Capítulo 1° - Agora, se não me engano, morremos tragicamente
O garçom serve duas taças de champanhe e recua com a garrafa em mãos.
— Deixo na mesa? — encara-os, a mão treme levemente e uma gota de suor frio o desce as costas do pescoço.
A mulher, Nars, terceira filha do antigo rei de Marte, tinha cabelos e olhos rubros, na garganta trazia uma joia cinzenta atada em um cordão de ouro. O rosto do homem com quem dividia a mesa era marcado por uma longa queimadura mal cicatrizada no lado esquerdo e íris vermelho rubi.
Silêncio. A mulher levanta e suas mãos atingem ruidosamente a mesa redonda, amassando a toalha branca com aberturas quadrangulares nas bordas por onde se via a madeira negra abaixo. O conteúdo das taças de vidro balançaram e uma gota respingou no tecido.
— Qual a sua resposta? - ela para sua companhia, então o olho fitou o funcionário do estabelecimento de esguelha, semicerrado, e a ponta do lábio pendeu levemente para baixo. O garçom se afastou e o encarar dela tornou ao homem na mesa. - Ars está começando uma guerra! Na verdade ela já começou! Faça alguma coisa!
As pálpebras do homem baixaram, subiram, e ele encontrou o rubro dela com o próprio.
— Ela é adulta - Antares, rei de Marte, respondeu em tom frio. Ele soltou o ar pela boca, suavizou a tensão na testa, timbre e nariz. Sorriu. - E me surpreende que também o seja. Seus peitos cresceram ou é enchimento?
Uma veia formou-se na têmpora da mulher e os punhos fecharam sobre a mesa.
— Um quarto do mundo perdeu todas as suas formas de vida e você quer arriscar atrair a ira de quem quer que tenha feito isso?!
— Hers disse... - o rei começou e a mulher parou. Um vento gélido atravessou a janela do restaurante e passeou pelas mesas vazias além da deles, por suas peles e cabelos. A lua alta no céu por um momento pareceu prender o brilho dentro de si. - ''A causa do décimo terceiro mistério terminou por mais tempo do que você e sua prole viverão''.
Ela fez uma careta de desagrado. O colar com a jóia ́ ́espelho'', cuja cor seguia-lhe o humor, passeou entre negro, vermelho e cinza até fincar-se num rubro sombrio. Ela cruzou os braços sobre a camisa vermelha e blazer negro. Girou a direita, rumo a cidade janela a fora. Luzes de postes pendiam sete metros abaixo e o cheiro de eucalipto produzido artificialmente por aromatizantes chegava até ali suavemente. Nars piscou devagar, puxando o ar de modo profundo, tentando não pensar no quão longe o irmão estava indo para deixar a irmã maluca ir à guerra... de novo. Mordeu o canto da boca para segurar uma série de xingamentos para dentro. Casas de porte médio erguiam-se por sete ruas antes dos primeiros arranha céus.
Hers não falava, os ouvidos haviam apodrecido aos três anos e os olhos terminado de degenerar aos treze. Era preciso alimentá-lo com papas, limpar seus dejetos, dar banho e arrastar sua carcaça ossuda para onde quer que fosse preciso. Ele era o primogênito do rei anterior, Kars, então foi mantido vivo. E aos quinze avisara dos explosivos colocados no salão de audiências. O rei Kars mandou vasculhar o local. As bombas foram encontradas. O monarca de Marte, sua família e empregados, mais cem dos ceos das maiores empresas nacionais viram-se livre do que teria sido suas mortes.
Hers foi levado ao laboratório para estudos e ninguém além dos pesquisadores, e Antares em busca de previsões, o vira nos quinze anos após sua internação. Boatos diziam que a habilidade especial dele era vislumbrar o futuro, o primeiro a ter essa capacidade confirmada como algo além de trabalho de adivinhação de cartas e outros truques enganosos.
— Por que pega tão leve com Ars? - disse por fim. - Consultou até Hers só para deixá-la fazer como bem entendesse.
Antares suspirou.
— Eu a coloquei no comando do exército. Isso significa que decidi confiar em suas decisões, mesmo que uma delas seja guerra.
Nars o encarou de canto, face ainda rumo a janela.
— Não, é assim desde que éramos crianças. Você a tirou do contendor dos instáveis da família. A deu seu nome e quase matou a todos nós deixando que ela vivesse no palácio. Convenceu papai e mamãe a permitirem aquela bomba em casa... e continuou cobrindo as tolices perigosas dela até hoje. A entregou Alfred... ele era mais um pai para mim que nosso pai!
Antares bebeu o vinho na taça, ergueu o indicador e o anelar, o sinal para que o garçom trouxesse as sobremesas, então fechou os olhos. O restaurante fedia a café, café o fazia lembrar de quando ele jogava jogos de tabuleiro com Ars após um longo dia lidando com políticos e cidadãos cheios de queixas. Tomávamos várias xícaras porque sem eu não continuaria acordado.
— Pensei que fossem amigas - ele.
Um assobio nervoso escapou de Nars. Os dedos dos pés subiram e desceram, os das mãos tamborilharam sobre os antebraços.
— Eu não... odeio Ars - respondeu. - Ela nunca foi intencional ou diretamente má para mim. Geralmente o contrário. Mas...
— Ars é perigosa. Eu sei. A queimadura no meu rosto e metade do tronco não deveria permitir que creia que não.
A irmã do rei se sentou. Dois pudins de frutas vermelhas foram deixados na mesa. Ela deu uma colherada daqui, Antares deu uma de lá. Era frio e doce e gelatinoso.
— E se ela perder? O que será de Marte? - falou a duas levas do fim do doce.
— Não irá. Estou preparando todo suporte necessário e Xizih foi convencer seus irmãos a ceder parte do conhecimento do seu povo. Se com isso descobrirmos a impossibilidade de vitória... - a mão tensionou, pairando a meio caminho de fechar. - Eu mesmo paro Ars e...
''Se tarde demais para um recuo pacifico frente aos demais países, a taxo como uma rebelde que agiu por conta própria'' deixou por dizer. Os músculos enrijeceram, o ar entrou-lhe num fio curto e lento.
Faço mesmo?
— Você faz mesmo? - Nars, a colher parada sobre o pudim.
Antares a fitou.
— Não questione seu irmão mais velho - com um sorriso e tom leve. - Que feio.
Ela soltou a colher e cruzou os braços.
— Responda - insistiu.
O sorriso de Antares morreu. A íris da metade queimada da face soou um grau mais vivido.
— Não questione seu rei.
Ele vestia um sobretudo negro, sobre camisa e calças negras. A pedra no anel indicador era sombria como o próprio Thanatos. Não soava a um rei. Eram as roupas que usava para andar pelas ruas, não o carmim e branco e amarelo para reuniões, aparições televisivas e eventos públicos.
— Então quem devo questionar?
Antares tornou a comer.
Nars perguntou mais três vezes.
O pudim acabou. O rei se retirou e quando não pairava mais o som dos passos dele ao alcance dos ouvidos dela, Nars o xingou em tom alto.
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Ars Olins - imperium ignis
— Meus caros galeses! O diabo anda entre nós! Abram seus olhos, atentem os ouvidos! Ele tem longas mentiras e longas orelhas! — bradou atrás da bancada de madeira larga. Luzes de câmeras piscavam do piso abaixo, vindos de tablets, câmeras e das lâmpadas acopladas ao chão diante do estrado. — Erwin nega-se a ouvir nossos caros ministros! Nega-se a ajoelhar e mamar o poderio de Marte!
Vanderlei mimicou um tossido com o punho fechado a frente da boca. A íris rubra de Ars o encontrou. Oh, droga. Sentou-se na cadeira, ''hum-hum'' soltou para relaxar a garganta.
— Erwin Smith é um traidor de seu país e um terrorista. Afundou as embarcações de Gales quando ouviu que se submeteram a Marte e terá de responder por isso. — continuou, timbre austero, as pernas cruzadas e as mãos entrelaçadas sobre o joelho. — Qualquer informação de seu paradeiro será generosamente recompensada.
A imprensa perguntou sobre o ocorrido e sobre o incidente da boate Beijo que pegou fogo. Vanderlei e Nazaré assumiram o palco. Ars fechou os olhos e manteve a boca quieta, havia concordado em manter-se assim caso recebesse o sinal do ''tossir'' que indicava estar sendo canastrona.
— E então? - Alfred perguntou no quarto emprestado do primeiro ministro vinte minutos depois que as entrevistas terminaram, três segundos após ela adentrar o cômodo.
Ars bufou. Tirou o sobretudo e o jogou para trás, Nao o segurou com mãos nervosas e rapidamente começou a dobrá-lo.
— Era uma transmissão ao vivo de um membro da realeza de Marte. Se algum país não houver posto os olhos nisto, esse não vale o esforço do estratagema - caminhou a cadeira à frente de uma escrivaninha. Alfred depositou uma xícara com café na mesa. - O problema mesmo, o que importa mesmo, é saber como será visto. Vão acreditar? Vão chamar de farsa? Ficarão em um meio termo cauteloso?
— Acho que foi excelente, vossa alteza - Nao comentou do outro lado do aposento, a peça de roupa sendo depositada em uma mesa larga de quartzo.
O semblante de Ars tencionou.
— Não sou rainha, Nao. É incômodo ser chamada assim - disse em tom neutro.
— Sim, sim vo... comandante Ars.
Virou o rosto de lado. O rubro encarou o jovem magro e baixo sob a pesada farda militar escura.
— Ars é o bastante para quando estivermos aqui. Comandante lá fora.
Alfred fincara-se no batente da passagem à varanda com ventos frios a balançarem-lhe o blazer.
— Acreditaria se estivesse no lugar deles, senhorita? - o mordomo.
Ars fechou os olhos, os dedos pairavam ao redor da asa da xícara e o odor de cafeína subia junto a tênue vapor.
— Navios galeses e de Marte foram destruídos. Erwin Smith tem no geral um perfil patriota por conta de ações pró Galês... - tomou um gole da bebida, a língua deslizou pelo líquido devagar, calor e amargo acordando-a um pouco mais antes de descer garganta abaixo. - O sujeito realizou ações realmente custosas. Trabalho braçal, a crise do ''Hades'' semanas atrás, acordos com países próximos... só de imaginar me dá dor de cabeça. Boa parte disso foi feita por ele apenas, Gales era um ninho de reis que divergiam e brigavam... e agora seu recém estabilizado país se ajoelha a outro? No lugar dele raiva seria uma palavra fofa para meu estado.
— Mas? - Alfred.
Ars inspirou fundo e soltou o ar pela boca.
— Eu não passei despercebida. Em minhas investidas anteriores, em guerras menores contra criminosos e países que ergueram o queixo alto demais, usei do artifício das falsas informações. Eu não confiaria em mim nem fodendo — bebeu mais um pouco, abriu os olhos, lábios tomados por torção de desgosto. — Provavelmente esse estratagema falhará e usarão Erwin como meio de repassar informação conveniente a eles para nos atrapalhar... merda, Nic certamente fará isso, não é estúpida apesar de se esforçar muito para parecer... Nao, reúna o conselho, precisamos repensar o plano de infiltração.
Alfred a encarava com as pálpebras semicerradas. Ars soltou o ar pela boca e virou o rosto para o outro lado.
— Peço perdão pelo palavrão... mas eu já sou adulta, já fo... já tive coito. Meu vocabulário deveria poder englobar toda e qualquer palavra.
Alfred bufou.
— Uma pessoa da sua posição deve manter a compostura, senhorita.
Ars revirou os olhos e descansou a bochecha sobre o punho. Que seja.
O grupo de comandantes chegou trinta minutos depois. Ludmilo, Pérircles, Valesca e Chique Chique.
— Sobre o marketing? — antes que terminassem de atravessar o batente.
— Atualizado, digníssima. Imaginei que precisaria depois de... bem — Ludmilo gesticulou com a mão para Ars. Merda, minha atuação para as câmeras foi mesmo tão má? — Enfim, decidi mostrar aos repórteres os planos para construção de foguetes e uma breve amostra da ideia para nossa primeira nave do jeitinho que funciona em histórias de ficção científica. Obviamente matéria escura é o material principal para realizar essas produções.
Porra, ele é bom. Ars bateu duas palmas.
— E o equipmento? Precisamos mostrar algum trabalho braçal. Chique? — ela, fitando a anã com cabelo black power e óculos escuros.
— Irei providenciar, sir — e dobrou-se numa reverência.
— Pérircles — Ars.
O sujeito magro e com pesadas olheiras acenou positivamente antes de abrir a boca.
— Ô-ô-ô-os submarinos já foram posicionados ao redor da ilha. O grupo responsável pela defe-ê-ê-esa de Marte já confirmou estar preparado para o caso de um ataqueeeei.
As íris rubras da irmã do rei encontraram Valesca.
— Tropas terrestres a postos em Gâles, Erwin Smith relatou ter chegado ao país Ozymandias e o grupo disfarçado de turista entrou na aeronave que leva até Éden. No momento nenhuma falta no enviar do código que confirmam estarem bem ocorreu.
Bom, a parte fácil está feita.
Agora, se não me engano, morremos tragicamente.
Um cômodo explodiu violentamente, derrubando a estrutura que se erguia a lateral da montanha rumo a estrada abaixo em fragmentos tocados por fogo e fumaça.
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