detetive pegou o celular e discou para Saturno, uma pessoa excêntrica que poderia lhe dar algumas respostas, no entanto, nenhuma das ligações completaram.
Irritada com a situação e com sua impotência diante dos eventos, sentou-se no chão aos pés da cama, uniu os joelhos e com a testa apoiada neles pôs-se a chorar copiosamente.
Estou presa numa cadeia de eventos e não consigo sair, nem consigo ajuda...sempre morro e volto à vida todas as vezes. Por quê?
Pel não conseguia entender o que estava acontecendo e não encontrava uma explicação do porquê os eventos se repetiam, imaginou que talvez alguém quisesse algo dela, uma ação específica, mas não conseguia concluir seus raciocínios; as lágrimas não deixavam.
Ficarei presa nesse maldito ciclo se não o entender. Por mais que saiba quem podo me ajudar, não consigo contato. E pior... Se não sair, a terei perdido para sempre.
Uma lufada de vento álgido chocou-se contra sua pele trazendo-lhe às narinas uma fragrância de pêssego e baunilha, e então, de imediato ela compreendeu que estava presa nos domínios oníricos de Morfeu, entretanto, o motivo lhe era desconhecido.
Levantou-se, enxugou as lágrimas e olhando para o teto, berrou:
— Foda-se Morfeu! Você não vai me impedir de vê-la novamente. Tá ouvindo? Eu vou sair, eu vou te derrotar, eu vou recuperá-la...
Todo o quarto foi tomado por uma tenebrosa escuridão, que ao contrário do que a detetive imaginou, não era insubstancial, mas sim pegajosa como piche, que logo escorreu por suas narinas, ouvidos e boca até preencher seu corpo com trevas, e então, tudo se tornou novamente silencioso, frio e escuro.
Abriu os olhos e deparou-se com o sol refletindo no espelho da parede oposta. Desceu imediatamente para a copa e encontrou o assistente passando o café.
— Bom dia dorminhoca!
Hermes não previa o movimento da amiga e surpreendeu-se ao ser abraçado por ela. Com muito cuidado acariciou-a e esperou que ela o largasse, e então, quando ela sentou-se à mesa ele a serviu e perguntou:
— Está tudo bem?
— Sim. Agora está. Acho que sonhei algo... Ou não. De qualquer forma, ficava revivendo a mesma manhã por vezes e sempre acabava morrendo, estava presa numa maldição do eterno retorno.
Hermes sorriu e balançou a cabeça para os lados, a detetive ergueu uma sobrancelha encarando-o enquanto aguardava sua explicação para compensar aquele gesto.
— Foi um pesadelo, relaxa. E o eterno retorno não tem a ver com repetições de evento, mas sim com...
— Blábláblá filosofia, nhem nhem nhem o bundão do Friedrich, foda-se!
— Calma Pel, foi só uma brincadeira.
Ela pegou a caneca com sua bebida fumegando, encarou o líquido amarronzado por um longo tempo, depois fitou o assistente e sussurrou:
— Esse é o problema, foi só uma brincadeira, mas poderia ter sido real.
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Olá pessoas, como vão?
E aí, o que acharam dessa aventura da Pel Amana? Lembrem-se que votos e comentários são muito importantes para fazer a história crescer.
Aguardo vocês no próximo capítulo. ^^
Beijos da Pri!!!
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