Capítulo 43
═───── (Capitania das Minas Gerais, Brasil Colônia - 1808)
O mundo passa por constantes transformações através do tempo, afinal, essa é uma das funções mais importantes dele.
Houve um período em que as pessoas resolveram não baixar mais a cabeça para a vossa eminência, mesmo que lhes custasse a decapitação.
Nesse período, a mudança seria ainda mais histórica e significativa, se comparada a todas as transformações que o mundo já sofreu. Ler e escrever já havia deixado de ser um privilégio do clero e passava a ser um direito do povo. O senso crítico despertava através dos folhetins da nova imprensa. O homem abria livros, abria ideias, abria cadeados, abria as portas das trevas de ignorância na Idade Média para escapar em direção à luz da Idade Moderna; foi o chamado Iluminismo.
Do Iluminismo e seus pensadores, filósofos e criadores, nasceram os sonhadores.
Cabeças pensantes que desejavam ainda mais luz, ainda mais liberdade.
Joaquina, por exemplo, possuía muito mais do que a cabeça pensante. Em suas veias corria o sangue quente, sangue de revolucionária.
Ser uma guerreira estava cravado em quem ela era. Não importa que tenha sido secretamente levada pelo pai adotivo para o outro lado do oceano na infância, para a Europa, e não adiantou apenas mudar seu nome para Louise Raposo de Viegas, quando o príncipe regente de Brasil Colônia, declarou amaldiçoada a sua origem, sua ascendência e sua descendência.
A coroa portuguesa nem imaginava que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes e mártir da independência, deixou uma filha viva e de herança o mesmo desejo de mudança.
- En garde! - Dom Raposo, o homem que criou e protegeu ela, declarou.
Ele é um par do reino, isso significa ser um homem de renome, confiança e respeito, que conquistou o título de nobreza depois de se arrepender por simpatizar pela inconfidência mineira. Dom Raposo não chegou a conhecer pessoalmente o alferes Tiradentes, também, pouco participou diretamente dos atos rebeldes, sendo mais simpatizante do que propriamente ativo.
Ainda assim, ele esteve lá para as reuniões conspiratórias e colocou parte de seu dinheiro nos atos. A coroa nunca o pegou, em contrapartida, muitos de seus amigos foram exilados.
O dia em que foi enforcado, 21 de abril de 1792, foi o mesmo em que a amante secreta de Tirantes, Antônia, foi espancada até a morte como castigo pelos súditos fiéis.
Assim, com sua existência escapando despercebida, Joaquina esteve sozinha no ato da condenação e mesmo tão criança, assistiu o pai biológico sendo executado junto de sua inocência. Dom Raposo ainda era um minerador em ascensão naquela época, mas ao notar a menina de apenas oito anos sozinha na multidão de pão e circo, levou ela consigo, para bem longe do perigo.
Joaquina contou para ele quem era e ele guardou esse segredo para o bem de ambos. Saber dela era o mesmo que entregar a própria cabeça, como cúmplice, mas mais do que isso, ele nunca viveria em paz sabendo que entregou uma criança à morte.
Depois, Joaquina foi registrada como filha do fidalgo, levada para Portugal e criada debaixo do nariz do Príncipe João. Uma traidora, uma filha de traidor, circulando entre a coroa, beijando a mão da realeza e se sentando junto a mesa.
Agora, ela amadureceu. Louise é uma linda mulher, criada à imagem e semelhança de Dom Raposo - bruta ao mesmo passo que uma flor, empunha espadas com mais facilidade do que borda como as outras damas e senhoritas de sua prole, e prefere cavalgar do que viajar em carroças adornadas em ouro, - mas o sangue ainda é de uma revolucionária e a alma de uma brasileira que não desiste jamais.
Além disso, a bondade da Srta. Raposo não tem igual. Louise é um poço de empatia, amor e muita sinceridade (às vezes, sincera até demais!)
- Touché - a ponta da espada dela tocou o ombro de Dom Raposo na última partida.
- Você se aproveitou por eu estar distraído, piolha - ele justificou, rindo, porque no mesmo instante a porta abriu e os irmãos de Louise, André e Bertoleza, entraram na sala de treinamento.
- Ou talvez o senhor lute como uma menininha - ela debochou, mas não é no que acredita.
Ela acredita, de verdade, que mulheres lutam com muito mais eficiência e estratégia do que os homens. Mas a outra coisa que Louise faz melhor do que empunhar uma espada, é provocar o seu pai.
- Pai, estamos prontos - André informou - a embarcação nos espera.
Eles se preparavam para partir de Lisboa para o Brasil com a coroa portuguesa, assim como cerca de outros doze mil membros da corte. Napoleão Bonaparte avançava com suas tropas em direção à Portugal, como fez com metade da Europa e a mudança de capital para o Rio de Janeira era, além de uma fuga, uma estratégia muito bem pensada para a economia do Reino. É a rota perfeita entre seus meios de exploração e importação, seria um trunfo ao comércio português. Só não seria à população brasileira, que gastaria absurdos e um quinto dos infernos para cobrir as despesas dessa viagem luxuosa do futuro Rei e sua corte.
- Pois, adeus, civilização - Dom Raposo resmungou - vamos enfrentar meses de mares e depois, permanentemente, a terra dos selvagens.
- Pai, eu preciso lembrar o senhor que essa terra foi de onde viemos? - uma moça não repreende o pai de tal maneira, mas a relação de Louise e Dom Raposo de Viegas é uma parceria que às vezes parece até que ela é sua irmã, e não filha.
A personalidade é a mesma, isso deve explicar as atitudes corajosas da senhorita. Mas a outra explicação é que ele já está acostumado a lidar com a incontrolável língua afiada de Joaquina.
- Eu prefiro que à partir de hoje você não repita isso em voz alta - ele recolheu a espada e suspirou antes de pedir: - temos que tomar muito cuidado, Louise, por favor, se alguém descobrir sua verdadeira identidade, você perde a cabeça e eu vou junto por te acobertar. Por amor, eu me entregaria mesmo em seu lugar.
- O senhor está pedindo para eu fingir não ser quem eu sou?
- Estou pedindo para tomar cuidado. Estou pedindo para ser minha filha.
- Eu sou sua filha, mas eu também sou eu.
- Joaquina, por favor...
- Louise - ela recolheu a espada na bainha de couro na cintura e, chateada, se afastou em direção à saída sem dar as costas, como manda a etiqueta - se quer que eu não seja quem sou, continue praticando me chamar de Louise.
- Teimosa - ele resmunga, mas Joaquina já havia fechado a porta.
Eles desembarcaram no Rio de Janeiro meses depois. É janeiro de 1808, mas olhando à sua volta, Louise pensa ter voltado ao século retrasado. Tudo é tão precário, que essa terra parece ter ficado presa no tempo, na Idade Média. Há mais mendigos esfomeados nas ruas sujas, do que cães sujos, ainda que desses, havia aos montes.
Ela se encolheu contra o pai e fechou os olhos quando um negreiro passou ao seu lado com um grupo de homens amarrados. Ela travou e mordeu o interior da boca com toda sua força para não se exaltar e arranjar confusão. Aquilo é desumano! Seu pai passou meses alertando Louise de que as coisas no Brasil ainda eram diferentes, que essa era uma terra perigosa, sem lei, que ali havia muitas coisas das quais ela considerava absurda, mas ele não avisou que encontrariam escravos sendo tratados de tal maneira, sabendo que ela sempre reage instintivamente para isso, à flor da pele, pronta para arrebentar as correntes com suas próprias mãos se necessário.
- Você está bem? - Dom Raposo passou a mão levemente na cabeça dela, trazendo os olhos azuis para os seus, fazendo Louise desviar daquilo para respirar de volta.
- É claro que eu estou, se comparado a eles, pai, isso é inadmissível, nós estamos no século dezenove, as coisas estão mudando! Ninguém deve tratar as pessoas dessa forma, somos humanos e sentimos dores, nós não temos que deixar acontecer essa atrocidade, o que a administração do reino faz além de cobrar o quinto dessa gente que não tem nada, com os impostos subindo cada vez mais e...
- Ei, ei, ei - ele chiou para interrompê-la - ficou louca, quer que lhe ouçam e pensem que você é uma revolucionária?
- Está no meu sangue, não há o que possamos fazer quanto a isso - ela puxou o braço para longe dele - minha sina é lutar por liberdade.
- Cale a boca - ele puxou o braço dela de volta e apesar dos protestos de André e a reação apavorada de Bertoleza, Dom Raposo enfiou a filha na carroagem com os outros dois e trancou a porta. Ele ordenou da janela: - Você vai continuar quieta, eu não vou perdê-la por causa desses ideais ridículos e sonhadores. Não existe liberdade. Existe o que existe e você vai aprender a ficar de bico fechado nesse lugar, pelo seu próprio bem, estamos entendidos?
Ela não responde. Ela não vai mentir. Não estão, coisa nenhuma, porque Louise não concorda e não tem medo dele, nem de nada, nem de ninguém.
Estar na sua terra, o seu lar, mexe ainda mais com seus intintos e esperar que tudo mude sem agir não é uma coisa possível para alguém que tem tanto amor como combustível de determinação.
Ela tira o cabelo dos ombros e olha para cima, para livrar os olhos azuis, a única herança de sua falecida mãe, das lágrimas que quase caíram.
A carroagem segue para Vila Rica. Serão quase um dia inteiro de viagem e Louise odeia ter que ir nesse cubículo chacoalhando, quando poderia ir à cavalo de guarda como seu pai faz ao lado, mas eles já discutiram incontáveis vezes sobre como ali, no Brasil, as coisas são diferentes, são perigosas, que havia selvageria e que para uma moça é perigoso viajar exposta, mesmo que tanto ele quanto qualquer outro que a conheça saiba que Louise pode muito bem se defender sozinha.
Em certa altura, ainda de dia, a carroagem parou na estrada e André mostrou-se assustado. Bertoleza não parecia saber do que se tratava, mas se encolheu contra o irmão mais velho e Louise entrou em estado de alerta. André pode até ser o outro homem da família, o que nessa Era é considerado proteção, mas na verdade, ele é um homem muito sensível, atrapalhado e sua habilidade é mais as fofocas do que a espada.
Em contrapartida, Louise é parte da armadura da família Raposo de Viegas, por isso, sem pestanejar, mas calculando racionalmente, ela sacou a pistola inglesa que havia escondida debaixo do carpete.
Espiou pela janela e viu Dom Raposo com sua espingarda engatilhada, apontando para um homem que estava em pé na grama, armado de um mosquete e acompanhado de outros dois sujeitos.
- São saqueadores - André concluiu o óbvio, temendo - faça alguma coisa, minha irmã!
Ela esperou o momento certo de distração. Abriu a porta sem fazer barulho, apenas um ruído ignorado, e quando um dos homens notou já era tarde demais.
Louise havia pulado de forma que o cano de sua arma encostasse na cabeça do provável chefe do bando.
- Não se mova ou eu estouro seus miolos podres - o que é uma grande mentira, porque Louise não seria capaz de matar sequer uma mosca, mas essa é a hora de provar firmeza.
Uma de suas habilidades é impor segurança e isso ela tem de sobra para assustar um borras calças feito ele.
Observando bem à sua volta sem perder o controle, concentrada e segura, do jeito que o seu pai Dom Raposo ensinou, Louise nota que dois dos homens estão armados com mosquetes (esse que já está rendido por ela e um outro com a arma apontada na direção de seu pai).
Além desses, havia outro homem mais afastado, segurando firme um punhal quase inútil, mas caso ele pense na coragem de avançar ela terá que decidir entre se defender dele e mirar no outro homem próximo ao seu pai e ao mesmo tempo, nesse que ela segura, apesar de que, Dom Raposo também aponta a arma para o inimigo e pode se virar sozinho.
É um fogo cruzado, uma bagunça, mas nada que ela não possa resolver num instante, se necessário.
- Mande seus homens baixarem as armas, agora - ela ordena - ou eles não se importam em ficar órfãos de líder?
- Estou deslumbrado - o homem riu, corajoso, mesmo com a cabeça na ponta do cano de uma pistola moderna. A voz dele é grave, mas amaciada e tranquila demais para alguém que corre o risco de morrer - uma mão delicada, mas ainda assim perigosa, que formosura.
- E o senhor fala bem demais para um bandoleiro.
- A senhorita pensou que eu fosse um xucro? - ele continua levando na brincadeira e ela se irrita - Todo homem tem uma história, eu tenho a minha, vai querer matar um homem inocente e interromper a história dele aqui nesse fim de mundo, sobre o esterco de um boi?
Dom Raposo se manteve em silêncio, concentrado, mas pelo olhar dele, ela sabe que pensou errado.
Se fossem ladrões, seu pai já teria os matado na primeira oportunidade e com facilidade. Esses homens não estão em bando, eles estão em trio e apesar de serem todos jovens, parecem experientes. Eles exibem saber o que fazem, na pose tão corajosa quanto a dela.
- Nós só queremos o cavalo, senhorita - o homem explicou - precisamos apenas do cavalo, não somos ladrões.
- Levar o cavalo contra nossa vontade é o mesmo que roubar, senhor de bem - Louise respondeu com ironia e empurrou a arma apenas para cutucar a cabeça dele. Os homens se movimentam na defensiva, mas não atiram.
- Tudo bem, o cavalo é seu - Dom Raposo soltou a arma antes que o pior acontecesse - vou descer, vocês ficam com o cavalo e vão embora. Saibam que sou um par do reino e que vossa majestade não ficará feliz em saber que fui salteado e incomodado. Eles irão os encontrar e irão pegá-los, estejam avisados!
- Veremos, se nós não pegarmos o futuro Rei primeiro - o homem com o punhal debochou e chacoalhou um lenço branco com um símbolo bordado em azul e vermelho.
É a flor-de-lis.
Um símbolo daqueles que lutam pela independência.
Instintivamente, e tão surpresa quanto encantada, Louise solta o homem e o empurra para longe.
Ele se vira com um sorriso meticuloso e recolhe a própria arma, mas quando seus olhos verdes encaram os azuis dela, a Raposo sente um frio desabrochando desde a boca do estômago, terminando em uma tremedeira absurda. Ela estava pronta para suspirar, mas sentiu o engasgo atrapalhar.
- Caos, você vai à cavalo para onde deve ir - ele ordena e o homem concorda, assumindo a cela no lugar de Dom Raposo - Malik e eu ficaremos de olho para ter certeza que a sinhá não atira pelas costas enquanto você leva o nosso mais novo guerreiro ao pasto - ele acaricia a crina do cavalo e ela continua encarando, desacreditada.
Revolucionários soavam como lendas, mas na suas primeiras horas no Brasil, Louise foi abordada por três deles.
É incrível!
- Você é um rebelde - ela não está perguntando, está afirmando e entregando a admiração na falta de compostura.
Louise não dá a mínima para os modos quando está diante de um sonho.
- Eu sou um fantasma, você nunca me viu - ele disse para Dom Raposo - sabe esse meu amigo aqui - apontou para o moreno barbudo. Ele tem seus olhos castanhos estreitos na direção de Louise, como se estivesse num momento de desvendar um mistério complexo e a metade do rosto coberta por um lenço, mas ainda assim, a barba escura e bem cuidada é visível atrás dela - a habilidade dele é encontrar quem está na hora de bater as botas com muita facilidade e acredite, ele contribui com o destino e os encontra. Sempre.
Dom Raposo não se sente ameaçado, ele também é corajoso. Mas visto que ali já não havia o que se fazer, entrou na carroagem levando a filha, praticamente arrastada.
Louise ergue a barra do vestido com uma mão e mantém a pistola na outra, mas antes de subir o segundo pé e virar as costas de vez, olhou para o chefe do trio, curiosa e encantada.
Ele manteve a expressão séria e ilegível, mas ainda assim, balançou a cabeça quase imperceptivelmente e não num gesto de despedida.
Era algo que parecia mais com um "até breve."
Uma bela recepção brasileira, Dom Raposo resmungou em algum momento na estrada.
Mas Joaquina só conseguia pensar que, a partir dali, ela finalmente se sentia de volta em casa.
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Se Louise pudesse resumir os últimos dois meses de estadia no Brasil em uma única palavra, seria: tumultuado.
Resumidamente, ela brigou uma porção de vezes com sua tia, a maioria delas foi por defender a liberdade dos escravos de casa e nas outras, foi a sua suposta falta de modos para uma moça que deveria ser recatada e etiquetada.
Ela não consegue ser como sua irmã caçula, Bertoleza, que inocentemente se rende aos bons modos torturantes desta época.
Houve uma vez em que Louise levou Bertoleza para o riacho, na mata de Vila Rica. Era para ser um passeio comum, até Louise decidir que melhor do que com roupas de banho que lhe pesam, seria aproveitar o contato da natureza.
Nua.
Ela nadou lidando com os protestos e choramingos de sua irmã que implorava para Louise se vestir e apesar de ser irritante os argumentos dela, valeu a pena sentir a leveza da água.
Valeu a pena, principalmente quando viu o que viu ali.
Coincidentemente, naquela tarde no riacho, Louise esbarrou no revolucionário que saqueou sua família no dia da chegada deles ao Brasil. Bertoleza não o reconheceu porque havia ficado na carroça quando o assalto ocorreu, mas mesmo assim, gritou e protestou desesperada quando o viu, apavorada por um homem ver sua irmã sem roupas.
Louise cobriu a parte de baixo na água e os seios com as mãos, mas não conseguiu fechar os olhos para aquilo; o revolucionário também havia tido a ideia de um banho nu.
E por tudo o que havia de mais sagrado, Louise nunca tinha visto uma coisa daquelas.
Ele é alto, provavelmente uns dez centímetros a mais que ela e sua pele branca queimada do Sol. Os poucos pelos evidentes são claros e os músculos das pernas e braços provam sua força, e estranhamente, essa altura e grandeza lhe trás um sentimento repentino de proteção, como se ao invés de perigo, ele pudesse cobrir Louise inteira de cuidados...
O umbigo e logo a v-line levaram os olhos dela para aquilo. É a primeira vez que ela vê, mas parece um membro interessante.
Ele é lindo, Louise não conseguia piscar, só foi tirada de seu transe tarde demais pelos gritos da irmã, a reação defensiva do homem e o movimento da água, quando ela mesma deu um passo para trás e se tapou com as mãos pequenas.
Parecia haver chamas de dentro para fora do seu corpo, uma pinicação esquisita e as bochechas queimando como o seu pescoço.
O homem não escapou do próprio rubor, a diferença é que ele gargalhava quando Louise começou a jogar água na direção dele com uma das mãos, e brigar, enxotar o atrevido para fora dali. Ele permanece se exibindo e rindo, ela quase já não tem mais vergonha de olhar ele também, ainda mais quando ele se vira de lado para evitar a água no rosto, fazendo os olhos dela dispararem para o traseiro branco. É pequeno, mas é belo e Louise amaldiçoou-se por estar gostando dessa bagunça.
- Convenhamos, senhorita, nadar sem roupas é uma maravilha! - ele provocou, mas ela estava começando a ficar realmente irritada com esse espetáculo.
Ralhou para que ele não olhasse e o sujeito ao menos teve a decência de fechar os olhos, mas continuava se mostrando e parado no lugar "Vá embora, vá!" ela ordenou e só serviu para ele rir ainda mais.
- Como alguém que luta por um conceito revolucionário, que deveria ser inteligente, é tão imaturo?
- Vamos embora daqui, Lou - de costas para o riacho, Bertoleza implorou para a irmã - esse sujeito é um libertino!
- O libertino se chama Harry Styles - ele se apresentou, como se interessasse à ela quem o mal educado é - e as damas não concordam que revolução e liberdade estão atreladas, e que estar nu é se libertar?
Ele abre os olhos, mas não olha para o corpo de Louise. Os dois sustentam o olhar como quem sustenta o próprio peso do corpo. O verde dele é escuro, quase sombrio e ilegível. O azul dela reflete encantamento como a transparência da água e assim, Harry desviou o olhar, finalmente compreendendo a seriedade da situação, como se suas gracinhas tivessem perdido o sentido com aquele contato intenso.
Ele se encolhe em si mesmo e o rubor de sua pele aumenta ainda mais.
- Diante de duas damas, acho que a nudez do homem só significa um ultraje - Bertoleza rebate de sua posição, ainda de costas para não ver Harry pelado.
Ele não diz mais nada e também não se despede, apenas se afasta, sai da água com pressa, recolhe as roupas na pedra e ainda assim, Louise está paralisada, repassando a visão da incrível beleza divina, uma das coisas mais lindas na qual seus olhos se puseram.
Foi apenas uma semana depois que a jovem moça conheceu Gregori Willhen, um preto forro que se disfarçava de taverneiro, mas na verdade era o cabeça dos conspiradores em Vila Rica.
Havia um grupo com cerca de trinta cidadãos, que reuniam-se na igreja paroquial no centro da cidade quase todas as noites para discutir ações para a derrubada da monarquia.
Supostamente, Gregori era o único além de Dom Raposo a saber a identidade secreta de Louise, como Joaquina, a filha do Tiradentes. Quando abordou ela pela primeira vez em sua taverna e se apresentou como antigo amigo e parceiro de batalha de Joaquim José da Silva Xavier, a jovem logo se encantou e quis saber tudo à respeito do pai, do qual sentia tanta saudade e que havia poucas lembranças de quando era apenas uma criança e brincava sobre os ombros fortes dele.
Gregori presenteou Louise com o livro Recueil Des Loix Constitutives, um modelo de leis e ideias sociais para a nova América, então, praticada no liberto Estados Unidos.
Era uma prova de que os sonhos de se tornar um país independente e livre das amarras do Reino Português, não era apenas um sonho iluminista, mas sim uma possibilidade e realidade muito próxima de ocorrer nas terras da colônia de extração.
Na sua segunda reunião com o grupo, indo escondida de Dom Raposo e sendo acobertada pelo irmão André, Louise esbarrou em Harry Styles novamente.
Descobriu que o Sr. Styles não tinha títulos, mas havia vindo da Europa há cerca de dez anos e que sua presença diante o Príncipe Regente era de grande valia - mesmo mal sabendo o futuro rei, que Harry era na verdade, um grande traidor - porque ele havia estudado agricultura e trabalhou em fazendas de café para os maiores representantes do reino nas colônias.
Harry se espantou com a presença de Louise nas reuniões. Na frente dela, ele discutiu com Gregori sobre ela estar entre eles. A senhorita pensou que o argumento dele fosse pela sua imagem parecer a de uma mulher fútil, e também por sua posição e sobrenome pertencer à corte.
Harry teve que se desculpar quando Louise o ameaçou com um punhal para ele pedir desculpas por insinuar que ela era fútil demais para estar ali.
Ele sabia que ela não o machucaria de verdade, mas pediu desculpas de qualquer forma e apenas aceitou o fato de que teria que lutar ao lado dela.
Correndo o dobro de risco para proteger seu amor, tanto de si mesmo, quanto da forca, caso fossem descobertos pelas autoridades.
Harry ficou impressionado com Louise na primeira missão que participaram juntos: intervir no transporte da quinta, os impostos recolhidos das Capitanias de Minas Gerais, para a capital do Rio de Janeiro, para os cofres de Portugal.
Foi ali que ela entendeu o roubo de seus cavalos, porque eles seriam usados em missão. Foi fácil saquear os soldados que faziam o transporte dos impostos. A farda impunha mais medo do que eles próprios, então não poderia ser difícil lutar contra os borra calças. Foi uma missão bem sucedida, o dinheiro foi direcionado para compra de armas e também devolvido ao povo em forma de alimentos doados secretamente pelo grupo de rebeldes.
Joaquina estava radiante, feliz demais por ajudar os necessitados e o povo explorado pela quinta dos infernos que era aquele imposto absurdo, que sugava até a última gota de leite do povo, que lambia até as migalhas dos pratos de cada família da colônia.
Joaquina sentia cada vez mais estar a um passo da independência.
Sentia estar a um passo da liberdade!
E até que o sem vergonha, Harry Styles, não era tão sem vergonha assim. Na verdade, ele era um homem bem sério em todas as reuniões. Falava e tomava frente tanto quanto Gregori. Envolvia seus outros companheiros - Malik e Caos - que viviam na mata, mas sempre que havia missões envolvendo armas eles eram escolhidos e recrutados por já terem participado da revolta em Pernambuco, assim como Harry, experientes.
É a primeira vez que Louise precisou ter um momento daqueles que vê Bertoleza ou suas primas de Portugal terem, de cochichar entre risos bobinhos de meninas que pensam viver num conto de fadas, para confessar à sua irmã e confidente que ela estava encantada com o Sr. Styles.
Louise dizia com seus olhos brilhando sobre como achava incrível a capacidade de comando dele, que achava deslumbrante as roupas que o homem vestia. Que ele era um estudioso, que estava estudando o cultivo fértil em solo urbano para ajudar as famílias pobres de Vila Rica. Ela contava sobre a vez que ele a irritou após uma reunião e os dois duelaram esgrima esportivamente... talvez quase esportivamente, considerando que no início do embate, Louise o desafiou por raiva e no fim acabou sendo apenas divertido adivinhar cada movimento dele e saber que ele era realmente bom em prever os dela, como se estivessem conectados.
Ela podia até dizer estar apaixonada, se tivesse oportunidade de vê-lo à sós.
Acontece que nessa noite estava marcada uma nova missão.
Esconder as armas compradas para os rebeldes, ao norte da mata, mais distante da Vila. Louise usou a desculpa para o irmão lhe acobertar, de que não jantaria com a família por estar indisposta e precisar de ar fresco. Ele disse ao pai por ela, que ela apenas havia se retirado cedo ao aposento.
André realmente acreditava que ela daria um passeio para tomar ar fresco, mas Dom Raposo jamais iria acreditar. Ele ama e protege muito Louise, além disso, Dom Raposo conhece sua filha melhor do que ninguém e suspeitaria dela estar aprontando algo, assim que pedisse permissão para passear ao anoitecer.
Agora, ela e Harry estão levando a carroça com a caixa de armamentos, para longe da cidade. Eles pretendiam enterrar num local de difícil acesso, por isso ela já veio preparada, vestindo botas de cano alto por baixo do vestido longo. O que havia esquecido, era se disfarçar melhor além do capuz preto, então Harry foi generoso e emprestou seu lenço com a marca da Flor de Lis para amarrar em seu rosto, na altura da boca.
Ajudando a vestir, foi ele que tirou o cabelo dela do caminho para dar um nó no pano em sua nuca. Fez Louise se arrepiar e o coração dela disparar. O toque dele é tão suave, ela não sabe como chegou a julgar os músculos dele e altura serem sinônimos de brutalidade para alguém que costuma ser tão doce e encantador. Ele sempre vai da força para a leveza em questão de segundos.
Os dois cumpriram o dever e falaram apenas o necessário, evitando serem ouvidos caso alguém passasse por ali. Era necessário trilhar na mata até o caminho de volta para onde deixaram a carroça. Não era um caminho longo, mas era perigoso no escuro. Harry deu a mão para Louise segurar e não tropeçar, mas quando estavam perto da clareira, o som da cavalaria inconfundível os parou no lugar.
Eram os soldados do reino.
De certo, os rebeldes haviam sido denunciados. Harry xingou baixo e Louise passou a pensar numa maneira de escapar dali depressa.
Ela puxou ele pela mão e os dois costuraram a mata na direção contrária, sendo seguidos, mas em vantagem.
- Ali, entra ali! - ele apontou para uma casinha de pedras e iluminada por dois fogareiros, cercada do mato, de samambaias e umidade.
- Alguém mora ali - ela se espanta - não podemos invadir.
- Quem mora ali é um dos nossos, vem logo!
Eles entram na casinha, ofegantes e tropeços. Está tudo escuro, mas há uma mulher concentrada em picar um punhado de ervas em uma lata de metal, o que indica vida ao local.
Louise olha a sua volta. Há vidros com líquidos em diferentes cores, um ser minúsculo numa garrafa que se parece um bebê que nunca irá nascer - é um feto - e um galão de água de qualidade duvidosa.
Essa mulher é uma bruxa?
- Quem é essa? - a bruxa questiona Harry, sem nem o cumprimentar, como se eles já se vissem tanto que fosse perda de tempo.
Ela é alta, usa tinta nos lábios e os cabelos longos trançados. Ao contrário do que ela pensaria ser uma bruxa, essa tem feitiço na beleza.
Louise tenta não demonstrar o ciúme, quando Harry dá muita atenção ao olhar para a outra, como se tivesse sentimento ali além de um mero coleguismo de luta ideológica. Eles são amigos, está claro na compostura relaxada de ambos.
- Ela luta com a gente.
- Ela é o William, Harry, você sabe o que vem a seguir. Está estampado na cara dela, mas o fim tinha que ser na minha casa?
- Você chama esse buraco de casa, quando temos o casarão no campo para viver - ele riu com sarcasmo, mas parecia nervoso, mais nervoso do que Louise jamais viu. Se for sobre os guardas do reino, ele já pode temer mesmo porque é provável que aqueles cães do inferno não desistam de caçar os dois fugitivos - Não consigo te entender, Swift, você pode fazer suas coisas - ele aponta para as ervas dela - perto da gente também.
- E atrair a caça para vocês? Não, nós dois sabemos que isso só iria atrapalhar a revolução, eu tenho muitas lutas para defender e a saúde é uma delas também.
Louise tirou o lenço do rosto, como se assim seus sentidos pudessem ser melhores apurados, para escutar o barulho vindo de fora.
- São eles - sua mão instintivamente foi ao cabo da espada, mas é inútil. Eles sabem que estão cercados quando a trombeta anuncia e os tiros para o céu avisam que não há como escapar - Oh, maldição! - praguejou.
- Shiu, eles vão nos ouvir - Harry pediu ao mesmo tempo que o coronel gritou a ordem para que eles saíssem da casa.
É óbvio que os medrosos pensam que invadir a casa da suposta bruxa seria um perigo, um risco de serem amaldiçoados pelo satanismo, mas também acham que atear fogo é uma maneira eficaz de acabar com dois problemas de uma só vez.
Eles ameaçam fazer. Dizem que se os traidores não saírem por livre espontânea vontade (ironicamente) sairiam feito cinzas.
E esse é um daqueles momentos contínuos que Joaquina se lembra de seu pai. Ele era o rebelde com menos chances de sobreviver, em sua posição social. Um soldado de baixo escalão, um pobre com uma casinha miúda na cidade, não teria o mesmo privilégio daqueles mais ricos que lutaram na inconfidência e apenas foram exilados ao invés de mortos.
Mas o sobrenome selvagem dele era natural dali e por isso Tiradentes lutou tanto para que a terra do Brasil continuasse a dar frutos próprios, frutos que eram seus por direito. Silva, selva, brasileiro, ele morreu acreditando e não desistiu nem com a corda no pescoço. Ele amava aquele lugar, ele amava a ideia de ser livre e acreditava que a rebeldia era um presságio de mudança, que a rebeldia unida ao tempo era a luz da revolução.
Se ela tivesse que morrer queimada, assim como seu pai foi morto e transformado em inspiração para os outros continuarem lutando, ela também poderia entregar a si por esperança e amor à liberdade que ainda estava por vir.
A liberdade ainda estava por vir.
Pode demorar, mas ela virá.
- Harry, eu não vou me entregar ao Rei, eu vou me entregar à independência.
- Não tenho como te tirar daqui - ele olhou para cima como se pudesse fazer um buraco no teto e, se fosse possível, voar longe dali como um passarinho. Louise teve a impressão de que ele até estava mais preocupado com ela do que consigo próprio - mas não entre em pânico, podemos dar um jeito.
- Ela tem coragem - Swift tinha muito mais, porque ela diz isso sorrindo, como se não houvesse dez homens armados ao lado de fora da sua humilde tapera - posso sentir essa coragem daqui.
- Eu tenho coragem, eu realmente tenho - ela puxou Harry pelas mãos e o trouxe para frente de si, ignorando a presença de Swift e apenas se concentrando no pouco tempo que lhe resta - escute - Louise pede quando ele sibila seu nome, surpreso pela aproximação repentina da moça e a calmaria em meio ao perigo - eles vão me tirar daqui e me colocar num calabouço, depois me enforcar como fizeram com meu pai.
- Seu pai?
- Meu nome verdadeiro é Joaquina, eu sou filha de Tiradentes.
Harry arregalou os olhos e balançou a cabeça.
- É claro que é você - ele disse com um sorriso deslumbrado - tinha que ser você.
- Você sabia que ele tinha uma filha?
- Gregori me disse.
- Pois bem, assim, você sabe que eu prefiro morrer em chamas por esses homens do que enforcado como meu pai. Não quero que Dom Raposo sofra me assistindo morrer. Não quero que Bertoleza, André e minha tia sofram, porque...
- Você os ama e sabe que ver quem se ama sofrer dói - Harry completa, como se soubesse bem sobre aquilo.
- Sim - ela circundou os braços no pescoço dele e ficou na ponta dos pés. O nariz de botão se aproxima do rosto de Harry, que paralisa e não tira os olhos dos seus. Apesar de inebriada pelo momento daquele tempo, Joaquina não consegue deixar de sentir a anunciação do fim corroendo seu interior antes mesmo das chamas serem lançadas à estrutura - Sr. Styles, eu o amo tanto que não quero vê-lo na ponta de uma corda, também não quero que sofra me vendo nela ou pior, na guilhotina. Se você tiver coragem, podemos ter como último rastro de luz as chamas, ao invés do olhar nojento de tiranos sem almas, sem amor.
- Lou...
- Joaquina da Silva Xavier, esse é meu nome - ela sorriu, ao corrigir - me beije pela primeira e última vez sabendo que o amo e me deixe queimar em sua boca, eu imploro, Harry, será nossa última sensação de liberdade nessa vida, ainda que tardia.
Liberdade, ainda que tardia.
A mesma frase que seu pai gritou antes que sua cabeça fosse pendurada.
A última frase dita por amor.
Louise precisou se esticar um pouco mais, Harry se inclinou e tocou levemente os lábios nos seus. Haveria de ser sua última sensação de leveza, feito asas em pleno voo, antes do calor, antes da ardência, antes da luz cegá-los a ponto de se tornar seu próprio oposto.
O último segundo daquele tempo precioso era escuridão, mas também, havia esperança no último ato de Amor.
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inspirado na novela "Liberdade, Liberdade" de Márcia Prates
estudei bastante para escrever, mas as cenas do riacho e da esgrima foram tiradas de lá, apesar de transcritos de maneira bem diferente
se tiverem dúvidas me perguntem, eu voltarei muito em breve ♡
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