Dia 2
Acordei com um sobressalto.
Espremi os olhos para me acostumar com a claridade do quarto. Desde quando meu quarto era tão claro? E por que ele cheirava a álcool etílico e roupa nova? Não, não era o meu quarto. Eu não estava lá, estava na sala de descanso do Lugar Feliz.
Olhei para as paredes brancas e, então, Danny comendo sua salada verde e ouvindo AC/DC no celular.
Posso ter bebido um copo de uísque no bar com Nathan, mas não estava bêbada o suficiente para ter vindo até a casa de repouso no meio da noite.
— Que porra é essa!? — disse baixo, ainda zonza pelo sono.
— Não reclame. É você quem está dormindo no seu turno quando sabe que é proibido — ele disse — Apesar de compreender. Você está destruída, parece que um caminhão de lixo te atropelou e ainda deu ré no seu corpo semiconsciente apenas para garantir que você estava morta, mas de alguma forma, você sobreviveu
Franzi o cenho. Já escutei aquilo antes e conhecia Danny suficiente para saber que ele nunca repetia suas ofensas a mim.
Não era isso. Danny tinha dito a mesma coisa ontem.
Minha cabeça ainda girava, mesmo assim, peguei a minha bolsa e vasculhei até encontrar meu celular. Uma mensagem de Nathan estava na tela. E o relógio indicava que era meia noite e dez. Do sábado, dia sete.
Passei a mão pelo cabelo.
Ok. Danny finalmente destruiu o resto de sanidade mental que eu tinha.
Isso não fazia o menor sentido. Eu dormi no dia sete e acordei no dia sete, exatamente no mesmo lugar que estava antes? Ou, eu sonhei o dia de ontem...? Eu estava tendo sonhos perturbadores essa semana, para ser sincera.
Essa era a explicação mais plausível. Mas sonhos deveriam ser tão reais? E como Danny pode ter repetido as exatas palavras do meu sonho?
— Triggs, você viu um fantasma ou algo do tipo? — Danny perguntou, me fitando. Se eu não o conhecesse, poderia até dizer que estava preocupado.
Bom, Danny não havia dito isso no meu sonho. Eu respirei aliviada. Provavelmente foi apenas um sonho esquisito. Provavelmente. Um sonho realista pra cacete.
— Você já teve uma sensação de déjà-vu?
Ele parou o garfo a caminho dos seus lábios.
— Não, mas minha tia-avó vivia tendo desses — Danny disse. Eu o encarei, esperando que pudesse dizer mais — Nós a internamos há um ano em um hospício.
Bufei em resposta.
— Vai pro inferno, Danny.
— Não posso. Sou uma boa pessoa e tenho um rosto bonitinho demais para estar no inferno — Danny sorriu.
Seu braço se moveu em direção a mesa. Eu sabia o que acontecia em seguida. Corri em sua direção assim que ele acertou o celular e o peguei antes que pudesse atingir o chão.
— Uau, você tem um bom reflexo — Danny franziu o cenho, pegando o celular de volta da minha mão.
Ok. Eu tinha acabado de ter um sonho premonitório?
Vovó vivia dizendo que nossa família atraía coisas de natureza não-humana, ela mesma se autodenominava vidente (a última coisa que ela "previu" foi o aumento no preço do arroz). Isso não podia ser a minha situação. Primeiro, porque eu não acreditava nesse lance de paranormal e, segundo, porque eu era adotada.
Então, o que diabos explicava eu ter sonhado esse dia?
— Eu vou explodir! — Helena entrou na sala da mesma maneira que aconteceu no meu sonho — Acho que a ala 2 está se unindo contra a gente. Eu providenciei essas séries europeias que se passam no século 18 e, agora, eles estão dizendo que não aguentam mais ver algum rei ou rainha. Eles querem e, cito a senhora Harold, "violência e muito sangue" — ela se sentou no sofá.
— Foi assim que a Revolução Francesa começou — Eu e Danny dissemos ao mesmo tempo. Ele abriu os lábios, surpreso.
— Ei, pensamos iguais — Danny piscou.
— Rose, você está bem? Seu turno não acabou há meia hora?
— Sim — respondi, ainda em transe.
Se eu sonhei mesmo com aquele dia em específico, isso significava que eu deveria correr, porque senão perderia o ônibus da meia noite e vinte da mesma forma que aconteceu.
— Na verdade, já estou dando o fora.
— Antes de ir, você deveria passar no quarto de Theresa. Ela está enchendo o saco de todo mundo, perguntando sobre você.
— Olhe, eu não tenho tempo para o papo de Theresa sobre deuses apaixonados. Apenas diga a ela que eu fui atropelada por um triciclo e não sobrevivi — reclamei, passando pela porta.
— Deuses apaixonados...? — Danny perguntou, mas eu já estava longe demais para responder.
Se eu fosse uma pessoa mais positiva, diria que o sonho vidente — se é que foi um sonho, ainda estava bastante cética sobre a ideia de ser um sonho — ajudou bastante.
Consegui chegar no show de Nathan alguns minutos antes e ouvi ele cantando um cover do Goo Goo Dolls e a sua música original em seguida. Senti o mesmo frio na barriga toda vez que ele sorria enquanto cantava.
Nathan fez exatamente as mesmas coisas — agradeceu e desceu do palco sendo emboscado por uma garçonete.
A mesma de corpo violão e cabelos escuros. Até a tatuagem de estrela na sua cintura era a mesma.
Eu li uma vez, na internet, que não era impossível sonhar com pessoas que não conhecíamos. Nosso cérebro não era inteligente o suficiente para criar novos rostos, e eu me lembro da garçonete perfeitamente.
Que esquisito.
Tudo que estava acontecendo nos últimos minutos era esquisito.
Eu estava mesmo ficando louca como a tia avó de Danny?
— Você é minha garota predileta, Jenna — Nathan disse ao fundo enquanto eu tomava meu terceiro copo de cerveja. Devido aos últimos acontecimentos, eu resolvi trocar meu pedido.
Nem percebi quando Nathan se sentou ao meu lado e disse:
— Veja se não é minha garota predileta.
— Você acabou de dizer a mesma coisa para Jenna — repeti as mesmas palavras que me ouvi dizer no meu sonho.
— Você não deveria ter ouvido isso — ele brincou de novo — Obrigado por ter vindo.
— É, bem, somos eu e você contra o mundo — falei, mudando completamente o roteiro da minha cabeça.
Nathan franziu o cenho. A mesma expressão que ele fez quando descobriu que tinha Física na faculdade de Música.
— Você não pode usar minhas músicas comigo.
— O que posso fazer? Sou sua fã número um — sorri.
Para eu dizer uma coisa dessas era porque a cerveja atingiu meu cérebro. Nathan apenas riu aquela risada rouca e que despertava todas as partes do meu corpo adormecidas há muito tempo.
— Você é — Nathan disse, e então olhou para mesa — Dia difícil, não?
Isso, ele não havia dito no meu sonho, mas eu alterei o roteiro antes, então ele deveria estar seguindo por outro caminho.
Ou você está apenas pirando de vez, Rosalie Triggs, a voz da razão disse na minha mente.
— Sempre é.
— Sabe o que eu acho, Rosie?
Curiosamente, eu sabia. Não estava afim de ouvir novamente o discurso de Nathan sobre eu precisar sair com outros homens. Só queria encher minha cara e dormir por vinte horas, já que meu corpo ainda estava exausto pelo turno dobrado.
— Nate, podemos apenas beber? Eu estou cansada e o trabalho foi muito pesado — admiti, respirando fundo.
Nathan estudou meu rosto. Senti minhas bochechas corarem e torci para que ele não tivesse reparado nisso.
— Claro que podemos — ele ergueu o copo de cerveja que Jenna lhe trouxe para brindar. Eu peguei o meu e bati no dele, sorrindo.
Bebemos por alguns minutos até a garçonete Jenna aparecer. Foi por causa dela que Nathan furou comigo no meu sonho — digo, era mais culpa de Nathan do que dela, mas devo lembrar que ele é facilmente influenciado por um par de peitos.
Antes que Nathan pudesse responder, eu agarrei seu punho.
— Nem pense nisso. Se você for com ela, vai acabar em alguma festa depravada, dormir com uma estranha que conheceu lá e perder a festinha do orfanato que você me prometeu que iria! — falei rapidamente, deixando transparecer toda minha irritação.
Nathan franziu o cenho — Isso... é exatamente o que eu faria... Sinto muito, Jenna.
Jenna encarou Nathan com a expressão magoada evidente no rosto, mas o que podia fazer? Ela queria se casar de vermelho com um cantor. Nathan não era o tipo de cara que se compromete. Infelizmente, eu sabia disso melhor do que ninguém.
Nathan me levou para casa na sua caminhonete caindo aos pedaços que ele tinha orgulho de chamar de "sua". Eu odiava aquele carro. Toda vez que o motor esfumaça enquanto estamos dentro, consigo ver a mão de Lúcifer me puxando para baixo. Pelo menos, ele cumpriu com sua promessa agora.
Quando cheguei em casa, fui dormir e tentar esquecer esse pedaço estranho de dia.
Estou novamente na entrada do orfanato. Diferente do meu sonho, Nathan está descendo da sua caminhonete e vindo na minha direção.
Estou tentando me convencer de que tudo não passou de um surto de uma mente muito cansada de lidar com idosos. Quando cheguei em casa na noite passada, fiz tudo diferente, dormi com outra blusa, deixei Chandler dormir na minha cama e, essa manhã, coloquei um vestido e não uma calça, esperando que isso fosse o suficiente.
Nathan estava ainda mais lindo que o normal, se é que isso era possível. Os fios loiros do seu cabelo cacheado brilhavam na luz do sol e os olhos estavam mais claros que o normal. Ele vestia uma camiseta preta e calças rasgadas, e parecia algum bad boy saído de um filme adolescente.
— Nathan Church se apresentando para o trabalho — ele bateu continência.
Eu sorri.
Nós entramos no orfanato e a inspetora Weston nos cumprimentou com um sorriso enorme no rosto, claramente direcionado para Nathan. Ela nunca olhou na minha cara até o dia de hoje.
Comecei a pintar as crianças. Os desenhos de hoje estavam melhores que os do meu sonho, talvez porque eu ganhei uma referência. Ainda sim, as crianças pediam exatamente as mesmas coisas, inclusive o garoto da vaca.
— Você é muito boa nisso — Nathan afirmou quando eu arrumava minhas tintas na mesa de plástico e pensava sobre as últimas horas.
— No quê? — sorri — Em pintar rostos de crianças?
— Em desenhar no geral. Você sempre foi ótima desde a faculdade, eu via você desenhando coisas no seu caderno ao invés de prestar atenção na aula.
— Olha quem fala.
— Você devia trabalhar com isso — Nathan falou. Eu encarei seu rosto. Ele enrugou a testa como fazia quando estava sendo sincero — Sei que odeia seu trabalho, Rosie, mas você ama criar.
— Você acha que eu deveria virar artista? — disse com um tom irônico — Você me odeia tanto assim para sugerir que eu morra de fome?
Nathan riu.
— Muito engraçada. Eu sou um cantor, sei como é. Mas, acredite, não tem sentimento melhor do que fazer aquilo que ama e que, no fim do dia, te preenche por inteiro — admitiu.
Adorava a forma como Nathan falava sobre sua música, sobre os sentimentos que ele via nas notas musicais que ninguém mais era capaz. Ele amava cantar e tocar. Era parte dele.
Eu queria ter algo assim. Mas eu já tinha vinte e cinco anos, e por mais que todos dissessem que eu era nova, parecia tarde demais para mim. A ideia de começar tudo do zero me incomodava.
Antes que pudesse responder, Emma apareceu com seu sorriso de sempre. Eu me lembrei do que ela havia dito no meu sonho e meu coração pesou. Porém aquilo foi um sonho. Não era a Emma de verdade.
— Oi, Emma, que tal algumas estrelas hoje? — sugeri.
— Era o que eu ia pedir! — ela se animou, sentando-se no banco à minha frente — Como você adivinhou?
— Uma artista não revela seus segredos — sorri, abrindo a tinta amarela.
— Eu queria te dar isso — Emma falou, mas ela não estava falando comigo e, sim, com Nathan.
— Para mim?
Olhei para sua mãozinha, lá tinha um daqueles anéis de plástico que vinha com um doce. Nathan aceitou o anel e o encarou como se fosse uma guitarra nova. Deus, nem as crianças escapavam do seu charme.
— É um anel de casamento — disse com convicção.
— Então, você está me pedindo em casamento? — Nathan abriu um sorriso — E você disse que eu nunca me casaria — ele me olhou de relance.
— É pra você dar para tia Rose.
Tanto eu quanto Nathan encaramos a garota com confusão estampada nos nossos rostos.
Pigarreei, sem saber o que dizer.
— Não acho que a tia Rose goste de mim desse jeito — Nathan falou e eu tive a súbita vontade de rir e chorar, tudo ao mesmo tempo —, mas eu ficarei com ele.
— Ela iria gostar se você desse o anel para ela! — Emma disse, autoritária.
Nathan ficou desconcertado. Ele encarou o anel e depois, Emma. Uma criança de oito anos fez o que nenhuma mulher jamais foi capaz de fazer em vinte e seis anos: desestabilizar Nathan Church.
— Está bem — ele sorriu e me olhou. Senti um aperto no estômago e meu coração subir pela boca — Rosalie Triggs, você aceita se casar comigo? Você precisa ou Emma irá me matar.
— Está bem, só porque não quero perder o único amigo que tenho — brinquei, oferecendo minha mão para Nathan.
Ele riu e seus dedos tocaram suavemente o meu pulso, ainda com uma marca rosada pelo apertão de Theresa. Senti um choque elétrico subir pelo meu braço. Nathan olhou para os meus dedos, traçando cada um deles com o polegar. Ele colocou o anel no meu anelar. Seus dedos demoraram alguns segundos na minha pele antes de colocar meu braço na mesa de maneira delicada.
Aquela troca inteira pareceu tão erótica na minha cabeça e Emma estava ali do lado assistindo tudo.
Ou talvez isso fosse apenas minha imaginação e anos demais pensando em Nathan Church.
— Vocês são almas gêmeas como a Branca de Neve e o príncipe — Emma afirmou e eu ri, terminando de pintá-la. Ela correu para o parquinho, se juntando às outras crianças.
— Eu juro que se você me acordar de um sono profundo apenas para me beijar, vou arrancar suas bolas — brinquei. Nathan riu.
— Anotado.
As horas passaram mais rápido com Nathan ao meu lado. Quando fui me dar conta, o sol já descia no horizonte. Comecei a juntar minhas tintas enquanto Nathan contava o enredo de Gossip Girl.
— Não é ridículo que a Blair e o Dan fiquem juntos? Eles passaram quatro temporadas se odiando — ele dizia.
— É ridículo que você se revolte com uma série adolescente tendo vinte e seis anos — falei, e Nathan me mostrou o dedo do meio.
Pelo canto do olho, vi a inspetora Weston se aproximar de nós dois com seus saltos enormes e terninho feminino.
— Rosalyn, tudo certo aqui? — ela perguntou com uma voz simpática demais para quem nunca tinha falado comigo e nem sabia meu nome direito.
— Ah, sim — respondi com preguiça de corrigi-la.
— Que bom! — A inspetora exclamou alto demais — Vou levar as mesas lá para dentro, mas o magrelo do Peter não tem força suficiente para carregá-las... — ela desviou o olhar para o meu melhor amigo — Você é o Nathan, né? Você me parece forte, será que poderia me ajudar?
Nathan abriu o seu sorriso mais charmoso.
— É claro, querida.
Ele piscou para mim antes de se levantar e eu revirei os olhos.
Assisti os dois caminharem pelo jardim, a inspetora riu de algo que Nathan disse e colocou a mão em seu ombro sem nenhum pudor.
Garotos são estúpidos é a minha bunda.
Como sempre, Nathan me deu um cano, porque a inspetora Weston — Mandy, como ele a chamou — pediu para que ele fosse à sua casa e usasse seus músculos extraordinários para mudar uma estante de lugar.
Fala sério, esse era o começo de todo filme pornô ruim
Queria ter impedido ele de ir. Queria ter dito que queria sua companhia, e Nathan não teria hesitado em dar um fora em Mandy. Eu sabia disso. Queria dizer tudo que estava no meu peito. Queria ser mais do que era.
Queria. Queria. Queria. Nunca fiz.
Voltei para casa sozinha, assim como no meu sonho.
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